13 Abril 2018
Oscar Maroni simula assassinar mulher sob imagem de Cármen Lúcia e Moro no salão do Bahamas, casa de prostituição em São Paulo.
"Cena na Bahamas é emblema de um país dominado por elitistas, escravocratas e machos valentões. Como proporia Deleuze, é tempo de encontrar brechas não só para mudar a sociedade, mas a vida mesma", escreve João Vitor Cardoso, mestrando em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades FFLCH – USP, coordenador do Observatório de Conflitualidade Civil e Acesso à Justiça – OCCA, em artigo publicado por Outras Palavras, 11-04-2018.
“O padrão majoritário é vazio. O homem macho, adulto, não tem devir.
Pode devir-mulher e virar minoria.”
Gilles Deleuze
Como observou Suely Rolnik aqui mesmo em Outras Palavras, o script dos novos golpes de Estado “é um verdadeiro show de psicopatia”. A imagem de Carmem Lúcia sob o letreiro iluminado da boite Bahamas, enquanto Oscar Maroni simula assassinar uma mulher seminua, para alguns, celebra a vitória da moralidade pública contra a corrupção. A cena do corpo feminino extirpado, forçado ao ato de exposição sexual, abaixo do quadro de Carmem Lúcia, é não só metafórica, mas também paradoxal: um gran finale para o seriado pós-verídico que coroa o golpe de 2016.
“É sexy gritar contra o Lula”, disse a coordenadora do Vem pra Rua. Por sua vez, Sabrina Boing Boing postou uma foto sensual para comemorar a ordem de prisão. Nessa senda, uma série de iniciativas e movimentos que não se dizem políticos, nem têm qualquer relação com a política representativa — não só cafetões moralistas, mas também elitistas, escravocratas, racistas, machos valentões — uniram Carmem Lúcia a Oscar Maroni. Esses novos personagens de poder, que apalpam e depauperam, que nos atravessam e nos torpedeiam, entorpecem, abaixo da linha da consciência, para não dizer, abaixo da linha da cintura. Seria a constatação de algum tipo de regime “narcoticosexual”, como diria Paul B. Preciado, vigente no Brasil?
Vale lembrar, a presidente da Suprema Corte (nota gramático-política: Carmem recusou o uso do termo presidenta), que não se confunde com a Musa da Lava Jato, desde o início adotou uma postura masculina: renunciou ao “fazer-se mulher” como categoria ético-política para engajar-se na vida pública, filiando-se a uma corrente ideológica segregada e dominada por homens embolorados.
Em Mil Platôs, Deleuze & Guattari (2008, 70) apontam que “todos os devires começam e passam pelo devir-mulher”. Os autores argumentam que a noção de “ser humano homem macho heterossexual branco adulto” é o ponto focal que estrutura o pensamento ocidental, que é excludente e repressivo em vários níveis. Em suma, dizem: “o padrão majoritário é vazio. O homem macho, adulto, não tem devir. Pode devir-mulher e virar minoria”. Ou seja, o homem não entra em devir porque, para a forma homem, que dizima modos de vida minoritários, frágeis, hesitantes, ora ainda nascentes, tudo está em segundo plano, tudo veio depois dele; ao passo que o devir-mulher, devir-revolucionário, causa a transformação daquilo que somos, questionando as instituições e acontecimentos que reproduzem as estruturas de dominação.
Com inspiração nestes conceitos, a pós-feminista Paul B. Preciado identifica na atualidade um regime farmacopornográfico, que se define por dois polos, que operam mais em convergência do que em oposição: a farmacologia (tanto legal quanto ilegal) de um lado e a pornografia de outro. Nesse sentido, como dispositivo virtual (audiovisual, masturbatório, cibernético), a Lava Jato foi alçada à qualidade de espetáculo sexual. A imagem que viralizou nas redes revela de forma singular a pragmática do capitalismo narcotisexual institucionalizado. Difícil ser mais explícito.
Sobre a presunção de inocência, mesmo com Lula preso, outros condenados em segunda instância seguirão soltos. O julgamento tão aberrantemente anti-isonômico, vale lembrar, não recebeu a bênção dos gerontes mais antigos da Corte. A proteção de direitos fundamentais, a supremacia da Constituição, o império da lei, tudo isso cedeu ao triunfo da colonização do Poder Judiciário pela grande imprensa, esta responsável pelo modus operandi do novo regime colonial-capitalístico. O julgamento de quarta-feira (4 de abril) foi um atentado ao pudor, ou como disse Lenio Streck, “um tsunami jurídico”.
Nessa jusante, “é preciso distinguir redemoinho de pororoca, quais direções são constituintes, quais apenas repisam o instituído e quais comportam risco de retrocesso institucional”, lembrando o alerta de Peter Pál Pelbart, ao comentar as jornadas de junho de 2013. É tempo de reativar a micropolítica tropical, nossa capacidade coletiva de descolonização do inconsciente e de resistir cotidianamente aos agenciamentos capitalísticos e neocoloniais que grassam por toda parte — não só para mudar a sociedade, senão a vida mesma. Nesse cenário de crise constitucional, a restauração da legitimidade de nossas lutas constituintes passa por devir-mulher, por devir-negro, por devir-animal, devires que estão na linha de frente da resistência à barbárie capitalista.
DE CAMARGO, Wagner Xavier. RIAL, Carmen Silvia de Moraes. Hormônios e micropolíticas de gênero na era farmacopornográfica.
LOURO. Guacira Lopes. Gênero e Sexualidade: pedagogias contemporâneas. Revista Pró-Posições, v.19, nº2 (56) – mai/ago 2008.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 4. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Ed. 34, ([1980] 2008).
ROLNIK, Suely. O seriado do golpe em três temporadas.
SANTINI, Rose Marie. CAMELIER, Joana. Devir mulher, sexualidade e subjetividade: aproximações entre Deleuze & Guattari e Pierre Bourdieu sobre a construção social dos corpos. In: Revista Ártemis, Vol. XIX; jan-julho 2015.
PELBART, Peter Pál. Palestra “anota aí: Eu sou ninguém”. Dia 10 de agosto de 2013.
PRECIADO, Beatriz. Texto Yonqui. Madrid: Editora Espassa Calpe, 2008.
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A República farmacopornográfica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU