10 Abril 2018
Preso político do regime pós-2016, Lula não poderá disputar as eleições. Seu encarceramento busca, sobretudo, consolidar a agenda de retrocessos. Mas o triunfo dos conservadores não se consumou.
A reportagem é de Antonio Martins, publicada por Outras Palavaras, 08-04-2018.
Condenação de Lula expressa, ao mesmo tempo, força e fracasso. Bloco pró-golpe mantém-se coeso e tem poder – mas precisa de um espetáculo para tentar ocultar ruína de seu projeto
Como tudo muda, em tempos de crise civilizatória e de impasse nos projetos de esquerda. No final da II Guerra, em meio a um mundo devastado e à “ameaça” da União Soviética, as elites ocidentais promoveram um movimento notável de entrega dos anéis para poupar os dedos. Firmaram-se novos pactos sociais. Os salários cresceram, houve pleno emprego, surgiram o Estado de Bem-Estar Social, as redes igualitárias de Saúde e Educação. Abriu-se espaço para grandes processos de urbanização e industrialização da própria periferia – como no Brasil. Setenta anos depois, tudo mudou – e a condenação infame de Lula precisa ser enxergada nesta perspectiva mais ampla.
Porque o enorme retrocesso brasileiro, este ataque incessante aos direitos, esta ameaça concreta de fascistização, é parte de um processo global. Ao contrário do pós-guerra, o sistema respondeu à crise do 2008 aprofundando suas características mais antidemocráticas e retrógradas. Golpes de Estado ou eleições frandadas, como no Brasil, Egito, Honduras, Paraguai. Morte de milhares pelas milícias, como nas Filipinas. Militarização, como no México e agora no Rio de Janeiro. Destruição dos Estados nacionais, como no Iraque, Líbia, Yêmen, Síria. Regressão dos direitos sociais, como em toda a Europa. E algo comum, em todos os casos: a política é substituída pelo espetáculo. Não há mais democracia real alguma; tirou-se das sociedades o direito de decidir sobre seu futuro. Por isso, é preciso deleitá-las com sensações.
A prisão de Lula não visa apenas afastá-lo da disputa à Presidência – o que poderia ser feito muito mais facilmente por meio da Justiça Eleitoral. Ela pretende, além disso, impor uma nova narrativa, nos meses decisivos que nos separam de outubro. Além da “guerra ao crime”, supostamente disparada na intervenção militar no Rio de Janeiro, estaríamos vivendo agora uma “guerra à impunidade”. Foi este o teor do voto proferido, de olho nas câmeras, pelo ministro Luís Barroso, na sessão do STF na última quarta-feira. É esta a fala martelada, incessantemente, nas mensagens dos comentaristas da TV, dos “especialistas” jurídicos, dos editoriais.
Há, porém, uma fragilidade dupla neste script. Primeira: a realidade que ele busca esconder manifesta-se todos os dias, diante de milhões de brasileiros. O discurso essencial do golpe de 2016 fracassou. Garantia-se que o afastamento da esquerda devolveria ao país à prosperidade e a ordem. Produziu-se, ao contrário, desemprego, legiões dormindo nas rua, perda de direitos, desmonte dos serviços públicos, venda do país, aumento nítido da insegurança e da violência.
Segunda: o golpe, obviamente, não foi uma decisão técnica, mas um pacto político entre os conservadores. Por isso o próprio discurso do “combate à impunidade” é um farrapo, um guarda-chuva esburacado incapaz de esconder o caráter partidário das decisões judiciais. A procuradora-geral, que pediu a prisão imediata de Lula, é a mesma Raquel Dodge que comandou o arquivamento de inquéritos contra José Serra, está livrando Alckmin das denúncias da Camargo Corrêa e mandou soltar em tempo recorde os aliados de Michel Temer envolvidos com corrupção bilionária no Porto de Santos. De Sérgio Moro, são notórias as relações com Aécio Neves. De Carmem Lúcia, os encontros fora da agenda com o presidente.
Certos analistas de esquerda precipitam-se em dizer que não haverá eleições em outubro. Curiosamente, difundir esta crença – ou ao menos criar incertezas desmobilizadoras – é o objetivo essencial dos que promoveram o golpe; que o radicalizaram, a partir da intervenção militar no Rio; e que gargalham como hienas diante da condenação de Lula. Porque cancelar as eleições seria, no cenário atual, a única forma de superar as duas enormes debilidades do projeto ultra-conservador em curso no Brasil. É o que veremos no próximo capítulo.
Prisão-espetáculo busca blindar agenda de ataques aos direitos sociais e ao país. Mas enorme impopularidade dos golpistas mostra que há espaço para garantir as eleições e lutar
Três fatos destacados marcaram uma mudança profunda no cenário nacional nos últimos quatro meses. Não há provas – mas pode-se ter forte convicção – de que os responsáveis por eles agiram articulados entre si. Juntos, estes acontecimentos tiraram o governo Temer da insignificância a que estava relegando, restituindo ao presidente a iniciativa política. Também interromperam, pelo menos temporariamente, o forte movimento que se formava em favor da revogação das políticas adotadas após o golpe de 2016. Por fim, transformaram as eleições nacionais de outubro – cujo prognóstico era uma ampla vitória de Lula – numa loteria cujo resultado é hoje imprevisível.
Eis os três fatos. Em 13 de dezembro do ano passado, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região marcou o julgamento do recurso de Lula, contra a condenação por Sérgio Moro, para 24 de janeiro último – quando todos previam que ocorresse no meio do ano. Foi uma decisão arbitrária, que quebrou todos os recordes anteriores de celeridade do tribunal e significou interferência dos desembargadores do TRF-4 na fila cronológica de análise dos processos. Julgado seis semanas depois, Lula teve sua pena aumentada. Os desembargadores certamente combinaram previamente a sentença. Ao fixarem-na, todos, em exatos 12 anos e um mês, tornaram ainda mais sumário o julgamento, cerceando o direito da defesa a recorrer por meio dos chamados “embargos infringentes”. O efeito na agenda nacional foi imediato. O debate político sobre o sentido das políticas do golpe, que crescia, foi substituído pelas expectativas em relação ao futuro de Lula.
Em 16 de fevereiro, veio o segundo grande fato. Ainda com popularidade próxima de zero, ridicularizado em centenas de blocos de Carnaval pelo país e no sambódromo do Rio de Janeiro, Temer decretou intervenção federal-militar naquele Estado. Foi mais um raio despolitizador. Nas semanas seguintes, e até hoje, a segurança pública avançou para o centro das preocupações nacionais. Foram fundamentais para isso o massacre midiático e, em grau menor, à resistência histórica da esquerda a refletir e produzir propostas sobre o tema.
Enfim, em 21 de março, o ato final. Pressionada por seus própios pares por reter, durante meses, o julgamento da possibilidade de prender pessoas que ainda têm direito de recurso à Justiça, a presidente do STF, Carmen Lúcia, colocou o tema em pauta de forma capciosa. Não aceitou discutir o mérito da questão (que diz respeito a uma garantia constitucional de todos). Agendou o debate o pedido de habeas corpus de Lula (para que fosse apresentado como a defesa de um privilégio para os poderosos). Duas semanas depois, fato consumado: pedido negado, carta branca a Sérgio Moro para decretar a prisão. Mais espaço para que a TV e os jornais afastem o debate do que importa nas eleições e foquem nas acusações contra Lula.
Foram três vitórias dos conservadores, em quatro meses. O cenário mudou. E no entanto, ainda estão rolando os dados: nada indica que consolidação da agenda de retrocessos seja definitiva. Há uma razão básica para isso. Temer e o bloco estratégico que promoveu o golpe – grandes empresários, máfias parlamentares e mídia – retomaram a iniciativa, mas continuam tão impopulares quanto antes. Nenhum de seus candidatos prioritários à Presidência (Geraldo Alckmin, Henrique Meirelles e Rodrigo Maia) conseguiu chegar a 10%. Pesquisas do Datafolha mostram que a população segue contrária às privatizações e às contra-reformas da Previdência e Trabalhista.
A tentativa de despolitizar as eleições, de submetê-las aos espetáculos da intervenção no Rio de Janeiro e do “combate à impunidade” segue um scritp global. Nas democracias de fachada, ninguém debate ideias, apenas produtos. Mas o Brasil se renderá a esta lógica? Por que, então, em todas as pesquisas, Lula mantém folgada dianteira (ainda que perseguido), Ciro Gomes aparece como uma alternativa poderosa, Guilherme Boulos e Manuela Dávila têm chances de crescer? Tudo indica que não estamos condenados a Bolsonaro, nem ao cancelamento do pleito. Mas por que caminhos retomar a ofensiva contra a agenda de retrocessos? É sobre isso que especularemos, na terceira parte desta análise.
Com Lula afastado da disputa eleitoral, surge um imenso vácuo. Para ocupá-lo, será preciso denunciar radicalmente a agenda de 2016 e propor sua revogação. Quem se atreverá?
A grande praga das democracias de fachada que marcam o século XXI é o apagamento das diferenças. Em quase nenhum caso há disputa de projetos. Amparados pela mídia, os partidos de centro e direita sugerem agendas cada vez conservadoras e submissas aos mercados. Por temer o confronto, a velha esquerda iguala-se. Quem cresce são os outsiders de extrema-direita: Trump, o Brexit, Marine Le Pen, o filipino Rodrigo Duterte, a Alternativa para a Alemanha e tantos outros.
Há exceções – poucas porém notáveis. Na Espanha, em poucos anos, o partido-movimento Podemos desafiou o sistema político (a “casta”) e, ainda assim, obteve mais de 20% do apoio popular. No Chile, o mesmo ocorreu com a Frente Ampla. Por enquanto, o exemplo mais notável é o de Jeremy Corbyn, na Grã-Bretanha. Lançando-se desde uma posição marginal no acomodado Partido Trabalhista, aproveitou brechas democráticas na estrutura da organização, empolgou sua militância, aproximou-se da juventude e se tornou um fenômeno. Enfrenta a mídia de mercado, defendendo ideias hostilizadas por ela (os serviços públicos de excelência, mais impostos para os ricos, a reversão das privatizações). É provável que se converta no próximo primeiro-ministro do país. Algo semelhante seria possível no Brasil?
Há muitos sinais de que, com ou sem Lula, a resposta é sim. Nos dois anos em que pôde apresentar e defender sua candidatura – de março de 2016, quando foi coagido a depor e saiu-se com o discurso da jararaca viva, até agora –, o ex-presidente figurou como um fenômeno. A mídia o demonizou sem tréguas. Cada delação premiada de seus detratores, cada pronunciamento do juiz Sérgio Moro, convertia-se num factóide político, trombetado em múltiplos minutos nos jornais televisivos. Mas ao invés de despencar, como o pensamento tradicional esperaria, o apoio a Lula cresceu incessantemente. Chegou a 37%, nas últimas pesquisas de intenção de voto. Caso não fosse perseguido, tudo indica que se elegeria com folgas, talvez já no primeiro turno.
A força de Lula reside na empatia, na inteligência, em sua trajetória de resgate das maiorias, em seu carisma de plebeu capaz de sensibilizar os seus iguais. Algumas destas características são irreprodutíveis. Mas há um núcleo que transcende o indivíduo. Ele é composto pelo resgate do país e dos direitos.
O ex-presidente nunca quis transformar estas ideias em programa. Seu estilo, para o bem e para o mal, é sua personalidade. Porém agora, sabido que Lula não poderá se candidatar, será preciso procurar, para as mesmas propostas, outros caminhos – ligados menos a carismas, e mais a propostas.
Apresentar o anti-Temer – e principalmente o pós-Temer – parece um caminho politicamente mobilizador e eleitoralmente viável. Os índices ridículos de popularidade do presidente (4,8%) indicam algo. O país está farto de corte de direitos, das decisões sem consulta alguma à sociedade, do governo apoiado nas máfias parlamentares, da venda do patrimônio nacional, da humilhação.
Como construir, sem Lula, o contraponto a tudo isso – que ele representava pela própria evocação de seu governo e de sua trajetória pessoal? Será preciso furar o bloqueio da mídia, que fará tudo para demonizar propostas heterodoxas. Mas há uma trilha clara: ir muito além das “reformas fracas” que, segundo André Singer, o lulismo expressou. Compreender, como Jeremy Corbyn, que em tempos de ataque aos direitos sociais e de anulação da política, é preciso dizer não resolutamente; assumir a revolta popular conta a política sequestrada; politizar este movimento.
Passar da resistência às alternativas. Que Reforma Tributária, para manter e ampliar os direitos previdenciários, o SUS, uma Educação Pública de excelência? Que Reforma Política, para estabelecer mecanismos de democracia direta e participativa. Quais políticas para a Reforma Urbana, as cidades para todos, uma Segurança Pública cidadã, um novo modelo agrícola, uma política energética que valorize as fontes limpas que o país tem em abundância, o combate ao racismo e ao patriarcalismo?
Na construção de um novo projeto de transformações, há um mundo a desbravar – e ele vai muito além das eleições. Mas para construí-lo, talvez, seja necessária uma nova esquerda. É o que veremos na parte final de nossa análise.
Depois dos atos gigantescos por Marielle Franco, resistência à prisão de Lula volta a demonstrar que há multidões dispostas a agir. O que falta é quem ocupe o papel que os partidos abandonaram
O impasse dos projetos de emancipação que marcaram os séculos XIX e XX é um drama central de nossa época. Diante da miséria social e ambiental provoca pelo capitalismo, há intensa revolta. Mas faltam novos projetos, formas de organização e ação. Surte uma questão. As respostas do sistema à crise são cada vez mais destrutivas. Pense, por exemplo, na invasão das comunidades do Rio de Janeiro pelo exército, ou no desmonte dos sistemas públicos de Saúde e Educação, na Europa. No entanto, como não há uma alternativa real, as chances da própria resistências diminuem. Exaustas, as sociedades, enfim, submetem-se.
No Brasil, disseminou-se recentemente uma explicação oportunista para tal problema. Estaríamos vivendo uma “apatia social”. Confrontadas em seus direitos, as maiorias, por alguma razão nunca explicada, teriam deixado de lutar. Segundo esta hipótese, o fenômeno teria deixado a esquerda institucional sem opções.
Talvez valha a pena examinar uma hipótese oposta a esta. É mesmo possível falar em passividade? Isso não significa deconhecer, por exemplo, as lutas dos secundaristas, dos sem-teto, dos vários feminismos (inclusive o das mulheres periféricas e negras?). E se o problema estiver no polo oposto da equação? E se a explicação para a “falta de respostas” diante da ofensiva neoliberal estiver não no cansão das multidões, mas na demissão de suas supostas lideranças?
Considere dois fenômenos recentes. Embora tenha resultado em mobilização menos numerosa, a prisão infame de Lula gerou comoção nacional e internacional. Semanas antes, a execução de Marielle Franco levou centenas de milhares às ruas. É evidentemente impossível falar em “passividade”, diante de tais fatos.
Mas o que se propôs a estas multidões? Que tipo de ação autônoma ela puderam executar na sequência, de forma articulada? Nem os partidos de esquerda, nem as frentes Brasil Popular e Povo em Medo, ousaram oferecer uma resposta. A energia levada às ruas dispersou-se.
Sim: a emergência, entre outras, da consciência negra mobilizadora, dos novos feminismos, das lutas secundaristas – que também evidenciam o protagonismo das meninas – representa alvo muito novo e promissor: o ponto de partida principal. Mas como dar-lhe universalidade? Em outras palavras, como propor a uma secundarista em luta caminhos para transformar não apenas seu ambiente escolar, mas o mundo que levou à devastação do ensino público, em especial após a Emenda Constitucional 95?
A resposta não é fácil, e não está pronta – nem no Brasil, nem em lugar algum. Há muitas dúvidas. Ainda são possíveis os grandes projetos que enxergam o mundo em sua totalidade? Se não eles, o quê? A mera multiplicação dispersa das lutas particulares? Mas como, se as forças desumanizantes parecem cada vez mais poderosas, articuladas e implacáveis?
Estamos em busca de respostas. Para encontrá-las, será preciso generosidade, diálogo, desapego político. Algo, porém, parece claro: chega de falar em “apatia social”. Trata-se de uma resposta fácil e pobre. Transfere responsabilidades, mascara problemas, aplaca artificialmente certa angústia. Não conduz a nada. Quem quer de fato mudar o país e o mundo precisa assumir sua própria responsabilidade de enxergar o novo e encontrar as respostas que ainda não temos – em vez de sair à caça de respostas fáceis.
Esta série de textos e vídeos reflete um debate interno, do qual participaram André Takahashi (Outras Palavras), Antonio Martins (OP), Cauê Ameni (Autonomia Literária), Gabriela Leite (OP), Lívia Ascava (Matrioshka) e Michelle Coelho (Rizoma Livros)| Vídeos: Gabriela Leite
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Quatro hipóteses sobre uma disputa não encerrada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU