18 Janeiro 2018
Francisco apoia mapuches, mas exige fim da violência que “torna mentirosa a causa mais justa”. Presença de bispo acusado de acobertar denúncias de violações sexuais também é motivo de tensão.
A reportagem é de Carlos E. Cué e publicada por El País, 17-01-2018.
A visita do Papa ao Chile, que há algumas semanas parecia uma viagem sem muita importância, torna-se cada vez mais complicada. Depois de um dia intenso em Santiago, dominado pelos protestos contra os abusos sexuais na Igreja chilena, pelos quais o papa Francisco pediu perdão, o segundo dia em Temuco, a capital da Araucanía e coração do conflito da etnia mapuche, também foi conturbado por incêndios contra outras três igrejas católicas e uma evangélica, conduzidos, muito provavelmente, por grupos dessa etnia, a mais importante do país, que reivindica essas terras tanto no Chile quanto na Argentina desde que esses povos foram dizimados no final do século XIX. Além disso, um outro grupo incendiou três helicópteros em uma empresa da região e outro, que tentou bloquear a estrada, feriu um policial com um tiro em um confronto. Esses grupos exigem o retorno das terras que estão agora nas mãos do setor privado.
Os ataques com artefatos incendiários são frequentes na região da Araucanía, onde nos últimos anos houve mais de uma centena de atentados contra maquinaria florestal e templos religiosos, ondas de violência onde vários comuneiros de origem mapuche, policiais e agricultores morreram. Os mapuches também foram mortos pelas mãos da polícia; a morte mais recente, de Rafael Nahuel, ocorreu na Argentina, causada por tiro. O conflito marca há décadas as comunidades mapuches, que reivindicam terras ancestrais de empresas florestais ou agrícolas. Antes da chegada dos conquistadores espanhóis no Chile, em 1541, os mapuches ocupavam essas terras do rio Biobío até 500 quilômetros mais ao sul. No final do século XIX, campanhas de conquista e extermínio no Chile e na Argentina levaram os mapuches a perder todas as suas terras. Só no Chile estima-se a morte de 10.000, dos 190.000 que habitavam a região em 1881, quando o Estado respondeu com crueldade a um levante mapuche e entregou as terras aos colonos europeus.
Esta tensão e o medo do Governo do Chile de um ataque contra o Papa fizeram com que toda a área de Temuco fosse militarizada. Até 4.000 agentes foram mobilizados para impedir incidentes, conseguindo que o trajeto do Papa fosse tranquilo, mas mobilizando um impressionante aparato. Da aterrissagem no aeroporto de Temuco até o aeródromo de Maquehue, a estrada estava cercada por soldados e veículos blindados, transformando a região quase em uma zona de guerra.
Neste ambiente de grande tensão, o Papa celebrou sua missa multitudinária na zona mais pobre do Chile, onde tentou acalmar os ânimos e assumir o papel de mediador entre os mapuches, que reivindicam terras, e o Estado chileno, que combate duramente os ataques dos indígenas e inclusive aplicou a lei antiterrorista contra eles, o que motivou críticas internacionais. Francisco se posicionou claramente pelos direitos dos mapuches, povoando a missa com gestos para eles.
O Papa começou a missa em sua língua, o que motivou muitos aplausos, enquanto um grupo de membros desse povo originário, com suas vestimentas tradicionais, cantava e oferecia uma cerimônia em homenagem ao Pontífice no meio da missa. Depois, ele se reuniu com alguns de seus representantes. Mas, ao mesmo tempo em que defendia sua causa e seu direito de exigir as terras que foram tomadas de seus antepassados, Francisco exigia também que terminassem com a violência, embora não tenha feito menção explícita à queima de igrejas.Francisco colocou no mesmo nível dois tipos de violência: a do Estado, que não cumpre as promessas feitas aos mapuches, e a dos grupos que atacam e queimam todo tipo de estabelecimento, o que já chegou a provocar mortes. Para boa parte da opinião pública chilena e argentina – o território reivindicado está nos dois países –, trata-se de terroristas que devem ser combatidos com a maior dureza. Para o Papa argentino, são grupos que devem frear imediatamente a violência, mas que exigem um direito legítimo e devem ser ouvidos.
“Existem duas formas de violência”, analisou o Papa. “Em primeiro lugar, elaborar belos acordos que nunca chegam a se concretizar. Isso também é violência, porque frustra a esperança. Em segundo lugar, uma cultura do reconhecimento mútuo não pode ser construída com base na violência e na destruição, que termina provocando perdas de vidas humanas. Não se pode pedir reconhecimento aniquilando o outro. A violência acaba tornando mentirosa a causa mais justa.” Esse trecho do discurso recebeu aplausos das 150.000 pessoas reunidas no aeródromo de Maqueue, boa parte delas integrantes da comunidade mapuche, embora houvesse católicos de todo o sul do Chile e também da Argentina, que vieram expressamente e liderados por um amigo do Papa, o ativista Juan Grabois.
Os aplausos chegaram nesses momentos específicos, mas em nenhuma das missas multitudinárias do Papa foi observado um grande fervor por uma personalidade que em outros países gera uma adesão incondicional e se transformou em estrela mundial. De fato, apesar dos milhares de pessoas presentes nas duas grandes concentrações, podiam-se perceber importantes espaços vazios em todas as zonas isoladas pela segurança.
O Papa não evita nenhum tema delicado. De fato, havia sido criticado por escolher este aeródromo porque ali, durante a ditadura de Pinochet, cerca de 600 pessoas foram detidas e torturadas; várias outras desapareceram a partir desse centro de detenção. Francisco decidiu falar do assunto diretamente: “Celebramos a eucaristia neste aeródromo, onde ocorreram graves violações de direitos humanos. Oferecermos esta celebração por todos os que sofreram e morreram, e pelos que levam nas costas o peso de tantas injustiças.”
Francisco conseguiu superar sem incidentes o momento mais delicado para a segurança da viagem, mas essa visita parece ser tudo, menos tranquila. O Vaticano esperava terminar com a polêmica sobre os abusos sexuais com a decisão do Papa de receber em Santiago, na terça-feira, algumas vítimas de forma privada – embora não as mais conhecidas que lhe haviam pedido um encontro. Mas o incêndio não se apaga. Sobretudo porque tem um grande protagonista que se nega a adotar um papel discreto: o bispo de Osorno, Juan Barros, acusado pelas vítimas de acobertar os abusos do sacerdote Fernando Karadima.
No primeiro dia, minutos após o Papa, que sempre defendeu a inocência de Barros, ter dito que sentia “vergonha” dos abusos, Barros participou, como todos os demais bispos, da missa multitudinária em Santiago e foi o grande protagonista do dia com suas declarações à imprensa insistindo que as vítimas que o acusam estão mentindo. No segundo dia, Barros inclusive viajou no mesmo avião que os jornalistas chilenos e internacionais a Temuco. Na chegada, portanto, houve um enorme tumulto que o transformou de novo em protagonista. Os repórteres lhe perguntavam se era consciente de que sua presença estava arruinando a visita do Papa e sua mensagem a favor das vítimas, mas Barros, cada vez mais nervoso e encurralado pelas câmeras –seguranças o protegeram para que pudesse evitá-las – só repetia que nunca havia presenciado os abusos. E suplicava aos jornalistas: “Peço a vocês que me deixem tranquilo.” Finalmente, depois de um longo momento de perguntas aos gritos, corridas e uma enorme tensão muito pouco habitual numa visita do Papa, Barros pôde se refugiar entre os Carabineiros [a política militarizada chilena] e se esquivar da imprensa. Mas a polêmica não diminui – e compromete uma viagem que parecia tranquila, mas que se complica a cada dia.
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Ataques incendiários complicam visita do Papa à zona indígena no Chile - Instituto Humanitas Unisinos - IHU