05 Dezembro 2017
"Obviamente Roma, que proclamava seu papel primacial sobre o cristianismo, não poderia assistir passivamente a uma iniciativa de paz promovida pelas Igrejas separadas" escreve Daniele Menozzi, professor da Scuola Normale de Pisa e ex-aluno de Giuseppe Alberigo, em artigo publicado por L'Osservatore Romano, 29-11-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
A historiografia realizou profunda análise sobre o contexto internacional em que se engendrou a decisão da Santa Sé de publicar a carta dirigida em 1º de agosto de 1917 por Bento XV aos chefes das nações em guerra. Esses estudos esclareceram que algumas condições pareciam tornar o momento particularmente oportuno para uma iniciativa direcionada a favorecer o início de uma negociação.
No lado dos impérios centrais, de fato, não só o imperador austríaco Carlos I tinha dissolvido o endurecimento de seu antecessor, Franz Joseph, a quaisquer concessões à Itália, mas, inclusive, a assunção da chancelaria alemã por parte do moderado Georg Michaelis oferecia a oportunidade de dar seguimento à moção de paz votada pelo Reichstag em 19 de julho. No lado oposto, o anúncio de uma conferência prevista para Londres em torno de 10 de agosto, com a convocação de todos os governantes dos países aliados com a Entente, proporcionava a oportunidade de acordos rápidos e diretos.
Junto com a conjuntura favorável da política internacional somavam-se outros elementos que pareciam tornar o momento propício para uma intervenção da Santa Sé. Em ambos os campos, os comandos militares registravam o esgotamento dos soldados diante de um confronto bélico que, agora estagnado por anos no combate trincheiras, parecia não ter outras saídas se não destruição, ruína e morte. Também cresciam as inquietações das autoridades civis pela manutenção da ordem interna. A impaciência das pessoas, que agora em todos os lugares precisava lidar com uma dramática escassez de gêneros alimentares, podia resultar, no inverno do quarto ano de guerra, em uma crise social que a propaganda subversiva dos círculos socialistas revolucionários saberia muito bem explorar.
Com toda probabilidade, outros fatores também contribuem para explicar a decisão de Roma. O arcebispo luterano de Uppsala, Nathan Söderblom, após ter lançado uma proposta de uma conferência de paz de representantes das igrejas protestantes, que iria depois de fato acontecer no final do ano, havia assinado no dia de Pentecostes de 1917, juntamente com outros dois bispos, o norueguês Tandberg e o dinamarquês Ostenfeld, um apelo em que eles, como intérpretes da mensagem cristã de paz, ofereciam-se como intermediários para a retomada das relações entre os países devastados pela guerra.
Obviamente Roma, que proclamava seu papel primacial sobre o cristianismo, não poderia assistir passivamente a uma iniciativa de paz promovida pelas Igrejas separadas. Além disso, em discurso ao Senado de 22 de janeiro de 1917, o presidente americano Woodrow Wilson, prospectando uma Peace Without Victory, havia especificado as regras de política, mas também morais, às quais deveriam ater-se as relações internacionais. No início de abril a entrada na guerra dos EUA fazia da visão ética de seu presidente uma das forças com as quais precisava se confrontar quem estivesse preocupado com o futuro da ordem mundial. Agora o legado da cultura católica intransigente, que Della Chiesa havia absorvido em seu percurso de formação e na sua carreira eclesiástica, o tornava extremamente sensível a esse tema.
Como é bem conhecido, em linha geral o “intransigentismo” (catolicismo intransigente) indicava no retorno à sociedade cristã medieval a maneira pela qual o mundo moderno poderia resolver todos os seus males. A concepção geral tinha então um viés mais específico na definição da atitude católica sobre a paz e a guerra. A proposta do retorno para o regime do cristianismo encontrava, de fato, um dos elementos centrais na mítica convicção que, na hierocrática sociedade medieval, o Papa tinha fruído do poder de dissolver por meios autoritativos os conflitos entre os povos, garantindo assim uma pacífica convivência internacional. Essa impostação havia encontrado durante o do pontificado de Leão XIII uma inesperada confirmação: o sucesso da mediação pontifícia entre Alemanha e Espanha sobre a questão das Ilhas Carolinas testemunhava aos olhos mundo católico que no papado residia a única instância capaz de assegurar uma solução pacífica para os conflitos entre países.
É claro que não faltaram desmentidos. Efetivamente, não teve sucesso a tentativa romana por ocasião da conferência que deveria trazer em 1899 à instituição do Tribunal de Haia, para apresentar à Santa Sé como o lugar natural para a arbitragem internacional. No entanto, os documentos do Vaticano atestam a persistência dessa visão. Aos olhos do catolicismo intransigente a assunção por parte do papado de um papel de arbitragem na comunidade internacional não representava o ideológico devaneio de um anacrônico saudosismo medieval; ao contrário, constituía a proposta concreta com a qual o papado leonino - cujo resultado coincidia com o serviço diplomático de Dalla Chiesa – reinseriva-se, após o isolamento da época de Pio IX, no concerto internacional do mundo contemporâneo.
A adesão de Bento XV à concepção intransigente tinha se manifestado desde a sua primeira encíclica, Ad beatissimi, publicada poucas semanas após o início da Grande Guerra. Ali, de fato, o Papa apresentava o conflito como um flagelo divino enviado para os homens como consequência da apostasia da sociedade moderna da orientação eclesiástica que havia começado com a secularização produzida pela Revolução Francesa e que agora encontrava seu mais recente êxito no emprego generalizado das terríveis armas de destruição inventadas pela modernidade. Não se deve certamente esquecer que essa retomada dos esquemas interpretativos elaborados pela cultura intransigente traduzia-se também na rejeição daquela sacralização da guerra que estava começando a seduzir vários expoentes, mesmo conceituados, das diversas igrejas nacionais.
Mas também é evidente que tal interpretação do conflito comportava uma indicação perspectiva de todo o restante por algumas pessoas, como Toniolo, claramente explicitada. Existia um caminho para restaurar pacíficas relações entre os povos e os estados: bastava retornar, como na Idade Média, a uma sociedade cristã dirigida pelo papado.
Bento XV estava operando em suma, uma específica construção de sentido relativa à guerra recém começada. O Papa recordava aos fiéis – mas, mais genericamente a todos os homens de seu tempo - que, como punição pelo afastamento da sociedade moderna das normas cristãs, a guerra só poderia ser superada na medida em que se abandonassem os pecados que a haviam produzido. Entre esses, assumia um papel central o pecado da modernidade: a independência da igreja na organização da sociedade civil. Dessa forma, o conflito, mesmo continuando a manter uma conotação negativa, também parecia como uma possível maneira de restauração daquela pacífica civilização cristã que encontrava seu referencial ideal em um regime de cristandade sob a direção pontifícia. Os sacrifícios e os sofrimentos impostos por uma guerra fruto da apostasia do mundo moderno tornavam-se inteligíveis e justificáveis na perspectiva da reconstrução de um ordenamento cristão da sociedade civil.
Não é aqui o lugar para analisar os diversos aspectos e as múltiplas articulações que no mundo católico teve a justificação do conflito como oportunidade para a reconfessionalização dos Estados e para o restabelecimento do Governo de 1917, inscrita na perspectiva de uma reafirmação da centralidade do papel papal na cena política mundial. Isso é evidenciado inclusive por algumas respostas do Governo ao documento romano. Independente da atitude italiana — inevitavelmente marcada por temores por uma internacionalização da questão romana ao término do conflito – algumas chancelarias viram, de fato, na intervenção do Vaticano para definir o terreno sobre o qual fosse possível o entabulamento das negociações, o caminho com que, ao assumir o papel de mediador, o papado pretendia fortalecer a sua autoridade política.
Além disso, a interpretação dada ao documento pela própria Santa Sé deixava poucas dúvidas sobre isso. Em 7 de outubro de 1917, o Secretário de Estado, cardeal Gasparri, enviava ao arcebispo de Sens, monsenhor Chesnelong, uma carta, mais tarde divulgada ao público através de publicação no "La Croix" e " La documentation catholique". Ali respondia quanto ao juízo negativo sobre a nota que, na França, mesmo nos círculos católicos, havia encontrado uma expressão particularmente forte, como evidencia o famoso caso Sertillanges. O secretário de Estado do Vaticano, alegando querer esclarecer os objetivos reais do Pontífice, escrevia que Bento XV pretendia com aquele ato "assumer l’office de médiateur, faisant du mieux possible pour amener les nations belligérantes, dont chacune prétend avoir raison, à déposer les armes, à entrer en conversation, à se réconcilier". A interpretação, que poderíamos até mesmo definir como autêntica, das palavras do Papa transferia inequivocamente sua atuação para o âmbito político-diplomático. Mas também era evidente que nesse jogo o autor da mediação terminava por assumir, em relação às partes envolvidas, uma maior relevância e autoridade.
No entanto, acredito que seria redutivo restringir a leitura da nota apenas para esse aspecto. Não há dúvida de que, à luz das declarações públicas feitas anteriormente pelos litigantes, o texto da nota se alongava sobre um possível caminho para iniciar as negociações relativas às questões territoriais que dividiam a França da Alemanha e a Itália da Áustria; ao arranjo geopolítico da Polônia, Armênia e os estados balcânicos; à restituição da independência da Bélgica ocupada pelas tropas alemãs; à solução, tramite recíproco indulto do problema colocado pelos danos e pelos custos de guerra. Mas no documento encontra-se muito mais.
Estavam ali também os princípios de tipo político-moral que deveriam poder assegurar uma paz duradoura: o desarmamento - cuja modalidade concreta de execução, ou seja, a supressão simultânea e recíproca do serviço militar obrigatório, Gasparri teria mais adiante afirmado mesmo em intervenções públicas - a instituição de arbitragem para a resolução de litígios entre os estados, com precisas sanções para o estado que a ela se esquivasse; a definição dos futuros acordos europeus com base no critério das aspirações dos povos, no lugar do mais restrito princípio de nacionalidade, de modo a proporcionar inclusive estados multiétnicos; a completa liberdade dos mares.
Porém, não se pode sustentar que a enunciação de tais princípios constituísse o elemento mais importante de novidade da nota pontifícia. Afinal, além de uma maior ou menor proximidade com o discurso wilsoniano relativo à organização da paz, a sua proclamação ainda fazia parte do exercício daquela suprema autoridade moral que a Santa Sé considerava inerente à sua função de guia do mundo contemporâneo. A carta continha na realidade um outro aspecto que a tornava uma passagem extremamente significativa no milenar percurso da Igreja católica relativo à atitude a ser mantida sobre a paz e sobre a guerra, e que a tornou um marco na deslegitimação religiosa da guerra que aconteceu no século passado.
Refiro-me, naturalmente, àquela definição da guerra como um "massacre inútil" que hoje retorna com insistência nas celebrações do centenário. A frase é, de fato, frequente no discurso eclesiástico para mostrar que Bento XV antecipou, profeticamente, a posição que atualmente vê a correta resposta católica contra a guerra no método da não-violência. Mas, de forma mais ampla, emerge nas comemorações públicas do aniversário como categoria interpretativa daquele trágico evento.
Acredito que, para entender seu significado histórico real, seja necessário partir de uma apropriada reconstrução da linha adotada por Bento XV sobre a questão da paz e da guerra, começando com o esclarecimento das orientações assumidas no início da conflagração.
O Papa já tinha de imediato prospectado como critério para a orientação dos fiéis o princípio fundamental da teologia da guerra justa que costuma ser chamado de princípio da presunção. Presumia-se de fato que apenas os governantes tinham as informações necessárias para determinar se, como resultado de uma violação da justiça nas relações internacionais, fosse necessário ou não o recurso à violência bélica para restaurá-las. Isso resultou em um corolário fundamental. Uma vez que eles tivessem decidido começar uma guerra, apenas um único comportamento era moralmente aceitável para os católicos: a diligente submissão às ordens de autoridade. De fato, através do exercício da virtude da obediência, eles poderiam adquirir méritos em vista do bem primário que eram obrigados a perseguir, a salvação depois da morte.
Bento XV tinha muitos motivos para dar essa indicação. Além da continuação de uma tradição doutrinal antiga que remontava a Santo Agostinho e São Tomás, o recurso a essa legitimidade religiosa da guerra permitia-lhe o governo de uma Igreja universal em que as Igrejas nacionais estavam fortemente envolvidas no apoio ao esforço bélico de seus respectivos países. Enquanto se aguardava que o resultado do conflito esclarecesse se, nos desígnios da Providência, tivesse chagado o momento do retorno ao regime do cristianismo, tal doutrina permitia aos católicos dos dois lados matar uns aos outros sem questionar a unidade católica da qual o Pontífice era guardião. Além disso, também dessa forma o Papa poderia combater a infiltração no mundo católico de leituras nacionalistas da guerra que a apresentavam como uma cruzada em que a morte pela pátria era retratada como um martírio capaz de permitir o acesso automático à vida eterna.
Reconduzir o empenho bélico do crente a um mero dever de obediência, de acordo com os padrões da teologia da guerra justa, evitava perigosos deslizamentos para a divinização da nação e a exaltação do martírio pela pátria.
Mesmo endossando essa legitimação ética e religiosa da guerra, o Pontífice nunca esqueceu que a fé cristã estava intimamente ligada a uma mensagem de paz. Nem se limitava, diante de um mundo moderno que rejeitava os ensinamentos da Igreja, às exortações, mais ou menos cordiais, para a restauração da paz. De fato, ele tinha tentado fazer com que penetrasse entre os católicos a convicção de que, se fossem obrigados a lutar por obediência às autoridades, não por isso precisavam esquecer que a pacificação entre as partes em conflito ainda era um objetivo a ser perseguido. Para esse fim, ele recorreu a um dos recursos simbólicos mais eficazes a que a Igreja tradicionalmente confia a transmissão de seus ensinamentos, especialmente para as populações iletradas: a esfera do culto.
Na época a liturgia romana oficial previa uma Missa pela Paz, cujo texto - aliás, com anotações de orientação muito variada - foi colocado em circulação durante o conflito nas várias línguas faladas, de modo a tornar compreensíveis as orações em que a profissão de fé cristã e a paz apareciam intimamente ligadas.
Mas Della Chiesa não parece ter dado uma atenção muito especial a esse elemento. De fato, a decisão de permitir ou não a celebração de um rito com conotação tão específica – da mesma forma, aliás, que a da celebração da missa in tempore belli - foi deixada para cada local específico, na dependência das necessidades próprias e concretas de suas dioceses. Em vez disso, o Papa se comprometeu pessoalmente e constantemente em difundir orações das quais emergisse a centralidade e a ineludibilidade do apelo à paz.
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Como nasceu a categoria interpretativa da Grande Guerra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU