04 Julho 2017
O chanceler das Pontifícias Academias, Marcelo Sánchez Sorondo, defendeu que os argentinos “deveriam ter uma visão menos provinciana” sobre as condutas do Papa Francisco e assinalou que deveriam estar “muito orgulhosos” porque “defende os pobres”. “O Papa é um homem de muita sabedoria e bondade”, acrescentou o bispo argentino que trabalha com Francisco no Vaticano e diante das reiteradas críticas e leituras políticas sobre suas atitudes disse: “Eu penso que os argentinos deveriam ter uma visão menos provinciana. Todos os argentinos deveriam estar muito felizes por tê-lo como Papa”.
A entrevista é de Sergio Rubin, publicada por Clarín, 02-07-2017. A tradução é de André Langer.
O convite dirigido à Procuradora-Geral Alejandra Gils Carbó que você assinou para participar de um colóquio no Vaticano provocou uma polêmica na Argentina, porque ela é muito questionada. O convite foi lido como um apoio do Papa a ela...
A pedido do Papa, a Academia está fazendo um estudo sobre o fenômeno das novas formas de escravidão, do tráfico de pessoas tanto para trabalho escravo como para a prostituição e até mesmo para o tráfico de órgãos. Fizemos muitos encontros e consideramos que uma das coisas que é preciso fazer é criar consciência na sociedade, de cima para baixo e de baixo para cima, mas também implementar ações para libertar, segundo estimativas, cerca de 60 milhões de vítimas. Por exemplo, a prostituição é, hoje, um negócio maior que a venda clandestina de armas. Está-se falando de que movimenta 150 bilhões de dólares ao ano. Então, não podemos ficar calados e devemos agir. Reunimos os líderes religiosos, os prefeitos de importantes cidades do mundo e também juízes e promotores. E agora estamos convocando juízas e promotoras, que, naturalmente, têm uma sensibilidade especial na defesa da dignidade e da liberdade de cada mulher.
Repito a pergunta: Gils Carbó foi convidada por seu cargo ou para apoiar a sua gestão?
Alguns dizem que não devemos convidá-la, mas ela é a procuradora-geral de um país, ela está à frente do Ministério Público. Creio que é importante que venha. Ela já veio a outros encontros. É verdade que cada vez que convidamos juízes que são importantes cria-se uma polêmica, mas o fazemos pelo cargo que ocupam e porque se ocuparam e ocupam destes temas, independentemente da sua afinidade política. Nunca tivemos problema com os juízes e promotores que convidamos de outros países, mas com a Argentina sempre temos problemas. Além disso, convidamos juízes que aparentemente são favoráveis ao Governo. Desta vez, convidei uma juíza que me foi sugerida pelo embaixador junto à Santa Sé, que, naturalmente, é nomeado pelo Governo. De modo que se pode dizer o que se quiser, mas a realidade objetiva não é essa. E se nos propõem juízas e promotoras que trabalham com a questão, ótimo!, vamos convocá-las.
Ou seja, o problema com Gils Carbó precisa ser resolvido pelos argentinos?
Isso é evidente. Mas enquanto ela for a procuradora-geral, nós a convidaremos, porque tem todo o direito de ser convidada. Quer gostemos ou não, o cargo existe e quem o ocupa neste momento é ela. E o problema que iremos discutir, com ela e os outros convidados, é estritamente as novas “escravidões de escravidão”. E é importante que ela tome consciência cabal do drama e dialogue com outras pessoas para ver quais são as melhores práticas para erradicá-las. E em relação ao Estado, nós consideramos que o melhor modelo para enfrentar a prostituição é o nórdico, que a Suécia implantou há cerca de 20 anos e que penaliza – pela primeira vez na história – severamente os consumidores. Tomara que seja aplicado na Argentina. Acho que Mendoza já o está fazendo. A França acaba de fazê-lo por lei, o primeiro país latino. Graças a Deus, depois de quatro anos que estamos nos ocupando com estas questões vemos que começam a aparecer respostas importantes.
Gustavo Vera costuma ser qualificado como “o candidato do Papa” e seu partido como “o partido do Papa”. É correto dizer isso?
Vera tem nos ajudado muito. Creio que ninguém pode negar que ele é a pessoa que mais se ocupou no país de erradicar, justamente, uma destas formas de escravidão: a prostituição. Ele conseguiu o fechamento de muitos prostíbulos. Quando passo por Recoleta, um sobrinho meu me recorda: aqui havia um prostíbulo de luxo que Vera fechou. A fundação que ele criou, La Alameda, não se ocupa apenas do combate desse flagelo, mas também de denunciar o trabalho forçado, descobriu muitos lugares de trabalho forçado. E ele conseguiu soluções de trabalho digno para as vítimas, incluindo a famosa La Salada. Sem dúvida, Vera é honesto, um homem de bem. E tomara que pessoas honestas se envolvam na política. O Governo necessita de uma oposição honesta. Todos os governos precisam. Porque, como diria Lord Acton, o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente. De maneira que o Governo deveria estar contente.
Mas o Papa apoia ou não a sua candidatura?
Como o Papa vai se meter nessas coisas! Certamente sabe da sua candidatura, mas não se pode dizer que a apoia. Outra coisa é que esteja feliz que seu amigo e colaborador contra o tráfico de pessoas incursione na política. Isso não tem nada de ruim. Ao longo de sua vida sacerdotal e episcopal sempre apoiou aqueles que, tendo vocação, se comprometem com a política, porque, exercida retamente, é a forma mais elevada da caridade, como dizia um pontífice. Mas, naturalmente, ele não se mete nas opções partidárias e nas candidaturas.
Qual é a sua leitura do fato de que o Papa vai visitar em janeiro o Chile, mas não a Argentina?
Sobre isso não sei nada. Não tive oportunidade de falar com o Papa sobre essa questão, de maneira que não quero dizer coisas que compliquem o panorama. O que me ocorre como hipótese é que todos os Papas, e este Papa não é exceção, são homens de paz. Vimos como Francisco procura contribuir para a paz na África, Ásia, América Latina. E tem como programa o Evangelho em geral e as Bem-aventuranças em particular, onde Jesus diz: “Bem-aventurados os que buscam a paz, porque eles serão chamados filhos de Deus”. Ir à Argentina para gerar, não a paz, mas mais divisão... Suponho que seja essa a explicação: não vai para não aumentar as divisões. Estará esperando pelo momento apropriado.
Você sabe que muitas pessoas pensam que Francisco não nutre simpatias por Macri...
Que não gosta do Macri...? Como não vai querer que o Governo vá bem e o Presidente também! O Papa é um homem de ordem. Ele dizia: cuidem da Cristina para que não a destituam do cargo antes do fim do mandato. Hoje dirá: cuidem do Macri... Não penso que queira outra coisa que não seja o correto funcionamento das instituições. Mais ainda o desempenho de um presidente. E quanto mais um presidente argentino que já recebeu duas vezes. Afora que já recebeu os seus ministros várias vezes. Eu não concordo com essa interpretação que não corresponde aos fatos.
E por que recebeu a Hebe Bonafini e enviou terços e uma carta para Milagro Sala?
Quanto a Bonafini, ele mesmo explicou isso várias vezes. É um homem que vive o Evangelho do perdão e perdoa. Bonafini fez de tudo a ele e ele a perdoou porque está arrependida. Em relação a Milagro Sala, é uma pessoa que está presa e existe um mandamento evangélico de visitar os presos: é uma das obras de misericórdia. Quando o Papa visitou a prisão de Milão saudou um a um os 800 presos privados de liberdade... Não podendo visitá-la, está perto. Além disso, segundo entendi, dizem que Milagro Sala disse uma coisa que é bastante certa: eu posso ter roubado, mas há pessoas que roubaram muito mais e, contudo, estão soltas.
Acrescento mais uma crítica que alguns fazem a ele: que não condena veementemente a Nicolás Maduro e o regime da Venezuela...
Vamos ver... É evidente que está fazendo todo o possível para contribuir para a solução da crise. Entre muitas outras coisas, convocou presidentes para, entre si, buscarem uma saída. Mas, isso sim, com a prudência do caso que, sobretudo, todo Pontífice deve ter para evitar males piores.
Deixemos de lado sua relação com a Argentina. Você acha que Francisco está realmente combatendo a pedofilia no clero?
Ele cumpre à risca o princípio da tolerância zero. Não se pode dar um exemplo do contrário. Nisto também segue a Jesus, que disse aos seus discípulos: “É inevitável que aconteçam escândalos, mas, ai daquele que os provoca! Seria melhor que lhe amarrassem uma pedra de moinho ao pescoço e o jogassem no mar” (Lc 17, 1ss).
Por que o Papa encontra tanta oposição para tornar as contas do Vaticano mais transparentes?
A questão das contas do Vaticano já é uma vitória do Papa Francisco: não há mais outras contas além daquelas dos colaboradores e bispos. Não há mais escândalos econômicos, não há forma de lavagem de dinheiro. O Instituto per la Opera della Religione (IOR), como o chamava o grande Pio XI, não é um paraíso fiscal.
Há muita resistência à decisão de Francisco de permitir, sob certas condições, a comunhão aos divorciados...
Os cardeais fazem uma promessa de fidelidade a Cristo na presença do Papa e ao Papa. Em geral, os cardeais são fiéis ao seu compromisso com o Papa. Se não gostam do Papa ou do seu modo de trabalhar, devem esperar a sua renúncia ou morte para mudar. Naturalmente, podem fazer-lhe observações diretamente, mas em privado para evitar a divisão e as tensões na Igreja. Em relação à questão de fundo, Francisco atualizou a virtude aristotélica da epiqueia ou da equidade como regra superior dos atos humanos.
Voltemos ao país: o que você diria àqueles argentinos que se dizem desencantados com Francisco?
Que o Papa é um homem de muita sabedoria e bondade. Por alguma razão, o Espírito Santo – por intermédio do Colégio dos Cardeais – quis que o fizessem Papa: o primeiro latino-americano, americano e jesuíta. Eu penso que os argentinos deveriam ter uma visão menos provinciana. Todos os argentinos deveriam estar muito felizes por tê-lo como Papa. Um Papa que mudou a imagem da Igreja, uma Igreja em marcha com uma nova evangelização. Que defende os pobres assim como está no Evangelho. Seu programa é Cristo e seu compromisso radical é com o Evangelho, em particular com as Bem-aventuranças e Mateus 25: o que se faz ao mais pobre e necessitado dos nossos irmãos ou irmãs é ao próprio Cristo que se faz, curando suas chagas. Creio que nisso é um campeão, e a história vai reconhecê-lo como tal. De maneira que os argentinos deveriam estar muito orgulhosos que da Argentina tenha saído um homem assim.
Dizem que João Paulo II, um pontífice de sólida formação filosófica, ficou impressionado com seus conhecimentos. E aos 56 anos – em 1998 –, colocou-o à frente das prestigiosas Academias de Ciências e de Ciências Sociais do Vaticano, a primeira delas com origens que remontam a quatro séculos (1603) e que conta entre os seus membros uma figura ilustre que dispensa qualquer comentário: Galileu Galilei. Ler a quantidade de seus trabalhos filosóficos publicados oprime, assim como a lista de mais de 40 Prêmios Nobel que integram as instituições que conduz.
Mas o argentino Marcelo Sánchez Sorondo expressa-se claramente, nem mesmo deixa de fazê-lo quando cita Santo Tomás – é um grande especialista – e outros grandes pensadores. Até se poderia dizer que conserva certo ar portenho – distinguido, é verdade – apesar de ter deixado o país há mais de 40 anos. Filho do sempre lembrado político nacionalista que nas eleições de 1973 – nas que ganhou Cámpora – perdeu para De la Rúa a cadeira para senador pela Capital, decidiu entrar no seminário quando estava no segundo ano de Filosofia e Direito da UBA.
Após trabalhar como pároco na igreja San Isidro Labrador de Saavedra, marchou para Roma para aprofundar seus estudos. Nunca mais voltou. João Paulo II o ordenou bispo em 2001. Seu trabalho como organizador de encontros de estudo nas mais diversas disciplinas teve um giro com a chegada de Jorge Mario Bergoglio ao papado. Francisco quis que a Academia de Ciências Sociais se ocupasse do estudo de diversas problemáticas, como o tráfico de pessoas, o tráfico de órgãos, as questões econômicas e sociais e o meio ambiente.
Dom Sánchez Sorondo organizou diversos seminários, mas não oculta sua irritação, porque disse que, embora todos tenham sido um sucesso, “sempre há problemas” com a Argentina. Ele se refere às recorrentes polêmicas relativas à lista de convidados argentinos, dado que entre eles costuma haver vários simpatizantes kirchneristas, o que se confunde com certa indulgência. Ele se defende: são convocados apenas por seu cargo ou seu conhecimento do tema. Embora nunca tenha sido contado entre os bispos argentinos próximos ao então arcebispo de Buenos Aires, hoje Sánchez Sorondo mostra-se firmemente encolunado atrás de Francisco.
Marcelo Sánchez Sorondo nasceu em Buenos Aires, em 1942. Filho de um sempre lembrado dirigente nacionalista, Marcelo iniciou seus estudos de Filosofia e Direito na UBA. Ingressou no seminário portenho de Devoto e foi ordenado sacerdote em 1968 pelo cardeal Antonio Caggiano. Em seguida, foi para Roma, e na Itália doutorou-se em Teologia e em Filosofia. Foi decano na Pontifícia Universidade Lateranense e depois professor da Faculdade de Filosofia dessa mesma casa de estudos. Presidente da Licenciatura de Educação Científica na Universidade Lumsa, de Roma, desde 1998 é chanceler das Pontifícias Academias de Ciências vaticanas.
Um projeto: Terminar um novo ensaio sobre a causalidade dos santos em relação à graça capital de Cristo.
Um desafio: Encontrar os melhores modelos ou práticas para erradicar as novas escravidões e divulgá-los.
Um sonho: Como São Francisco, ser instrumento da graça de Cristo...
Uma lembrança: Muitas das conversas com São João Paulo II e com alguns mestres da alma que a Providência me deu.
Um líder de hoje: É fácil: o Papa Francisco.
Um herói: Gosto de San Martín por sua grandeza heroica na passagem dos Andes e sua honestidade e retidão (tão necessária hoje) e também a beata María Antonia de Paz y Figueroa. Ela criou o clima espiritual da Revolução de Maio. É a mãe espiritual de muitos heróis.
Uma sociedade que admire: As sociedades nórdicas, como a Suécia, a Noruega e a Dinamarca. Estas têm, em geral, as melhores leis contra as novas formas de escravidão. Obviamente que não as admiro pelo clima; nisso prefiro a bela Itália.
Uma pessoa que admire: Espero que a maioria esteja no Céu, como minha sobrinha carmelita Cecilia.
Uma bebida: O verdadeiro vinho que alegra o coração e é também matéria da Eucaristia.
Uma comida: O bom assado crioulo.
Um prazer: Meu grande hobby é nadar em mar aberto.
Um livro: Depois do Evangelho, a Ética de Aristóteles e a Suma Teológica de Tomás de Aquino: são livros em que sempre se descobre algo novo e substancial.
Um filme: Faz muito tempo que não vejo.
Uma série: Faz muito tempo que não vejo.
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“Suponho que o Papa não vai à Argentina para não aumentar ainda mais as divisões”. Entrevista com Marcelo Sánchez Sorondo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU