17 Mai 2017
“O forno crematório é o ápice da desumanização. Ele significa tirar a humanidade do outro, a tal ponto de poder não só matá-lo com intencionalidade, em uma linha de montagem, mas também queimá-lo e reduzi-lo a cinzas.”
A opinião é da filósofa italiana Donatella Di Cesare, professora da Universidade de Roma "La Sapienza", em artigo publicado por Corriere della Sera, 16-05-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Não gostaríamos mais nem de pronunciar nem de escrever estas duas palavras: “fornos crematórios”, senão para manter em mente e recordar às novas gerações o crime hediondo cometidos pelos nazistas nos campos de extermínio. Isso aconteceu apenas algumas décadas atrás na Europa. Justamente, dissemos tantas vezes “nunca mais”. Porque o forno crematório é o ápice da desumanização. Ele significa tirar a humanidade do outro, a tal ponto de poder não só matá-lo com intencionalidade, em uma linha de montagem, mas também queimá-lo e reduzi-lo a cinzas. De modo que não restem vestígios, que quem o cometeu possa negar diante do mundo, possa defender que o crime não aconteceu. Ou, melhor, de modo que o carrasco possa negar até que a vítima jamais existiu.
Mas, nesta era em que os campos de internação se tornaram quase a norma, em que se torturam e se atormentam os inimigos, em que se repetem as execuções em massa, em que se recorre aos gases tóxicos contra as populações desarmadas, contra mulheres, idosos, crianças, chega a notícia de “fornos crematórios”.
O responsável do Departamento de Estado para o Oriente Médio, Stuart Jones, acusa abertamente Bashar al-Assad. As imagens de satélite divulgadas para apoiar essa terrível acusação mostram a construção, perto da prisão de Sednaya, a norte de Damasco, usada para cremar os corpos dos detentos. O nome dessa prisão ressurgiu várias vezes, até mesmo recentemente, graças às denúncias da Anistia Internacional.
Abusos, violências, atrocidades de todos os tipos aos quais foram submetidos os opositores políticos, os “rebeldes”, os “terroristas”. Sabemos – mas muitas vezes fingimos não saber – que muitos, especialmente nos últimos meses, quando o conflito tomou um novo rumo, desapareceram no vácuo.
Uma guerra civil cruel, que durou seis anos, se consumou não muito longe da velha Europa, que, em primeiro lugar, deveria ter impedido aquela série infinita de atrocidades. Hoje, ficamos sabendo que a “depravação” – essa é a palavra usada por Stuart Jones na coletiva de imprensa – alcançou “novos níveis”, atingiu o ápice.
O vácuo em que desapareceram os inimigos de Assad é um forno crematório. Cinquenta enforcamentos por dias. Talvez mais. O que fazer, então, para evitar as valas comuns, que poderiam ser descobertas amanhã? O que fazer para se livrar de corpos volumosos, que poderiam ser uma incômoda prova do massacre? Colocá-los em um forno, torná-los cinzas.
Não há maior insulto à dignidade humana: ofender até mesmo a morte. A ideia de que o cadáver merece respeito, a ideia do sepultamento faz parte do patrimônio ético da humanidade. O cheiro nauseabundo que saía das chaminés dos fornos crematórios foi o sinal do ultraje supremo que Auschwitz infligiu sobre a dignidade dos mortais. Nunca imaginaríamos que uma fornalha funcionaria novamente no mundo.
Esperamos que a Europa, que na sua história recente traz a mancha indelével dos fornos crematórios, não permaneça inerte. As instituições e o povo europeu têm, mais do que outros, o dever de se mobilizarem.
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Fornos crematórios na Síria: o fogo que evoca o abismo. Artigo de Donatella Di Cesare - Instituto Humanitas Unisinos - IHU