27 Setembro 2016
Embora dezenas de dignitários estarão presentes para a assinatura do acordo de paz da Colômbia na segunda-feira, a chave para o sucesso do acordo entre o governo e os rebeldes das FARC foi uma prioridade dada às vítimas. É o que explica um jesuíta que esteve no centro desse processo.
“O último e mais antigo conflito armado no hemisfério acabou”, anunciou o presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, na semana passada ao entregar às Nações Unidas o acordo de paz alcançado em Havana no final de agosto entre o governo e o maior exército guerrilheiro da Colômbia, as FARC.
A reportagem é de Austen Ivereigh, publicada por Crux, 24-09-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Nesta segunda-feira, depois de uma liturgia ao meio-dia na igreja São Pedro Claver de Cartagena, presidida pelo secretário de Estado do Vaticano, o Cardeal Pietro Parolin, o acordo será assinado diante de cerca de 2.500 pessoas. Entre elas estarão 15 chefes de Estado de toda a América Latina, o secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-Moon, o rei Juan Carlos, da Espanha, e o secretário de Estado americano John Kerry.
Santos pediu que todos estejam vestidos de branco, a cor da paz.
O acordo será assinado pelos delegados das FARC e o governo, com Raúl Castro, de Cuba, quem acolheu o processo de quatro anos, como observador.
No entanto, a figuras principais desta cerimônia – a quem realmente deveriam ir os créditos pelo término de uma guerra que já durava 52 anos e que afetou a vida de milhões de colombianos – não serão os chefes de Estado, mas os representantes das vítimas do conflito.
Foi a presença destas pessoas em Havana o que transformou a dinâmica das negociações. E o fato de elas estarem lá era o resultado do trabalho da Igreja – entre eles um jesuíta de 70 anos chamado Padre Francisco de Roux.
Já antes de chegar à Colômbia no início do mês de setembro, eu sabia que “Pacho” Roux tinha sido uma figura-chave no processo de paz. Mas conseguir um encontro com ele não foi fácil.
Quando finalmente conseguimos almoçar juntos na sexta-feira passada, eu já tinha visto a atuação da Igreja em primeira mão: numa oficina desenvolvida na sede da Conferência dos Bispos, por exemplo, assisti padres da região sul, que tem localidades em conflito, receberem formação sobre como trabalhar com os milhares de guerrilheiros que estarão entregando as armas nas paróquias ao longo deste ano ainda.
A oficina foi coordenada pelo Padre Dario Echeverri, da Comissão de Reconciliação Nacional da Igreja Católica, quem me disse como ele e de Roux conseguiram persuadir ambos os lados das negociações a admitir vítimas na mesa de negociação.
Desde agosto de 2014, disse Echeverri, alguns agentes pastorais começaram a levar grupos de vítimas a Havana (houve cinco visitas, com uma dúzia de vítimas em cada vez) para testemunhar diretamente diante daqueles que lhes causaram danos.
Importa dizer que estas pessoas foram escolhidas como vítimas do “conflito armado” em geral – as forças armadas, e os paramilitares, e não somente as FARC –, o que evitou com que qualquer parte envolvida ganhasse destaque. A Comissão de Reconciliação compilou os testemunhos das vítimas em um livro, intitulado “El Corazón de las Víctimas”.
“A presença das vítimas voltou a atenção para o ser humano”, explicou de Roux durante o almoço na cúria jesuíta, região central de Bogotá.
“Até aí a discussão havia se centrado em questões muito reais: corrupção, impunidade, a concentração de riqueza nas mãos de uns poucos e o fato de que os partidos políticos se tornaram máquinas de compra de votos. Mas as vítimas disseram não: estes problemas são sérios, porém o principal somos nós, os colombianos. Nós temos de resolver isso primeiro”. Este “problema” possui raízes profundas na história: nos ciclos das guerras civis e na vingança que desencadeiam uma violência espantosa – às vezes incluindo assassinatos de comunidades inteiras. Os massacres, sequestros e assassinatos extrajudiciais (18 mil, quase nenhum deles processado) são difíceis de enquadrar com o calor humano e a bondade dessas pessoas aqui.
“Compartilhando a mesma religião e uma mesma cultura, como podemos chegar a tais barbáries?” é como que de Roux formula a questão.
Infelizmente, a religião fez parte da resposta.
Como a Espanha e a Polônia, segundo ele, a Colômbia era uma comunidade católica antes de ser uma nação, em que a ideia de uma “guerra justa” encontrava-se profundamente enraizada. Assim como Dom Ezequiel Moreno (1848-1906) – canonizado por São papa João Paulo II – costumava afirmar que era um pecado mortal ser um progressista (mensagem que ele colocou em seu caixão), também o dizia Pe. Camilo Torres (1929-1966), que morreu empunhando uma arma e que dizia ser um pecado mortal não ser um revolucionário na Colômbia.
De Roux fez parte do congresso organizado pelo Vaticano/Pax Christi em abril que buscou uma mudança no paradigma da “guerra justa”, substituindo-a pela noção verdadeiramente cristã de “paz justa” – ideia que o Pontifício Conselho “Justiça e Paz”, liderado pelo Cardeal Peter Turkson, diz que estará no cerne da mensagem papal para o Dia Mundial da Paz do próximo ano.
Uma conversão semelhante aconteceu dentro da Igreja durante o processo de paz. Os bispos com dioceses em regiões afetadas pela violência – tais como Arauca, Catatungo, Chocó e Putumayo – emergiram como figuras significativas dentro da Conferência dos Bispos, cujo presidente é agora o principal “bispo da paz”, Dom Luis Augusto Castro, de Tunja.
O Cardeal Rubén Salazar, de Bogotá, também surgiu como um importante defensor da paz em nível nacional.
Mesmo que nem todos os bispos estejam a favor do acordo de paz, a Conferência dos Bispos tem sido inflexível em suas declarações acordadas no sentido de que não pode haver uma solução militar senão – e unicamente – a paz negociada.
De Roux diz que houve muitos motivos pelos quais, em Havana, o acordo de paz teve sucesso depois de quatro anos de intensa negociação. Após as investidas do ex-presidente Alvaro Uribe, apoiadas pelos EUA, contra as FARC nos primeiros anos deste século, que reduziram as suas fileiras de mais de 20 mil para menos de 10 mil, os guerrilheiros sabiam que não conseguiriam alcançar os seus objetivos políticos por meios militares.
Desta vez, diferentemente de outras negociações de paz, o exército esteve envolvido diretamente. Os negociadores eram altamente capazes. E os cubanos estavam bastante interessados no processo, crendo que um final bem-sucedido era bom para eles também.
Mas o papel das vítimas foi o fator “definitivo”, acredita de Roux.
“No começo, as FARC tinham uma atitude um tanto cínica e sem consideração para com os demais, inclusive as vítimas”, lembra o jesuíta. “No começo, eles diziam: ‘Não temos de pedir perdão por nada. Nós não vitimizamos ninguém; nós somos as vítimas’”.
Mas, aos poucos, quando as vítimas olharam nos olhos dos guerrilheiros e, com coragem, contaram suas histórias, eles começaram a ver que a responsabilidade pelas atrocidades está em todos os lados, mesmo se os motivos forem diferentes. Difundiu-se a percepção de que todos estavam presos num círculo vicioso que causava um imenso sofrimento aos cidadãos comuns, sobretudo à população rural pobre.
“As vítimas, depois de testemunharem as coisas mais horríveis possíveis, terminavam dizendo: ‘Eu quero fazer um grande esforço para perdoar, para que possamos ter a paz nesta terra, e eu convido vocês, que estão matando, a pôr um fim a esta guerra, de uma vez por todas’”.
De Roux está convencido de que “Deus vem trabalhando, abrindo o caminho entre nós, dentro da nossa Igreja, mostrando a nós o caminho. Tenho visto na atitude das vítimas uma demonstração do mistério pascal: testemunhando primeiramente a morte, a capacidade de autodestruição, mas em seguida dizendo que nós colombianos somos mais do que isso, somos capazes de acreditar em nós mesmos – e até mesmo de perdoar”.
De Roux também vê a presença de Deus na conversão dos guerrilheiros – ele traz uma série de exemplos, com destaque para o caso do Pastor Alape, comandante da Frente Magdalena Medio, de 1997.
Pediram a De Roux, que na ocasião encontrava-se na cidade petroleira de Barrancabermeja, para intermediar a libertação de nove engenheiros levados pelas FARC. “Eu disse na ocasião: ‘Não vai haver nenhum dinheiro, não sou a favor de pagar pela liberdade dos seres humanos’. Ao que ele ouviu: ‘Ótimo, nós temos nove sacos de poliestireno, e a cada mês iremos mandar um cadáver até conseguirmos o valor pedido’”.
Em dezembro daquele, o mesmo líder das FARC ano foi para Bojayá, local de um massacre que deixou 79 mortos numa igreja. Aí, assumiu a total responsabilidade e se desculpou.
Esse arrependimento é verdadeiro. Enquanto estive na Colômbia os jornais trouxeram pedidos de desculpas quase todos os dias: pedidos de perdão por parte do governo e das forças armadas. Isso criou uma atmosfera extraordinária. A Colômbia, podemos dizer, é o garoto-propaganda do Jubileu da Misericórdia.
De Roux salienta que estes matadores não se tornaram santos da noite para o dia. No entanto, a mudança em suas atitudes, de uma autojustificação desafiadora para a penitência, é real e drástica.
Neste exato momento, as FARC estão se preparando – caso o acordo de paz seja aceito no plebiscito de 2 de outubro – para se submeter a seis meses vida em locais designados, cercados por soldados, durante o qual entregarão as armas e darão seus nomes para pôr na carteira de identidade.
“Isso é inédito”, diz de Roux. “Algo assim não acontece sem transformações nos seres humanos”.
O jesuíta está ciente das inúmeras falhas presentes no acordo e dos desafios imensos que se encontram daqui para frente para a sua implementação: não só reintegrar os guerrilheiros, mas realizar a reforma agrária, além de ter um mecanismo de “justiça transicional” que permita que as FARC sejam processadas por grandes crimes, mas sem ter de cumprir sentenças na prisão.
“No entanto, por hora este é o melhor acordo possível”, declara o sacerdote, acrescentando que a cerimônia de assinatura desta segunda-feira faz parte do objetivo de tornar o evento o mais legítimo possível e para que tenha uma aceitação por parte da sociedade colombiana.
Pesquisas de opinião sugerem que haverá uma votação pelo “sim” em 2 de outubro, mas há uma profunda divisão o país, e muitos eleitores provavelmente se ausentarão do processo. Mesmo quando estiver aprovado, o acordo precisa ser reconhecido legalmente pelo Congresso e pelo tribunal constitucional.
De Roux diz que Francisco tem acompanhado de perto esse processo, dando um apoio total. Segundo ele, a visita do papa no próximo ano vai ajudar imensamente na consolidação da tarefa de reconstrução pós-guerra.
Como disse o arcebispo de Bogotá, Salazar, ao sítio Crux: “Eu sei que o papa está vindo, mas não sei quando nem por quanto tempo, nem sequer onde ele irá. Mas esta visita será definitivamente importante, pois Francisco pode dar ao país os elementos básicos para vivermos uma nova era na qual podemos edificar a paz”.
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Acordo de paz põe Colômbia no coração do Ano Santo da Misericórdia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU