Por: André | 18 Março 2015
O Papa Francisco foi entrevistado pela Valentina Alazraki, correspondente da Televisa no Vaticano, alguns dias antes de completar dois anos como máximo hierarca da Igreja católica.
O Pontífice falou sobre as reações provocadas por seu correio eletrônico que enviou a um amigo, no qual dizia que se deveria procurar evitar a “mexicanização” da Argentina.
Fonte: http://bit.ly/1DdTV93 |
“Evidentemente, é um termo, permitam-me a palavra, técnico. Não tem nada a ver com a dignidade do México. Assim como quando falamos da balcanização nem os sérvios, nem os macedônios, nem os croatas se irritam. Já se fala em balcanizar algo e é usado tecnicamente; os meios de comunicação usaram o termo muitas vezes”, disse o Papa Francisco.
Reconheceu que seu comentário levantou pólvora e afirmou que, de acordo com estatísticas que consultou, 90% dos mexicanos não se ofenderam com a expressão.
“O que me alegra. Para mim teria sido uma grande dor se fosse interpretado dessa maneira. O próprio governo, depois de ter perguntado, aceitou as explicações. Estas que são as verdadeiras. E está tudo em paz. Ou seja, isso não me fechou as portas para o México. Eu vou ao México.”
O Papa fez referência à violência que atingiu o país nos últimos anos, disse que não é o primeiro momento difícil que o país atravessou ao longo da história e poderá superá-lo. Não concordou em culpar o governo pela situação atual.
“Eu penso que o diabo passou a fatura histórica ao México. Quem tem a culpa? O governo? Essa é a solução, a resposta mais superficial. De alguma maneira, todos temos a culpa ou, ao menos, ao não nos encarregarmos do sofrimento. Mas a maioria do povo mexicano é solidária. E essa é uma das virtudes que vocês têm. Creio que todos têm que colocar o ombro aí, para resolver isso de alguma maneira. Jogar a culpa em apenas um setor, em uma só pessoa, em um só grupo, é infantil.”
O Sumo Pontífice falou sobre a sua intenção de ir a Ciudad Juárez quando voltava das Filipinas. Admitiu que não gostaria de ir a apenas uma entidade do país e por isso preferiu não pisar em solo mexicano naquela ocasião.
“Se eu fosse a Ciudad Juárez, por exemplo, e dali fosse, ou a Morelia, e entrasse por aí, daria um pouco de confusão. Não se pode visitar o México em pedacinhos. O México requer uma semana. Prometo uma viagem ao México como merece e não às pressas e de passagem. Por isso, decidi não entrar no México.”
A entrevista é de Valentina Alazraki e está publicada na Televisa, 12-03-2015. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Papa Francisco, você, no avião que o levava de volta das Filipinas, disse que gostaria de entrar nos Estados Unidos pela fronteira com o México. Essa fronteira tão, tão, significativa. Você é filho de migrantes, seus pais eram italianos, emigraram para a Argentina, você traz no sangue o que é ser migrante. Qual seria o sentido da sua presença aí, nessa fronteira?
Pessoas não apenas do México, mas da América Central, da Guatemala, que cruzam todo o México, para buscar um futuro melhor. Atualmente, a migração é fruto do mal-estar no sentido etimológico da palavra, fruto da fome, de buscar novas fronteiras. O mesmo acontece na África, com toda essa gente que cruza o Mediterrâneo, vindo de países que estão passando momentos difíceis, seja pela fome, seja pelas guerras.
Mas, evidentemente, a migração de hoje está muito relacionada com a fome, à falta de trabalho. A esta tirania de um sistema econômico que tem o deus dinheiro como centro e não a pessoa. E, então, descartam-se pessoas.
Então, um país, quer seja da América, da África, de onde quer que seja, cria uma situação econômica imposta, evidentemente, que descarta pessoas, que, por sua vez, vão para outro lugar em busca de trabalho, ou de comida, ou de bem-estar. Ou seja, o problema migratório no mundo, neste momento, é muito doloroso. Porque, na vcerdade, há várias fronteiras migratórias.
Alegra-me o fato de que a Europa esteja revisando sua política migratória. A Itália foi muito generosa e quero dizer isso. A prefeita de Lampedusa envolveu-se intensamente nisso e à custa de transformar essa ilha de terra de turismo em terra de hospitalidade. O que significa não ganhar dinheiro. Ou seja, há fatos heróicos, não? Mas, agora, graças a Deus, vejo que a Europa está repensando a situação.
Voltando à migração: ali, essa zona, além disso, é uma zona de muita luta de problemas de narcotráfico. Os Estados Unidos, me diziam, não quero revelar estatísticas que depois me criam um problema diplomático, mas me diziam, e não vi isso em nenhuma revista, creio que estão entre os maiores consumidores de drogas do mundo, e a fronteira pela qual a droga entra, a principal, é a mexicana. Então, aí também se sofre, não? Morelia, toda essa região, é uma zona de muito sofrimento, aonde também as organizações de traficantes de droga não vão com desculpas, ou seja, sabem fazer os seus trabalhos de morte, são mensageiros de morte, quer seja pela droga, quer seja por limpar, entre aspas, aqueles que se opõem à droga, os 43 estudantes, de alguma maneira estão pedindo, não digo vingança, mas justiça, e que sejam lembrados.
E, por isso, saio ao encontro, talvez, de uma curiosidade: quis fazer cardeal o arcebispo de Morelia, porque está na frigideira. Ou seja, um homem que está em uma zona muito quente, e é um testemunho de homem cristão, de um grande sacerdote. Mas, podemos retornar ao assunto dos cardeais depois. Digo-o de passagem.
Papa Francisco, você sabe que se referiu aos 43 estudantes, foi um luto, digamos, uma situação muito difícil que o México atravessou. O México é um grande povo. Tem valores, recursos para avançar de alguma maneira. Mas eu creio que a Igreja, os bispos com que você falou, não dão receitas políticas, não dão receitas técnicas, mas dão esperança. Ou tratam de dizer, bom, aqui, como disse quando esteve aqui exatamente o cardeal de Morelia, me dizia: ‘Todos somos responsáveis quando há algo que não funciona bem em um país, em uma sociedade, quando há degradação. E todos temos que colaborar para que essa situação melhore’. Eu penso que neste momento seria importante ter uma palavra de alento, de esperança, um convite para que o México realmente possa superar momentos difíceis.
Este não é o primeiro momento mais difícil que o México está atravessando. Ou seja, engato com a santidade, não? O México passou momentos de perseguição religiosa que produziram mártires. Eu penso que o diabo castiga o México com muita confusão. Por isso. Penso que o diabo não perdoa o México, que Ela tenha mostrado ali o seu Filho. Esta é a minha interpretação.
Ou seja, o México é privilegiado no martírio por ter reconhecido, defendido, sua Mãe. E isto você sabe muito bem. Você encontra mexicanos católicos, não católicos, ateus, mas todos se dizem guadalupanos. Ou seja, todos se sentem filhos. Filhos da que trouxe o Salvador, que destruiu o demônio. Ou seja, a questão da santidade também está unida aí.
Eu penso que o diabo passou a fatura histórica ao México. E, por isso, todas estas coisas, você vê que na história sempre apareceram focos de conflito grave. Quem tem a culpa? O governo? Essa é a solução, a resposta mais superficial. Sempre os governos têm a culpa. Sim, o governo. De alguma maneira, todos temos a culpa ou, ao menos, ao não nos encarregarmos do sofrimento. Há pessoas que estão bem e talvez a morte destes rapazes não as tocou, passou ao largo. Bom, não me tocou, graças a Deus que não me tocou. Mas a maioria do povo mexicano é solidária. E essa é uma das virtudes que vocês têm. Creio que todos têm que colocar o ombro aí, para resolver isso de alguma maneira.
Eu sei que é muito difícil denunciar um narcotraficante. Porque isso pode significar a perda da vida, é uma espécie de martírio. É duro, mas creio que todos, em situações similares, seja no México ou fora dele, têm que pôr o ombro. Ou seja, jogar a culpa em apenas um setor, em uma só pessoa, em um só grupo, é infantil.
Papa Francisco, você enviou um correio eletrônico privado a um amigo da Argentina manifestando-lhe sua preocupação com a crescente difusão do narcotráfico em seu próprio país. E utilizou o termo ‘procuremos evitar a mexicanização’. É normal, esse termo, digamos, foi tomado, feriu suscetibilidades, sensibilidades. O Governo do México pensou que se tratava de uma estigmatização do país ou não reconheceu os esforços que está fazendo ou que procura fazer. A verdade é, o que aconteceu? O que você quis dizer?
Sim. O rapaz. Este rapaz é um dirigente, um homem que trabalhou pela justiça social e trabalha muito, amigo meu, vem da esquerda, do trotskismo, vem daí. É um homem que encontrou Jesus e trabalha pela justiça social e ele me fala das coisas que vive.
Ele me contava que conseguiram descobrir algumas redes de narcotráfico, e isso, e que estavam lutando e que também fecharam uma rede de prostíbulos. Ele trabalha muito na escravização de pessoas, ou seja, fábricas de escravas, com migrantes dos quais tiram o passaporte e os mantêm escravos aí, prostituição, drogas, etc.
E, então, eu disse, bom, não queremos chegar à mexicanização da Argentina. Assim me manifestei, não? Evidentemente, é um termo, permitam-me a palavra, técnico. Não tem nada a ver com a dignidade do México. Assim como quando falamos da balcanização, nem os sérvios, nem os macedônios, nem os croatas se irritam. Já se fala em balcanizar algo e é usado tecnicamente; os meios de comunicação usaram o termo muitas vezes.
Usava-se colombianização, por exemplo.
Também. Eu respondi dizendo que rezo, os acompanho, e, oxalá, não cheguemos à mexicanização, tecnicamente falando. Levantou pólvora, mas a maioria, pelas estatísticas que chegaram até mim, feitas por alguns jornalistas de lá, 90% do povo mexicano não se sentiu ofendido com isso. O que me alegra. Para mim teria sido uma grande dor se fosse interpretado dessa maneira. O próprio governo, depois de ter perguntado, aceitou as explicações. Estas que são as verdadeiras. E está tudo em paz. Ou seja, isso não me fechou as portas para o México. Eu vou ao México.
Papa Francisco, relacionado com esta pergunta. Você, sabemos que tem uma atividade, digamos entre aspas, pessoal muito ativa, você telefona para as pessoas, escreve cartas pastorais, certamente, preciosas. Diante do que aconteceu: você pensou em dizer a estas pessoas que, talvez, devia ter o senso comum que, se eu recebo uma carta do Papa, eu não a publico. Não pensou que, porque é o Papa, já não é o Pe. Jorge. Não pensou em dizer-lhes, olhem, eu telefono para vocês, escrevo-lhes, mas, por favor, isso é privado?
Costumo fazer isso, normalmente. Mas, às vezes, as pessoas não se aguentam.
Metem-no, depois, em confusão. Digo, uma coisa é a correspondência privada.
Esse meu amigo me respondeu pedindo perdão, que jurou que nunca mais vai publicar minhas cartas.
Continua sendo seu amigo?
Sim. Porque, além disso, ele o fez como que dizendo: até o Papa está lutando contra as drogas. É verdade que o fato de tocar em um tema tão delicado, não certo, pode me provocar consequências. Mas eu tenho que dizer: às vezes, eu me senti usado pela política do país. Políticos argentinos que pediam audiência.
Sim, compreendo sua pergunta e quero responder abertamente, embora possa me trazer algum problema pessoal, no meu país. Mas, simplesmente, conto o que aconteceu. Claro, os argentinos quando viram um Papa argentino se esqueceram de todos os que estavam a favor ou contra o Papa argentino. E os argentinos, que não somos humildes, e que somos muito convencidos... Você sabe como se suicida um argentino?
Não.
Não? Sobe em cima do seu ego e pula!
Papa Francisco, temos a sorte de que esta entrevista seja publicada bem no dia do segundo aniversário da sua eleição. Dessa noite inesquecível quando você nos surpreendeu com o seu “buonasera”, “os cardeais foram me buscar no fim do mundo”, e bom, e esse gesto de pedir a bênção. Ainda hoje me arrepia os cabelos só de pensar nisso, porque foi um momento muito forte. Muitos não atinaram para o fato de que você seria o Papa, porque diziam que depois da renúncia do Papa Bento queriam um papa jovem. Sabíamos que você não era, como lhe disse certa vez no avião, um santo de devoção do Vaticano, que não gostava tanto de vir para cá, que vinha o mínimo possível. Então, bom, eu, na verdade, pensei que você diria que não aceitava. O que aconteceu nesse dia, quando se deu conta de que estava sendo cogitado para o cargo e que poderia ser eleito Papa?
A coisa foi muito simples. Eu vim com uma malinha porque fiz o cálculo, e disse que o Papa nunca vai assumir na Semana Santa. Portanto, posso vir tranquilamente e, no Domingo de Ramos, estar em Buenos Aires. Deixei a homilia do Domingo de Ramos preparada sobre a mesa do meu escritório e vim com o necessário para esses dias, mesmo pensando que poderia ser um conclave muito curto, não?
De toda maneira, me preparei até o máximo possível na eventualidade de se fosse mais longo, de tal maneira que tinha a passagem de volta. Podia trocá-la ou adiantá-la. Mas estava com a passagem de volta garantida. Além disso, não estava em nenhuma lista de papáveis, graças a Deus, assim que nem me passou pela cabeça. Nisto quero ser sincero para evitar conversas... Nas apostas de Londres creio que estava em 42º ou 46º lugar. Um conhecido meu, por simpatia, apostou em mim, e se deu muito bem.
Mas tenho que lhe recordar que foi uma irmã mexicana que teve uma grande intuição. Porque você, no sábado anterior à eleição, almoçou na cada de seu amigo, o cardeal Lozano Barragán, e a irmã Estela lhe disse: ‘Eminência, se o fizerem papa você nos convida para almoçar lá em cima, eh!’
A irmã Estela me disso isso. Bom e assim começou o conclave. Os jornalistas diziam que, além do mais, eu era um kingmaker que, bom, um eleitor, um grande eleitor, que indicaria a alguém. E estive em paz. Começou a primeira votação, na terça-feira à noite, a segunda na quarta-feira pela manhã, e a terceira na quarta-feira antes do almoço. O fenômeno das votações aí em, sempre, não apenas no conclave, nestes grupos, é um fenômeno interessante. Há candidatos já fortes. Mas há muita gente que não sabe em quem votar. Então muita gente não sabe em quem votar. Então, escolhe seis, sete, que são os votos depósito. Então, eu deposito o voto em você e quando já vejo quem vai, voto nessa pessoa. Ou seja, são, é como uma provisoriedade. Isso é geral nas votações de grupos grandes. Ou seja, sim, eu tinha alguns votos, mas depósito.
É verdade que no conclave anterior teve uns 40 votos? Pode falar sobre isso?
Não.
Foi o que disseram.
Sim, bom, disseram.
Algum cardeal disse.
Bom, deixemos isso para o cardeal. Embora eu possa dizê-lo, porque agora eu tenho a autoridade para dizê-lo. Mas, é melhor que o cardeal tenha dito isso. Mas nada. Realmente, até esse meio-dia, nada.
E depois aconteceu algo, não sei. No almoço, eu vi algum sinal raro. Perguntam-me pela saúde, essas coisas que e quando voltamos à tarde, houve o desfecho. Em duas votações tudo acabou, não? Ou seja, também para mim foi uma surpresa.
O que aconteceu comigo? Na primeira votação da tarde, quando eu vi que poderia ser irreversível, estava ao meu lado – e quero contar isso porque devo à amizade – o cardeal Hummes, que é uma grande pessoa. Na idade que tem, é o delegado da Conferência Episcopal para a Amazônia. E vai lá e pega o barco e vai, e vai visitando as igrejas. Ele estava ao meu lado, e na metade da primeira votação da tarde – houve duas, porque houve uma segunda –, quando se viu o rumo que as coisas iam tomando, se aproxima de mim, e me disse: ‘Não te preocupes, assim trabalha o Espírito Santo’.
Causava-me graça. Depois, na segunda votação, quando se alcançaram os dois terços, sempre se aplaude, não? Em todos os conclaves aplaudem. E ele, então, me beijou e me disse: ‘Não te esqueças dos pobres. E isso começou a dar voltas na minha cabeça e foi o que provocou a escolha do nome, depois.
Eu, durante a votação, rezava o Rosário, costumava rezar os três terços diariamente, tinha muita paz. Eu diria que até inconsciência. A mesma coisa quando se deu a coisa, e para mim esse foi um sinal de que Deus queria isso. A paz. Até hoje não a perdi. Mas é algo de dentro, que, como um presente, não? E depois, o que foi que fiz, não sei. Fizeram-me ficar de pé. Perguntaram-me se aceitava. Disse que sim. Não sei se me fizeram jurar algo, não me lembro.
Estava em paz. Fui, troquei a batina. E saí e quis primeiro saudar o cardeal Días, que estava lá em sua cadeira de rodas, e depois saudei os cardeais. Depois pedi ao vigário de Roma e ao cardeal Hummes, como amigo, que me acompanhassem. O que não estava previsto no protocolo.
Aí começaram os seus problemas com o protocolo, acredito.
Nem podia imaginar. Eu coloquei aí a...
Essa foi a primeira de muitas.
E fomos rezar na Capela Paulina, enquanto o cardeal Tauran anunciava o nome. Depois saí e eu não sabia o que dizer. Bom, do resto vocês são testemunhas. Senti profundamente que um ministro necessita da bênção de Deus, mas também a bênção do seu povo. Não me atrevi a pedir que o povo me abençoasse. Simplesmente disse: ‘Povo, reze para que Deus, por meio de vocês, me abençoe’. Mas foi saindo tudo espontaneamente. Assim como pedir para rezar pelo Bento. Dizia, não, não sei, não preparei nada. Saiu sozinho.
E gosta de ser Papa?
Não desgosto!
Porque podemos imaginar que alguém não gostaria de ser Papa.
Não, não. Uma vez dada a coisa, depois se faz.
Do que gosta e do que não gosta tanto de ser Papa? Ou gosta de tudo?
Sim, a única coisa que gostaria de fazer é poder um dia sair, sem que ninguém me reconhecesse e ir a uma pizzaria para comer uma pizza.
Isso seria muito bom!
Digo isso como exemplo. Em Buenos Aires eu era muito de bater pernas. Ia e vinha pelas paróquias e, claro, trocar de hábito e estar à vontade. Isso me custa um pouquinho, mas, não, não sei, a gente se arruma, se habitua. Encontra-se outra maneira de bater pernas: o telefone, o...
E do que não gosta tanto no Vaticano, isso não é nenhum segredo. Não gostava muito de vir para cá. E agora que está há dois anos aqui dentro, gosta um pouco mais ou um pouco menos?
Não. Não só o Vaticano. Tenho que esclarecer isso. Creio que minha grande penitência são as viagens. Eu não gosto de viajar. Eu sou muito apegado ao habitat, é uma neurose. Uma vez li um livro muito bonito que se chama: ‘Alegre-se de ser neurótico’. Então, a gente tem de descobrir a neurose que tem, tomar mate (chimarrão) todos os dias, tratá-la bem, para que não te prejudique, não? Bom, eu digo, sobre as minhas neuroses, ou do meu modo de ser, é estar muito apegado ao habitat. Ou seja, não gosto das viagens. E vinha para Roma e por aí não gostava, porque não gosto de um ambiente de fofocas; por isso vinha e logo voltava. Se Bento assumiu ao meio-dia, e à tarde já estava no avião, não?, quer dizer.
E agora não desgosto. Aqui há pessoas muito boas. O fato de viver aqui [Casa Santa Marta] me ajuda muito.
Gosta de estar aqui na Casa Santa Marta?
É simplesmente porque há pessoas. Eu, lá, sozinho, não teria suportado. Não porque seja luxuoso, como dizem alguns, não. Não é luxuoso. O apartamento não é luxuoso. É grande. Mas eu não teria tolerado essa solidão. Vir para cá, fazer as refeições no refeitório, onde estão todas as pessoas, ter a missa, para a qual quatro dias da semana vêm pessoas de fora, das paróquias, me dá um pouquinho de folga espiritual. Gosto muito disso.
Não se sente sozinho?
Não, não, não. Seriamente que não.
Papa Francisco, há algo que nos preocupa um pouco. Porque houve várias ocasiões nos voos, quando temos a oportunidade de falar com você, em que você disse: “Bom, em dois ou três anos eu volto para a Casa do Pai...”; depois vem alguém que está organizando uma feira, um congresso, para daqui a cinco anos, dez anos, e você diz: “Bom, desejo-lhe o melhor, mas eu não estarei aí”. Coisas do gênero. Por que temos a sensação de que você, por um lado, é como se tivesse pressa em sua forma de agir? E, por outro lado, dá a impressão de que visse seu Pontificado como sendo curto. Sua idade é essa, mas quero dizer que com a expectativa de vida de hoje, são poucos anos, na realidade, não é relativo. Por que tem essa sensação, por que, de repente, nos diz estas coisas?
Eu tenho a sensação de que o meu Pontificado será breve. Quatro ou cinco anos. Não sei, ou dois, três. Bom, dois já se passaram. É uma sensação um pouco vaga. Digo-lhe, talvez, não. É como a psicologia de quem joga e então acredita que vai perder para não se iludir depois. E se ganha está contente, não? Não sei o que é. Mas tenho a sensação de que o Senhor me coloca uma coisa breve, não mais e... Mas é uma sensação. Por isso, tenho sempre a possibilidade aberta.
E você nos disse também que seguiria o exemplo do Papa Bento, no caso de que se desse conta de que não... Isso muda um pouco a ideia do Papado. Porque estamos acostumados, antes da época moderna, quer dizer, para nós o Papa era uma Instituição. Pois o Espírito Santo... criava e, até a morte, não?
Bom, houve alguns cardeais no pré-conclave, nas Congregações Gerais, que se colocaram o problema teológico, muito interessante, muito rico. Eu creio que o Papa Bento abriu uma porta. Há 70 anos, não existiam os bispos eméritos. E hoje temos 1.400. Ou seja, chegou-se à ideia de que um homem depois dos 75, ao redor dessa idade, não pode arcar com o peso de uma Igreja particular. Em geral. Creio que a contribuição de Bento foi, com muita coragem, abrir a porta dos papas eméritos.
Não devemos considerar o Bento uma exceção. Mas como uma instituição. Pode ser que seja o único em muito tempo, pode ser que não seja o único. Mas é uma porta aberta institucional. Atualmente, o papa emérito é uma coisa rara, mas se abriu a porta para que possa existir. Poder-se-ia pensar como nos bispos, não sei, um papa que renuncia aos 80 anos. Que haja esta possibilidade. Também.
É possível, mas eu não gosto muito de estabelecer uma idade. Porque creio que o papado tem algo de última instância. É uma graça especial. Para alguns teólogos o papado é um sacramento, é um sacramento; os alemães são muito criativos em todas estas coisas. Eu não creio nisso, mas vamos. Quer dizer que há algo especial. Então, dizer bom, este está com 80 anos, cria uma sensação de fim, de pontificado que não faria bem. Previsível, não?
Eu não sou da ideia de fixar uma idade, mas sou da ideia do que fez Bento. Eu o vi no outro dia no Consistório. Estava feliz, contente. Respeitado por todo o mundo. Eu vou visitá-lo. Às vezes, falo por telefone com ele. Como disse, é como ter o avô sábio em casa. Posso pedir conselhos. Leal até a morte. Bento..., não sei se vocês lembram, quando fizemos a sua despedida, no dia 28 de fevereiro, na Sala Clementina, ele disse: “Entre vocês está o meu sucessor; prometo-lhe lealdade, fidelidade e obediência”. E cumpre essa promessa. Homem de Deus.
Vou lhe fazer uma pergunta muito pessoal. A primeira vez que vimos dois papas vestidos de branco em Castel Gandolfo, eu vou ser sincera, me causou um pequeno choque, porque não estávamos acostumados. Que você diga que se abriu esta instituição dos papas eméritos está bem. Dizê-lo agora. Mas na primeira vez que alguém vê dois papas vivos, vestidos de branco, você diz: o que está acontecendo aqui? Você, em nível pessoal, acabava de colocar o vestido branco, porque acabava de ser eleito. Fazia poucos dias e isso, suponho, que já lhe acarretava assimilá-lo. E de repente encontrar outro papa vestido de branco, em nível íntimo, pessoal, foi tão normal como diz agora, ou...?
Não, não, não. Foi no dia 23 de março, em Castel Gandolfo, e aí me senti como se meu pai me conduzisse e me ensinasse e me fizesse sentar. Ele foi o anfitrião no sentido mais humano da palavra.
E agora vamos passar para um tema que é dos seus preferidos, que é a cúria. Porque, bom, sabemos que você começou a reforma da cúria. A reforma pode ser entendida como algo técnico. Ver como fazê-la funcionar melhor, as congregações, os dicastérios... Mas eu creio, tenho a sensação, de que sua ambição vai além da ambição ou do desejo, vai além de uma questão técnica. Temos a sensação de que você gostaria, na realidade, de mudar muito mais que as estruturas, mudar a mentalidade, mudar o coração.
Essa é a palavra.
Esta é, digamos, a minha sensação. Queria saber se é assim, e se acredita que pode consegui-lo?
Toda mudança começa pelo coração, ou seja, a conversão do coração. Por exemplo, por isso os Exercícios Espirituais fechados; já são dois anos. Participam os membros da cúria, os prefeitos e os secretários de dicastérios, cerca de 80 pessoas. Bom, estamos aí fechados, rezando, e ouvimos o pregador. Ou seja, uma conversão do coração. Também, alguém vai me desafiar por isso, mas também uma conversão do modo de viver.
Creio que esta é a última corte que resta na Europa. As outras cortes se democratizaram, inclusive as mais clássicas. Ainda existe um pouco na corte pontifícia, que mantém muito uma tradição, um pouco atávica. E não digo isso pejorativamente, como uma cultura. E isto deve ser mudado, tem que deixar o que ainda possa ter de corte para transformar-se num grupo de trabalho, a serviço da Igreja, a serviço dos bispos. Evidentemente, isso indica uma conversão pessoal.
Que aqui dentro houve problemas, você sabe melhor do que eu. Quando foram publicados os documentos do Vatileaks, e um julgamento do assistente de câmara, estas não são coisas pequenas. Que se fala de problemas morais, bom, temos ainda um preso por questões econômicas e algum “escandalete” moral, por outro lado. Ou seja, isso é do conhecimento de todos, é público. Sanear um pouco isso. A conversão. Começando pelo papa, que é o primeiro que tem que se converter. Ir mudando continuamente segundo o que Deus vai lhe pedindo. Eu procuro fazê-lo. Mas nem sempre me saio bem. Mas...
A acentuação dos símbolos que você quis. Porque se vê que você quer esses símbolos, isto é, não só por aquilo sobre o palácio que já falamos que não é luxuoso, mas, vestir de uma certa maneira, o carro de uma certa forma, carregar sua valise, ou seja, há quem diga “bom, são símbolos”, não é porque ele tenha estes símbolos que ele seja melhor que outro, que, possivelmente, vai vestido de outra maneira, ou que entrava no carro, e antes era o carro comum dos papas, entende o que quero dizer? Mas esta acentuação, por sua vez, de alguma maneira é como recordar todos os dias a todo o mundo aqui dentro que é possível viver de outra maneira.
Sim. Não é inteiramente consciente. Por exemplo, quando, depois da eleição desci, havia ali um elevador com vários cardeais. Não, você tem que ir sozinho nesse elevador. Não, eu vou com eles. E quando desci havia um carro me esperando, o carro próprio para isso, que se usava para essas ocasiões. E eu disse: “Não, eu vou no ônibus com eles”. Essas coisas vêm naturalmente. Não é que eu queira...
Procuro ser eu mesmo, como gosto, e às vezes por aí exagero em alguma coisa que pode ser ofensiva para alguém. Não sei, nisso tenho que me cuidar. Mas os símbolos, o modo de ser, o carro, tem o Mercedes. Eu não posso andar num Mercedes, num BMW, não posso. Agora tem este Focus, ou não sei como se chama, que eu uso, que é um carro mais ou menos ao alcance de um funcionário de banco, bom, então estaria bem. A simplicidade, nisso creio que é verdade.
O que você disse à cúria, em dezembro, na verdade, em 40 anos nunca havia ouvido tantas doenças juntas: 15 termos que eu falei que o papa passou aqui dois anos fazendo a lista de quem, uma por uma... Palavras fortes, Papa Francisco. A cúria está tão doente? Você falou de gente que se sente imortal, petrificada na alma, gente que pensa apenas em seus interesses, em centros de poder, enfim, uma imagem forte. Eram os seus, e fala-se aos seus com certa franqueza, é como um pai que fala aos filhos, não? Mas, claro, foi público, digamos...
Quero explicar-lhe isso. Claro, ficaram as 15; depois, no último consistório, um cardeal acrescentou mais uma, a 16ª que esteve muito, muito bem, foi, gostei.
Pode-se saber qual foi?
Sim, a dos que não têm coragem de criticar, mas na frente. Se alguém não está de acordo com o papa, ir dizê-lo. Está bonito, bonito. Falta essa coragem. O marco do que disse é, estamos no final do ano, vamos fazer um exame de consciência. E, na minha opinião, as tentações ou as doenças, usei-as como sinônimos, mais próprias da cúria são estas duas. São estas.
Ocorreu-me, por exemplo, uma na qual ninguém se deteve, e que para mim é a principal: o esquecimento do primeiro amor. Ou seja, quando alguém se transforma num bom empregado, e se esquece de que tem uma missão de identidade com Jesus Cristo, que é o primeiro amor, não é certo. Se fui passando as tentações que eu tive, como arcebispo, porque se dão em meios clericais, ou que vi em outros, que podem ter.
E as chamei de tentações, ou doenças. Ao terminar, aproximou-se de mim um cardeal malicioso, um pouco menor que eu, mas não muito, e me disse: “Escute, Santidade, o que eu devo fazer agora: ir me confessar ou ir à farmácia?” Ou seja, é um exame de consciência, e o quis fazer de maneira plástica. Talvez não gostou. O estilo não era muito tradicional de uma mensagem de fim de ano, mas, não, o ano está terminando e vamos fazer um exame de consciência. E disse bem claro, duas vezes lhe disse para que vá se confessar. Porque eu quero que aqui todo o mundo se confesse. E o fazemos, não?
Creio que nisso são fiéis. Mas, confissões reais, concretas. Peçamos perdão a Jesus pelas coisas que fazemos mal ou que ofendemos os outros ou que somos injustos. Foi um exame de consciência que usei como sinônimo de tentação ou de doença. Mas, não é que a cúria esteja caindo aos pedaços com todas estas complicações ou doenças.
E você sente resistências dentro da cúria? Porque temos a sensação de que fora você é muito, muito querido, muito amado. Eu falo muito com pessoas na rua, porque também é meu trabalho, e são as pessoas na rua que, às vezes, têm essa sabedoria. E gostam de você. E dizem “eu gosto dele assim como é”, “gosto dele porque fala assim”, e já vamos falar do tema, porque fala “papale, papale”, como se diz em italiano, muito franco, muito espontâneo, mas depois de repente fala, entra por aqui, e sente resistências, sente. Você sabe, porque você nos disse que antes eram mais calados, e que agora têm, talvez, mais coragem para falar as coisas.
Que digam as coisas. Sempre há pontos de vista diversos. São lícitos. O que eu quero é que as coisas saiam e sejam ditas. A doença 16, não? Ou seja, que sejam ditas na frente, que tenham a coragem de não calar, que se diga. E nunca, nunca, nunca, digo isso perante Deus, desde que sou bispo, castiguei alguém por me dizer as coisas na cara. Esses são os colaboradores que eu quero.
E os tem?
Eles existem. Aqui já encontrei.
Poucos, muitos?
Há bastante. Bastante, diria. Existem. E há outros que não se atrevem, que têm medo. Mas é preciso dar tempo ao tempo. Eu aposto na parte boa das pessoas. Todos têm muito mais de bom que de ruim.
Papa Francisco, você teve que responder muitas vezes a esta pergunta: justamente por sua opção preferencial pelos pobres, por sua forma de viver, você disse estar constantemente contra o deus dinheiro. Dizem que o Papa Francisco é marxista, o Papa Francisco é de esquerda, você esclareceu isso. Disse que não: “Eu sigo o Evangelho”. Bom, as pessoas ainda não o entendem. E há pessoas com dinheiro, dinheiro limpo quero dizer, que se fizeram, que às vezes eu ouvi que as pessoas disseram que não, o que está acontecendo agora? Só os pobres são os bons, e os ricos são os maus do filme? Como que há um setor de pessoas abastadas, bem, que fizeram seu trabalho, que têm suas fábricas, ou seja lá o que for, que sentem que o Papa Francisco dá mais atenção aos pobres e não cuida tanto de nós, não fala tanto de nós. Que há de verdade em tudo isso, é só Evangelho, é sua sensibilidade?
Eu venho de uma família que depois da quebra de 1932 se refez e, classe média, acomodada. Ou seja, não é nenhuma coisa de ressentimento. Eu vivi a crise de 1932, assim que... Mas deveria esclarecer muitas coisas. Primeiro, que temos que nos habituar a não qualificar com hermenêuticas demodê. Ou seja, atualmente, esquerda e direita é uma simplificação que não faz sentido. Cinquenta anos atrás fazia sentido. Hoje não.
Ou marxista, ou... Marxista hoje, o que é? Porque o marxismo tem tanta variedade de expressões que... O problema da hermenêutica na interpretação dos fatos de uma pessoa pública para mim é muito importante. Ou seja, sempre devemos interpretar um fato histórico, pequeno ou grande, com a hermenêutica do momento..., mas caímos em simplificações ou em desvios, não é verdade?
Eu conheci gente rica e estou levando em frente, aqui, a causa da beatificação de um empresário rico argentino, Enrique Shaw, que era rico, mas era santo. Ou seja, uma pessoa pode ter dinheiro. Deus o dá para que seja bem administrado. E este homem o administrava bem. Não com paternalismo, mas fazendo crescer aqueles que necessitavam de sua ajuda.
O que eu ataco é a segurança na riqueza: não coloque a sua segurança aí. No Evangelho, Jesus, nisso, é radical. Aquele que tinha os celeiros, e vai construir outro, e amanhã vai morrer. É muito claro, não? Não coloque sua esperança aí. A injustiça das riquezas. Por exemplo, quando não se paga o salário justo. É um pecado mortal. Isso é aproveitar-se da pobreza do outro. Ou quando a empregada da casa não está registrada, é uma servente. Mas, por quê? Não porque a patroa ou o patrão seja rico, mas por essa atitude. O dinheiro sempre é traiçoeiro. O diabo entra pelo bolso. Sempre.
Santo Inácio dizia que havia três degraus. O primeiro é a riqueza. O diabo mete-lhe o dinheiro no bolso. O segundo é a vaidade e o terceiro é o orgulho e a soberba. E daí leva a todos os outros pecados. Quando você chega a esse nível de orgulho você é capaz de qualquer coisa. Vimos isso nos ditadores, nos tiranos, nos que se aproveitam dos outros, nos exploradores. Ou seja, atualmente, o tráfico de pessoas é feito por pessoas que têm muito dinheiro. Esses são os que eu ataco. O dinheiro que escraviza outros ou não os deixa crescer. Ou serve para se engordar a si mesmo, como o Evangelho de ontem, não? Daquele que vive ignorando que há pobreza.
Uma coisa que me escandaliza, escandalizava-me em Buenos Aires, é a nova zona de Puerto Madero, que é bonita, toda tomada do rio, por um lado esses edifícios enormes, 36 restaurantes, se você vai jantar lhe cortam a cabeça. Porque lhe fazem pagar... e, por outro lado, as favelas. Essas são as coisas que, o esbanjamento de dinheiro. Isso do ponto de vista social. E minha denúncia do ponto de vista social é sempre a isso.
Mas o que mais me indigna é o salário injusto. Porque alguns se enriquecem à custa da dignidade não dada à pessoa. O que lhe dá dignidade de trabalho e você usa o trabalho para torná-lo indigno, porque paga ou não paga os direitos. E com tranquilidade de consciência. Eu diria não pagar o justo, não pagar os direitos, não pagar o prêmio, é pecado! É pecado! E independentemente de quem o fizer seja rico ou de classe média ou pobre, é pecado.
Temos que dizer isso. O diabo, como repito, mete-se em nossa vida metendo o dinheiro no bolso. Não sou eu que digo isso. Eu o repito. Mas os Padres da Igreja chamavam o dinheiro de cocô do diabo. Ou seja, o esterco do diabo. Por quê? Porque viam aí algo que levava à perda, que sujava, que te levava pelo mau caminho. É o primeiro passo, como dizia Santo Inácio, para a suficiência, para a vaidade e para o orgulho. Bom, essa é uma visão sociológica. É-se comunista porque se pensa assim? Não.
Vamos ao segundo passo. Os pobres estão no centro do Evangelho. Quando Jesus se apresenta, toma as palavras de Isaías: “Eu fui enviado para evangelizar os pobres”. Os pobres têm uma riqueza que, as pessoas que têm muitas seguranças, e eu me incluo entre os ricos entre aspas, porque não me falta nada. E tenho que andar me cuidando para não me aproveitar disso, para não pecar. Uma riqueza que não temos. A pessoa pobre honesta tem uma sabedoria, a dignidade do trabalho, de cuidar dos filhos, cuidar da criação, como dizemos na Argentina, é algo tão lindo, tão lindo. Como uma dignidade.
E Paulo VI, na Evangelii Nuntiandi, dizia, no número 46 ou 48, não lembro direito, diz que os pobres são mais capazes de entender determinadas virtudes cristãs. Estão mais preparados. Estão muito mais preparados. E a pobreza está no centro do Evangelho. A bandeira da pobreza é evangélica. Os marxistas roubaram-na, porque nós não a usávamos. Guardamos a pobreza no museu e vieram, roubaram-na, e eles passaram a usá-la.
Mas, voltemos ao final do século XIX, com a crise italiana. No norte da Itália, a quantidade de santos, que trabalharam com os pobres. Dom Bosco à frente. Ou seja, buscaram saídas para fomentar – terceiro passo – a promoção. A promoção social. Não é questão só de dar dinheiro. É promover. Por isso a importância da educação. E a saída laboral.
Que isto pareça exagerado a alguns talvez seja por causa dos meus pecados que eu digo palavras fortes e não sou suficientemente bom e pastor para chegar ao coração dessas pessoas. Mas, são filhos de Deus. Simplesmente, seria preciso pedir que se convertam, mas pedi-lo com o coração de pai e não brigando com eles, é verdade.
Papa Francisco, um tema prioritário destes dois anos também foi o Sínodo sobre a Família, evidentemente, com tudo o que isso gerou, digamos. No Sínodo, você deu plena liberdade para que cada um dissesse o que pensava. Havia cardeais que pisavam no acelerador, outros que pisavam no freio; outros ainda, que diziam que você queria que se pisasse no acelerador. O que espera do segundo Sínodo? Acredita que se criou muita expectativa nos casais divorciados recasados, nos homossexuais? Acredita que há expectativas que vão além do que depois vocês vão poder conseguir? Os divorciados recasados poderão comungar? O que há de grande na aceitação para o mundo dos homossexuais?
Creio que há expectativas desmedidas, não é verdade? Não fui eu que quis o Sínodo sobre a Família. Foi o Senhor. Foi uma coisa d’Ele. Quando mons. Eterovic, que era o secretário, me trouxe os três temas mais votados, me dizia que o mais votado era este, que contribuição, a contribuição de Jesus Cristo ao homem de hoje. Bom, vamos tomar este. Esse era o título do Sínodo. Continuamos falando da organização e eu lhe disse: “Olhe, vamos fazer uma coisa: vamos colocar a contribuição de Jesus Cristo para o homem de hoje e para a família de hoje”. E aí ficou com a família, no final, aí. Quando fomos à primeira reunião do conselho pós-sinodal começou-se a falar se com esse título, e depois, porque a contribuição de Jesus Cristo à família e ao homem de hoje começou a ficar um pouquinho fora. E ao final eu disse: “Não, porque este Sínodo sobre a Família...”, e a própria dinâmica foi mudando o título. Eu caladinho, eh!
E ao final me dei conta de que foi o Senhor quem quis isso. E o quis muito. Porque a família está em crise. Talvez não a crise mais tradicional, da infidelidade, ou como a chamam no México, a “casa pequena” e a “casa grande”, não, não, mas uma crise mais de baixo. Vê-se que os jovens não querem se casar, ou convivem. E não o fazem para protestar contra nada, mas é a maneira deles de expressar suas coisas. Depois, no longo prazo, alguns se casam, outros pela Igreja.
Ou seja, há uma crise familiar dentro da família e deste ponto de vista penso que o Senhor quer que enfrentemos isso: preparação para o casamento, acompanhamento dos que convivem, acompanhamento dos que se casam, e levam bem sua família, acompanhamento dos que fracassaram na família e fizeram uma nova união, preparação para o sacramento do matrimônio, nem todos estão preparados. E quantos casamentos que são fatos sociais, são nulos! Por falta de fé.
Bento já deixou muito claro que a falta de fé, de consciência do que se faz, não? São problemas graves, não?
Bom, a família em crise. Como integrar na vida da Igreja as famílias, as replay, não?, isto é, as de segunda união que, às vezes, são fenômenos.... que isso foi um fracasso. Como reintegrar? Que vão à Igreja, então cada um, aí simplificam e dizem: “ah, vão dar a comunhão aos divorciados”. Com isso não se resolve nada. O que a Igreja quer é que se integrem à vida da Igreja.
Mas há alguns que dizem: “Não. Eu quero tomar a comunhão e pronto”. Um emblema. Uma honraria. Não. Ou seja, reintegre-se. Há sete coisas que os recasados não podem fazer, segundo a legislação atual. Eu não me lembro de todas, mas uma é que não podem ser padrinhos de batismo. Por quê? E que testemunho vai dar ao afilhado? O testemunho de dizer: “Olha querido, eu, na minha vida, me equivoquei, agora estou nesta situação. Sou católico. Os princípios são estes. Eu faço isto e o acompanho”. Testemunho de verdade. Mas vem um mafioso, um criminoso, alguém que matou gente, mas como está casado pela Igreja, pode ser padrinho. Ou seja, essas contradições. Uma coisa que, e é preciso integrá-los nisso e não ensinar catequese. Por que não? Por que não? Se têm fé, embora estejam em uma situação que se dissolve, chamada irregular, e a reconheçam e a aceitem, e saibam o que a Igreja pensa dessas coisas, não é impedimento. Quando falamos de integrar é meter tudo isto, depois acompanhar processos interiores.
Você me perguntou se eu dei liberdade. Um sínodo sem liberdade não é sínodo. É uma conferência; ao contrário, o sínodo é um espaço protegido, no qual o Espírito Santo possa trabalhar. E para isso as pessoas têm que ser livres. Por isso eu me oponho ao fato de que sejam publicadas com nome e sobrenome as coisas que cada um diz. Não. Que não se saiba que foi ele quem disse. Que se saiba o que foi dito, não tenho problema. Mas não quem o disse. De maneira que se sinta livre para dizer o que quer dizer.
Depois, temos um problema muito sério, que é a colonização ideológica sobre a família. Por isso, me referi a ele, nas Filipinas, porque é um problema muito sério. Ou seja, os africanos se queixam muito disso, bom, e na América Latina também acontece. E aconteceu comigo uma vez. Fui testemunha de um caso com uma ministra da Educação, quando se têm certos créditos, sim, mas, o ensinamento da teoria do “gender”, então é uma coisa como que vai atomizando a família. Essa colonização ideológica que destrói a família. Por isso, eu creio que do Sínodo sairão coisas muito claras, muito rápidas e que ajudem a toda esta crise familiar, que é total.
Papa Francisco, outro tema importante destes dois anos foi o dos abusos contra os menores. Os grandes escândalos couberam aos papas anteriores. Você está tentando seguir com a linha da tolerância zero. Criou várias comissões em defesa dos menores, também para abordar do ponto de visto legislativo este tema. Nós, no México, tivemos um escândalo muito grave que foi o do fundador de uma congregação mexicana que é Marcial Maciel. Durante anos este tema foi tabu. Foi um tema tabu dentro e fora do Vaticano. Falou-se muito de pessoas que acobertaram, de facilidades, de grupos de poder. Você o conheceu, soube algo dele, sente que este foi um caso que teve a ver também com acobertamentos, digamos, dentro do Vaticano?
O que sei... Eu nunca tive contato com os Legionários de Cristo. Porque não estavam em Buenos Aires e a primeira paróquia foi entregue a eles por meu predecessor, a Paróquia Santa Maria de Betânia, quando saíram os religiosos, os Picpus (Congregação dos Sagrados Corações), e foi entregue a eles. Eram três. Ou seja, em Buenos Aires, três religiosos, portanto, não os conhecia. Ouvi falar deles.
Quando vim fazer, não o curso, porque não participei do curso para novos bispos, mas do encontro de movimentos leigos, o curso aconteceu em uma estrutura deles, em uma universidade. É o outro contato que tive. Ou seja, não os conhecia.
Quando tomei conhecimento do “escandalazo” realmente me doeu muito, me escandalizei. Como esta pessoa pôde chegar a isso? Evidentemente, era uma pessoa muito doente, porque além de todos os abusos, creio que também havia duas ou três mulheres no meio, filhos, com uma ou com outra, não sei, ou seja, havia algo aí, e muito dinheiro. Voltando ao mesmo assunto: a corrupção começa pelo bolso, não? Mas creio que se tratava de um doente. Um grande doente.
Aqui, quando se tomou consciência da coisa, começou-se a agir com firmeza. Então o cardeal Ratzinger levou a coisa em frente, e a levou, a levou, a levou, e o Papa, São João Paulo II lhe deu luz verde para levá-la, ou seja, ele deu luz verde, e quando o fizeram papa, agiu, porque o processo estava maduro. Mas, quero deixar muito claro que o então cardeal Ratzinger e São João Paulo II estavam conscientes e disseram: adiante. Um, na investigação, e o outro, dando luz verde.
Segundo: houve acobertamento? Pode-se presumir que sim, embora sempre, por justiça, se deva que presumir inocência. Mas seria raro que não, não, tivesse algum “padrinho” por aí, meio enganado, meio que, que suspeitava e não soubesse. Bom, isso eu não investiguei. Abusos agora: evidentemente que desde as primeiras intervenções de tolerância zero, isso continua.
A comissão não é para os abusos, mas para a tutela do menor. Ou seja, para preveni-los. O problema do abuso de menores é um problema grave, a maioria dos abusos se dá no ambiente familiar e de vizinhança. Não quero dizer números, para não me equivocar. Um só padre, que abuse de um menor, é suficiente para mover toda a estrutura da Igreja e enfrentar o problema. Por quê? Porque o padre tem a obrigação de fazer crescer esse menino, essa menina, na santidade, no encontro com Jesus. E o que faz é destruir o encontro com Jesus. Devemos escutar os abusados. Eu os escutei aqui. Passei uma manhã inteira com seis: dois alemães, dois irlandeses e dois ingleses. A destruição interior que tem. Ou seja, são antropófagos. É como se comessem os menores. Destroem-nos, não? Mesmo que haja um único padre é suficiente para nos envergonhar e para fazer o que deve ser feito.
Nisto devemos prosseguir, e não dar um passo atrás. Ou seja, destruir uma criatura é horrível, é horrível. E nisso eu agradeço tanto ao Papa Bento que teve essa coragem de dizê-lo em público e a João Paulo II, que teve a coragem de dar luz verdade ao caso dos Legionários de Cristo.
Papa Francisco, você foi muito generoso com o seu tempo, eu não sei se ainda restariam muitas perguntas, mas eu suponho que você tenha que ir. Você, certa vez, disse: “Eu gostaria de ser recordado como uma pessoa boa”. Eu lhe pergunto: como gostaria de ser recordado por estes dois anos, obviamente seu pontificado durará muito mais, por sua incidência dentro da Igreja nestes dois anos. No longo prazo, por sua linguagem, sabemos que é muito espontâneo pouco convencional, muito espontâneo, possivelmente, pensado: “Alguma vez teve que morder a língua”, ou prefere ser assim, porque isso lhe dá proximidade?
Continuaria fazendo o mesmo. E falaria como falo, como um pároco, que gosta de falar assim, não sei. Sempre falei assim. Sempre. Pode ser visto como um defeito, não sei. Mas as pessoas, penso, me entendem. Eu lhe agradeço sua bondade e em você agradeço ao povo mexicano a quem quero muito.
Eu gostaria que desse uma bênção ao México.
Vou fazê-lo.
Foi ao México?
Eu estive duas vezes no México. Em 1970, estive na favela, antiga, santuário, quando fui visitar o noviciado, a Casa de Formação, porque me nomearam Mestre de noviços. A segunda vez foi quando São João Paulo II promulgou a Ecclesia in America. E aí já conheci o novo santuário.
Duas vezes, mas via muito o cinema mexicano na Argentina, lembro-me de Cantinflas... a música, gosto muito, assim que com muito gosto vou dar a bênção a todos e peço-lhes que rezem por mim. Mas, antes de dar a bênção, vamos pedir à Mãe, que é quem nos dá a força para dar a bênção? Convido-a para rezar uma Ave-Maria.
Nossa Senhora de Guadalupe, Mãe do México e Mãe da América, roga por nós. Que a bênção de Deus Todo-poderoso...
Muito obrigado!
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Cúria Romana e uma tradição atávica: "A última corte que resta na Europa". Entrevista com o Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU