19 Dezembro 2025
O uso generalizado do ChatGPT e a crescente variedade de dispositivos com inteligência artificial integrada facilitam a trapaça.
A reportagem é de Jordi Pérez Colomé, publicada por El País, 18-12-2025.
Em uma sala de aula durante uma prova de informática na Universidade de Salamanca, o professor Javier Blanco caminhava pelos corredores usando fones de ouvido. "Aquilo me deixou um pouco desconfiado", pensou o aluno Víctor Funcia enquanto o observava, "aquele homem aqui ouvindo rádio enquanto fazemos a prova". Mas Blanco não estava ouvindo qualquer estação. Ele estava tentando captar um sinal de rádio muito específico. E então aconteceu: "Senti uma onda de adrenalina", lembra Blanco.
Alguém estava ditando as respostas da prova pelo telefone, e um aluno na sala de aula ouvia com um fone de ouvido. Blanco conectou o sinal a uma caixa de som, e toda a turma ouviu as respostas. Nenhum dos suspeitos reagiu. O fone de ouvido não era visível a olho nu: era um minúsculo aparelho, do tamanho de uma unha, que se encaixa dentro da orelha, próximo ao tímpano. É tão pequeno que precisa de um ímã para ser removido. Não havia apenas uma pessoa com esses fones de ouvido, mas três, que só apareceram mais tarde.
Embora o incidente tenha ocorrido neste ano, esse tipo de fone de ouvido já era usado antes da pandemia. Em 2019, professores da Universidade Politécnica de Valência escreveram um artigo científico explicando como criar um detector: “Fico feliz que meu trabalho tenha sido útil”, diz um desses professores, Ismael Ripoll. “Usamos o detector de trapaça por um tempo. Tínhamos nossas suspeitas. Talvez nossos alunos não estivessem colando ou estivessem usando métodos mais rudimentares. No fim, não pegamos ninguém.”
Blanco usou suas instruções para criar seu detector. O jornal EL PAÍS publicou em 2014 o caso de um professor de uma escola secundária de Madri que também havia criado um detector semelhante na mesma época. Há, no entanto, uma diferença fundamental entre os casos de 2019 e estes mais recentes: a inteligência artificial. Agora, fora da sala de aula, não é preciso um especialista para saber as respostas. Um familiar ou amigo pode receber a foto da prova enviada pelo aluno, carregá-la no ChatGPT e ler as respostas pelo telefone.
Existem dezenas de vídeos nas redes sociais com milhões de visualizações explicando como funciona esse fone de ouvido, que pode ser facilmente comprado online: “Não sei quanto tempo dura a bateria do fone, então, por precaução, recomendo colocar uma bateria nova se você for fazer provas por algumas horas”, diz uma avaliação do Hidden Earpiece na Amazon, que custa € 42,99. Existem dispositivos com microfones, e a maioria requer um repetidor que deve ser usado no pescoço, em um anel ou dentro de uma caneta. Há uma grande variedade disponível, e eles podem até ser alugados, segundo um professor.
Este não é o único desafio enfrentado pelos exames universitários espanhóis. "É um problema enorme que temos", afirma José Juan López, vice-reitor para Assuntos Estudantis da Universidade Miguel Hernández (Elche). "E não podemos fazer nada a respeito, porque a tecnologia é muito difícil de detectar e controlar. E estou falando de exames; com trabalhos, é ainda pior", acrescenta.
É um problema multifacetado: primeiro, o avanço imparável da tecnologia. Fones de ouvido já existem, mas óculos, relógios e canetas estão se tornando cada vez mais comuns, com dispositivos cada vez mais discretos capazes de resolver questões e problemas. Celulares já são proibidos, mas em salas de aula grandes eles conseguem passar despercebidos, e mesmo em centros onde um aparelho pode ser confiscado durante a prova, alguns alunos conseguem levar um segundo. A inteligência artificial pode responder a questões de provas sem nenhum estudo prévio. Antes, pelo menos, preparar material para colar exigia tempo para descobrir o que cairia na prova. "Está se tornando cada vez mais comum muitos buscarem soluções rápidas", diz Laura, chefe do departamento de línguas da Academia San Roque em Tenerife. "Agora eles não querem fazer o mínimo esforço. A preguiça é mais comum hoje em dia. Eles até têm dificuldade para entender o ChatGPT; pedem para ele dar um resumo do resumo", acrescenta.
Em segundo lugar, colar pode se tornar tão fácil que não só ajuda a passar em uma prova difícil, como também permite que os alunos concluam seus cursos. Isso representa um problema que afeta particularmente os colegas, já que a competição por bolsas de estudo ou por melhores notas para ingressar na universidade pode ser prejudicada. No exemplo da Universidade de Salamanca, a disciplina em que foram pegos colando "não é uma das mais difíceis do curso", afirma Funcia, estudante da universidade. "É de se perguntar por que eles colam se fazem isso em disciplinas que podem ser facilmente aprovadas com a leitura do programa. Não sei se aumentar a punição impediria as pessoas de colar. O sistema de notas incentiva indiretamente essa competitividade; é um ranking individualista."
Pequenas penalidades
Embora mudanças mais significativas no sistema de avaliação estejam no horizonte, os professores enfrentam o terceiro grande problema trazido pela intrusão da IA no mundo dos exames: as sanções. O sistema de punição para trapaça ou delação pode ser ineficaz contra esse nível de sofisticação. Pela lei atual, alterada em 2023 e aplicável a todas as universidades, colar em uma prova é uma infração grave. Ela prevê, no máximo, a suspensão do infrator por dois períodos de provas naquele ano e a expulsão da universidade por 30 dias, embora ele ainda possa fazer qualquer prova agendada durante esse período. “A penalidade é praticamente inexistente”, afirma Rodrigo Santamaría, da Universidade de Salamanca. “Estamos em desvantagem; se um aluno quer colar, ele vai colar de qualquer jeito.”
Esse tipo de sistema enfrenta a dificuldade de detectar, relatar e comprovar esses incidentes. “Você conversa com um jovem e pergunta se ele tem um fone de ouvido, e ele diz que não, que você precisa provar”, afirma José Ángel Contreras, chefe do Serviço de Inspeção da Universidade de Burgos.
Em diversas conversas que este jornal teve com outras universidades, a impressão é de que isso acontece com mais frequência do que parece, mas não há certeza. É tudo muito recente. E não parece ser um problema exclusivo da Espanha: "Na minha turma, dois alunos colaram na prova consultando as respostas com óculos Meta. Quando contamos aos professores, eles ignoraram", disse um estudante de medicina da Universidade de Pádua a um veículo de imprensa italiano.
Só haveria uma opção real para uma solução imediata, diz López, da Universidade Miguel Hernández. “Bloqueadores de frequência. Mas, neste momento, são ilegais; só a polícia pode usá-los. Lembro-me de ter mencionado isso ao ministro num almoço que tivemos, e ele nem sequer se posicionou.”
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