A herança escravocrata dos setores poderosos da sociedade brasileira agrava a desigualdade e mantém o privilégio dos ricos
A Operação Compliance Zero da Polícia Federal, deflagrada para investigar uma complexa fraude financeira, colocou o holofote sobre o Banco Master e seu ex-CEO, Daniel Vorcaro, apelidado de "banqueiro do centrão". No centro da investigação, está um esquema de criação de ativos fictícios que, segundo estimativas, inflou os ativos do banco em cerca de R$ 12 bilhões, camuflando uma situação de insolvência.
Em entrevista por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o doutor em economia pela Unicamp, André Luis Campedelli, detalha como funcionava o ardil: a instituição "criava carteiras de títulos falsos, dívidas que eles tinham com um bom rating (...) e a partir disso, vendiam essas carteiras de títulos (...) para outras instituições financeiras". A promessa era de, mais tarde, trocar esses papéis falsos por ativos reais dos bancos parceiros, permitindo ao Master "tirar cada vez mais ativos podres dentro dos seus bancos e inflar o nível de ativos". A consequência, dramática, foi que o banco se viu "basicamente em insolvência, ou seja, sem ativos suficientes para pagar os passivos".
A figura de Daniel Vorcaro ganha contornos políticos devido ao seu trânsito e atuação como "grande financiador, principalmente de campanhas de políticos e de figuras ligadas ao Centrão", explica o economista, com conexões fortes com partidos como PP, União Brasil e Republicanos.
O caso Master, contudo, revela não apenas a fragilidade do sistema, mas também uma perigosa teia de interesses públicos e privados. Campedelli aponta que o desespero por captação de recursos levou o banco a praticar atitudes agressivas no mercado, oferecendo Certificados de Depósito Bancário – CDBs a taxas altíssimas, o que pode ter levado a instituição a lavar dinheiro do crime organizado. O banco deixava "qualquer um entrar sem observar a procedência ou origem do dinheiro, justamente pelo fato dessa necessidade grande que eles tinham de captar recursos", assinala o entrevistado.
Um dos pontos mais críticos da crise foi a tentativa de salvamento do Master pelo Banco de Brasília – BRB, presidido pelo governo do Distrito Federal. Segundo Campedelli, a intervenção visava "salvar esses milhões que foram colocados em recursos públicos de forma muito mal avaliada" por prefeituras e governos estaduais, muitos ligados ao Centrão, que investiram, inclusive, fundos de previdência no banco. O impacto é direto nos cofres públicos, como o caso do governo do Rio de Janeiro, que investiu R$ 1 bilhão da previdência dos servidores, resultando em "consequências terríveis", conforme aponta, já que o fundo garantidor não cobre investimentos em fundos, levando a uma "grande perda de fundos que seriam aposentadorias futuras dos funcionários".
O desfecho do caso Master é classificado pelo economista como um assalto ao Fundo Garantidor de Créditos – FGC, já que o volume de resgates será recorde na história. A situação foi agravada pela atuação de figuras políticas no Congresso, como a medida proposta por Ciro Nogueira para quadruplicar a garantia do FGC. O especialista sugere que Nogueira “já tivesse a informação privilegiada” e quis propor a medida “para tentar amenizar as perdas que poderiam acontecer em relação ao Banco Master”.
Para André Campedelli, a ostentação de Vorcaro, sustentada por um banco quebrado, é reflexo de uma “elite escravocrata que vê no trabalhador um escravo que tem que trabalhar para ele”.
André Luis Campedelli (Foto: Reprodução | Extra Classe)
André Luis Campedelli é doutor em Economia pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Foi professor substituto do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas – ICSA da Universidade Federal de Alfenas (campus de Varginha) e professor da Universidade Paulista – UNIP. Mestre em Economia Política pela PUC-SP, possui graduação em Ciências Econômicas pela mesma universidade. Tem um canal no YouTube onde explica economia de forma simples e didática.
IHU – Do que se trata a fraude financeira relacionada ao Banco Master que desencadeou a operação Compliance Zero? Como funcionava o esquema de títulos falsos?
André Campedelli – A fraude financeira do Banco Master foi basicamente o seguinte: eles criavam carteiras de títulos falsos, dívidas que eles tinham com um bom rating, de pessoas que teoricamente seriam boas pagadoras, e a partir disso, vendiam essas carteiras de títulos, que é uma coisa bem comum no sistema financeiro, para outras instituições financeiras, com a promessa que depois de certo tempo trocariam essa carteira de títulos por outros ativos dos bancos.
Com isso, criaram essas cartelas e conseguiram tirar cada vez mais ativos podres dentro dos seus bancos e inflar o nível de ativos dos seus bancos. Isto ocorria a partir da criação fictícia dessas carteiras financeiras e, com isso, fraudaram o sistema financeiro em, aproximadamente, R$ 12 bilhões, só com essa criação de ativos falsos que inflaram o ativo do banco. Isso mostrou também que, na verdade, o banco estava basicamente em insolvência, ou seja, sem ativos suficientes para pagar os passivos, isto é, as dívidas que eles possuíam com seus credores, que são os clientes.
IHU – Por que Daniel Vorcaro é conhecido como “banqueiro do centrão”? É possível saber quais políticos mantinham negócios com o banco?
André Campedelli – Tem alguns nomes que apareceram na imprensa. Mas ele era o “banqueiro do centrão” porque ele era um grande financiador, principalmente de campanhas de políticos e de figuras ligadas ao Centrão. Era um financiador e também um banqueiro que acabava atuando muito com essas pessoas mais ligadas a esses partidos como PP, União Brasil e Republicanos. A relação se dava por causa do bom trânsito que ele possuía em relação a essas figuras mais ligadas ao centrão hoje.
IHU – Há alguma relação do Banco Master com a família Bolsonaro? De que tipo?
André Campedelli – Por enquanto não saiu nada que envolva o nome da família com o Banco Master. Temos que observar a questão do Roberto Campos Neto, que era presidente do Banco Central do Bolsonaro, que foi indicado por ele na época.
Os próprios banqueiros ficaram incomodados com a postura do Campos Neto de não ter tomado atitudes mais enérgicas anteriormente com a situação para a qual se encaminhava o Banco Master. Além disso, a própria [tentativa de] venda se arrastou por tanto tempo e que ele não tomou uma atitude mais enérgica como o fez o Gabriel Galípolo [atual presidente do Banco Central], que foi declarar insolvência no Banco Master.
IHU – Há vasos comunicantes do Banco Master com o crime organizado?
André Campedelli – Encontraram fundos de investimentos que têm ligação com pessoas do crime organizado, sim. Há duas hipóteses possíveis que precisamos trabalhar. Primeiro, se era sabido que de fato esses fundos estavam operando para lavagem de dinheiro do crime organizado – é uma possibilidade que precisamos ter. A segunda é que quando tem um banco que está nesse desespero todo e se utiliza de atitudes agressivas para conseguir captação de dinheiro – o Master trabalhava com Certificado de Depósito Bancário – CDB de 140% ao ano –, uma das formas mais eficazes desses bancos ganharem dinheiro é “fazendo vista grossa” sobre a origem e sobre quem está comprando esses títulos e quem está colocando esse dinheiro dentro do banco.
Então, pode ser intencional ou que realmente estavam deixando qualquer um entrar sem observar a procedência ou origem do dinheiro, justamente pelo fato dessa necessidade de captar recursos para conseguir manter o modelo de negócios deles que sustentava um fluxo muito extensivo de recursos constantemente que acabava entrando.
IHU – Matéria da Agência Pública revelou os laços de longa data entre Daniel Vorcaro e André Valadão, líder da Igreja Batista da Lagoinha. Dias depois da Operação de PF e após ter seu nome citado na CPMI do INSS, os canais de comunicação da Clava Forte Bank, primeira fintech cristã do Brasil, estão fora do ar. É possível saber se a fintech cristã mantinha atuação conjunta com o Banco Master, servindo como canal de circulação dos valores desviados do INSS?
André Campedelli – Infelizmente, estamos com uma grande falta de informação por causa do José Antonio Dias Toffoli [ministro do Superior Tribunal Federal] que colocou em sigilo boa parte da operação sobre o que está acontecendo em relação ao Banco Master e a questão do INSS, por exemplo.
O Vorcaro começa a sua carreira “profissional” dentro da igreja da Lagoinha. Ele começa como grande figura dentro da igreja da Lagoinha e cria o Banco ainda como membro desta igreja, inclusive como membro atuante, como pastor. Então, as origens profissionais do banqueiro têm a igreja da Lagoinha como seu ponto inicial. Ele surge como um pastor da teologia da prosperidade e sai disso para realmente abrir um banco e um banco com uma característica muito agressiva de captação de recursos.
IHU – O banco público de Brasília – BRB fez negócios com o Banco Master e tentou comprar o banco no ano passado, mas não ganhou aval do Banco Central. Quais os interesses por trás da tentativa de salvar o Master por parte do governador Ibaneis Rocha? Por quê?
André Campedelli – Existe uma grande quantidade de prefeituras e governos estaduais ligados ao Centrão – outro motivo que também faz com que ele seja chamado de "banqueiro do centrão". Muitas prefeituras e muitos governos estaduais estavam colocando boas quantias, inclusive fundos de previdência em fundos do Banco Master para rendimentos. Então, sem fazer ilação, porque eu precisaria que a Polícia Federal me desse maiores informações, tem uma questão de que foi muito dinheiro gasto dentro do Banco Master. Quem já estava mais atento conseguia observar que provavelmente tomaria um calote.
A tentativa de salvar o Banco passaria também por uma tentativa de salvar esses milhões que foram colocados em recursos públicos de forma muito mal avaliada, para dizer o mínimo, em relação ao Banco Master.
O único banco estadual que ainda estava em poder do Centrão, que seria um banco que com a capacidade de adquirir um outro banco, já que o Rio de Janeiro não tem mais banco e outros estados também não, o BRB seria a única instituição financeira estadual ligada a políticas do Centrão que teria capacidade de salvar o banco Master e evitar um choque ainda maior na previdência e nas contas públicas dessas prefeituras e governos que investiram muito dinheiro dentro do Banco Master.
IHU – Um mês antes do escândalo, Cláudio Castro investiu no Banco Master R$ 1 bilhão da previdência dos funcionários do Rio de Janeiro. Quais as consequências para os servidores?
André Campedelli – Isso tem consequências terríveis, porque o fundo garantidor garante os CDBs, ele não garante, por exemplo, os investimentos feitos em fundos. Portanto, boa parte do dinheiro não será recuperado. Haverá um prejuízo muito grande para o fundo de pensão desses funcionários públicos do governo do estado do Rio de Janeiro.
Com certeza terá abalo, vai ser desenrolado na justiça e provavelmente o governo do Rio de Janeiro vai ter que fazer aportes porque foi culpa dele – eles foram alertados de que não era um bom investimento, que a capacidade do banco não estava bem avaliada pelos técnicos do Tribunal de Contas da União. Provavelmente haverá uma grande perda de fundos que seriam aposentadorias futuras dos funcionários do Rio de Janeiro.
IHU – Como Ciro Nogueira atuou defendendo os interesses do Banco Master no Congresso?
André Campedelli – Assim, essa medida que ele propôs [Nogueira apresentou uma Emenda Constitucional para quadruplicar a garantia do FGC de R$ 250 mil para R$ 1 milhão] foi muito estranha porque o Fundo Garantidor tem um reajuste que acontece mais que naturalmente, na medida em que há revisão inflacionária e também aumento de capacidade da liquidez bancária brasileira. Logo, ele quis meter na canetada isso, porque o Fundo Garantidor é reajustado de forma mais técnica.
E quem controla o Fundo Garantidor é uma entidade ligada ao Banco Central, mas que tem uma certa independência administrativa do Banco Central e são os bancos que garantem e que dão recursos para eles. Então, é algo muito estranho que aconteceu, talvez ele já tivesse a informação privilegiada e quis fazer isso para tentar amenizar as perdas que poderiam acontecer em relação ao Banco Master, porque muitas pessoas tinham mais de R$ 250 mil em CDBs aplicados no Banco Master.
O rombo no Fundo Garantidor – vai ser o resgate recorde da história, tanto em volume de dinheiro quanto em porcentagem – porque vai alcançar cerca de 42% ou até um pouco mais [as reservas do Fundo Garantidor ultrapassaram os R$ 140 bilhões no fim de 2024] do montante do Fundo Garantidor brasileiro. É muito recurso que vai ser pego de uma única vez. Basicamente, o que o Vorcaro fez foi dizer: “Eu vou assaltar o Fundo Garantidor”.
IHU – Daniel Vorcaro mantinha uma vida de Sultão, sustentada por um banco quebrado. O que essa figura nos fala sobre a elite brasileira?
André Campedelli – O segundo melhor negócio do mundo é um banco mal gerido porque o primeiro obviamente é um banco bem gerido. O setor financeiro é um setor em que se consegue alta lucratividade. É só lembrarmos de 2008 [crise do subprime] como que foram os bônus no caso dos Estados Unidos, inclusive é um problema mundial como que são os bônus desses CEOs, diretores do sistema financeiro, dessa elite financeira como eles pegam uma parcela muito grande dos rendimentos da renda total brasileira e como que eles atrapalham muito a questão de distribuição de renda.
Essa elite é uma grande fonte concentradora de renda e é por isso que eles odeiam qualquer tipo de tentativa de taxação, um pouquinho que seja, dos mais ricos. Eles não querem abrir mão nem de um centímetro. Temos uma elite que ainda pensa com a cabeça de 1880, uma elite escravocrata que vê no trabalhador um escravo que tem que trabalhar para ele, infelizmente é isso.
IHU – O STF decretou o sigilo sobre o processo de Daniel Vorcaro. Como avalia a decisão? Isso sugere que há muitos outros nomes envolvidos?
André Campedelli – Hoje, pelo menos, o Dias Toffoli liberou a Polícia Federal para continuar a investigação, porque havia até travado as investigações. É um absurdo manter em sigilo e travar as investigações porque é um assunto de interesse nacional e que mexe com a credibilidade de todo o sistema financeiro brasileiro. O sistema financeiro por natureza é algo que vive de credibilidade. Portanto, é muito termos às claras o que está acontecendo, quem está operando, quem são os operadores beneficiados, quem são os suspeitos e quem são as pessoas que têm ligação concreta. Trata-se de um desserviço tudo o que o Toffoli fez em relação ao processo.
IHU – Mudando de assunto e já acenando para 2026, como o atual Executivo Federal pode dar conta das agendas econômica e fiscal diante da disputa eleitoral?
André Campedelli – Em 2026, o Executivo terá uma boa vantagem. Além de ser um ano eleitoral, onde naturalmente há mais gastos, mesmo que o Executivo Federal não faça os gastos, os executivos governamentais vão acabar fazendo gastos porque ano eleitoral é um ano que aumenta a despesa de estados e entes da União. Naturalmente, haverá uma injeção de muito dinheiro na economia via a isenção do imposto de renda.
O imposto de renda funcionará como um impulso fiscal não sendo fiscal, porque vai injetar muito dinheiro na economia que iria para os tributos e esse montante ficará na mão das pessoas, que vão consumir. Provavelmente teremos uma aceleração econômica bem vigorosa que não estamos imaginando para o ano de 2026.
IHU – Qual seria a agenda econômica para dar conta da desigualdade estrutural que aumenta cada vez mais a renda dos super-ricos?
André Campedelli – Primeiro, vamos ver como vai ficar a situação da cobrança do imposto de renda, porque, pela primeira vez, teremos uma cobrança mínima de alíquota efetiva de 10%. Isso será muito importante para termos uma diminuição do imposto de renda. Além disso, tem que continuar com as políticas públicas atuais, porque estão sendo efetivas: estamos conseguindo reduzir a miséria extrema, tirar as pessoas da pobreza e melhorando o patamar de renda médio do brasileiro. Tudo isso via aumento real do salário mínimo, via política do Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada, Pé de Meia e a inclusão de pessoas nas universidades federais.
[Essas políticas estão] ajudando aos poucos. Precisamos continuar com essa agenda e vamos ver o efeito da tributação dos super-ricos em relação à distribuição de renda a partir dessa medida.