“A força da resistência está na imaginação”. Entrevista com Françoise Vergès

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12 Dezembro 2025

Françoise Vergès está convencida de que quando a cultura está viva tem o poder de tecer solidariedades transfronteiriças. E é precisamente aí que o feminismo decolonial pode prosperar.

A entrevista é de Anita Fuentes, publicada por Jacobin, 07-12-2025. A tradução é do Cepat.

O genocídio israelense em Gaza reabriu debates sobre a limpeza étnica que as democracias liberais consideravam encerradas após o fim do apartheid na África do Sul. Eventos como esse não podem ser compreendidos sem levar em conta como os avanços tecnológicos foram colocados a serviço do complexo militar-industrial dos EUA e seus aliados. Enquanto o Norte Global reforça seu poder de segurança através de tecnologias de vigilância biométrica, reconhecimento facial e inteligência preditiva, no Sul Global a extração e o desapossamento se intensificam, acelerando o ritmo da acumulação violenta que sustenta o capitalismo contemporâneo. Essa lógica de guerra também permeou os movimentos emancipatórios: alguns movimentos feministas acabaram por reproduzi-la, apoiando-se no Estado e na democracia liberal como os únicos pilares que garantem a igualdade e negando sua aliança histórica com o colonialismo e o capitalismo racial.

A teórica política francesa Françoise Vergès dedicou décadas à análise das interseções entre o patriarcado, o racismo e o capitalismo neoliberal. Em Le ventre des femmes (2017), traça a genealogia da intervenção estatal nos corpos de mulheres negras, desde o tráfico de escravos até as políticas contemporâneas de controle da natalidade. Em Um feminismo decolonial (Ubu, 2020), examina movimentos como o #MeToo e as greves feministas para indagar as possibilidades de um feminismo capaz de resistir às tendências às quais o sistema nos predispõe. Em Uma teoria feminista da violência. Por uma política antirracista da proteção (Ubu, 2021), denuncia a guinada punitiva nas políticas feministas, mostrando como o próprio Estado muitas vezes reproduz a violência que alega combater. Em Making the World Clean: Wasted Lives, Wasted Environment, and Racial Capitalism [Limpar o mundo. Vidas desperdiçadas, meio ambiente desperdiçado e capitalismo racial] (2024), demonstra como a negação estrutural de necessidades vitais se distribui de acordo com hierarquias raciais, ampliando assim sua crítica ao capitalismo como uma máquina de desperdício e exclusão.

Como membro do coletivo artístico La Ville Dansée e impulsionadora do projeto Imagining the Post-Museum [Imaginar o pós-Museu], Vergès traduz seu pensamento para o âmbito da prática cultural, prefigurando relações sociais – geralmente apagadas pela limpeza burguesa – que desafiam o “trabalho sujo”: o trabalho invisibilizado, racializado e feminizado que sustenta a vida. Diante da securitização e da mercantilização, ela propõe imaginários decoloniais que exploram solidariedades transnacionais e rejeitam a dinâmica extrativista do capitalismo digital em favor de futuros pós-violentos.

Anita Fuentes conversou com Françoise no Centro Cultural La Modelo, em Barcelona, uma antiga prisão onde, durante décadas, prisioneiros políticos do regime franquista foram torturados, agora transformada em espaço de memória e debate. Foi lá que aconteceu a primeira edição da READ, a Convenção Internacional de Livros e Ideias – evento anual organizado pelas editoras Verso Libros, Verso Books, La Fabrique, Brumaire, Jacobin e Manifest Llibres.

Eis a entrevista.

Em Uma teoria feminista da violência, você argumenta que a renovação patriarcal contemporânea está profundamente entrelaçada com o capitalismo neoliberal e racial, e que os efeitos problemáticos dessa articulação não podem ser compreendidos simplesmente em termos de retrocessos nos direitos das mulheres e das minorias. Quais são as implicações dessa afirmação para uma estratégia política emancipatória, e como ela nos obriga a repensar as formas atuais de luta e organização?

O ponto de partida deste livro foi uma análise crítica das chamadas vitórias feministas das décadas de 1970, 80 e 90. Essas conquistas foram celebradas como sinais de progresso e modernidade, como se finalmente tivéssemos alcançado nosso destino. Esse destino, nos diziam, era a democracia.

Ao mesmo tempo, como argumento no livro, ocorreram retrocessos. Eu queria entender por que isso não era um acontecimento paradoxal: não se tratava de movimentos de protesto bons e ruins, mas de que esses processos estavam profundamente interligados. Assim, passei a me interessar em compreender como essa interconexão funcionava e até que ponto esses aparentes avanços poderiam ser absorvidos pelo neoliberalismo e pelo capitalismo racial sem realmente desafiar suas estruturas de dominação.

A fragilidade dessas conquistas pode ser confirmada pela observação de acontecimentos recentes, como a revogação, pela Suprema Corte dos EUA, da decisão Roe v. Wade, que eliminou o direito constitucional federal ao aborto e permitiu que cada Estado o regulamentasse ou proibisse de forma independente, ou as declarações públicas de alguns líderes cristãos argumentando que as mulheres não deveriam votar. O comentário fácil seria dizer: “Que horror, estamos retrocedendo!”, mas a questão é analisar esses movimentos dentro da estrutura da democracia liberal e de sua ligação estrutural com o capitalismo racial.

Você está se referindo às estratégias de cooptação dos liberais?

O capitalismo incorpora demandas que não ameaçam seu poder, ao mesmo tempo que protege as forças conservadoras que defendem a regressão. Ele pode manter um discurso de progresso, defender os direitos das mulheres, das crianças e até mesmo de pessoas racializadas, enquanto facilita uma guinada reacionária. É isso que me preocupa.

Por isso, defendo que devemos nos libertar da fé cega na democracia liberal e da ilusão da proteção estatal, porque a “proteção” que tivemos foi conquistada na luta pelos direitos sindicais, pela liberdade de publicar jornais... e não graças àquela abstrata liberdade de expressão tão frequentemente invocada hoje em dia. Esses direitos são extremamente frágeis porque, para o capitalismo, o que importa é o lucro. Se as forças reacionárias dizem: “Isso precisa ser eliminado”, e esse é o preço a pagar, o capitalismo aceita.

O capitalismo é dinâmico e repleto de tensões internas, mas, em última análise, busca maximizar o lucro das empresas. Sua capacidade de absorver quaisquer demandas que o desafiem deve ser reconhecida. Portanto, em determinado momento, as mulheres, as pessoas LGBTQIA+ e as pessoas negras podem escalar posições de poder sem colocar em risco o sistema, que continua a desapropriar, explorar e extrair.

De que forma essas dinâmicas que você descreve moldam os desafios e limitações atuais do feminismo? E como os movimentos feministas podem preservar seu potencial transformador sem serem cooptados ou neutralizados pela lógica do capital e do Estado?

Existe, de fato, um feminismo que lutou para entrar no Estado, para ser reconhecido por ele, para fazer parte dos governos e até mesmo para manter o poder. Hoje, há muito mais mulheres em posições de liderança do que há dez, quinze ou vinte anos, e, no entanto, nada mudou na essência do capitalismo. Os exemplos da Giorgia Meloni na Itália ou de Ursula von der Leyen na Comissão Europeia mostram que ser mulher não impede ninguém de defender políticas reacionárias, conservadoras, repressivas ou racistas. É importante dissipar essa noção: ser mulher não torna ninguém automaticamente progressista, nem garante um compromisso com a igualdade e a liberdade.

O racismo também permeia o feminismo. Por que deveria ser imune a ele, se permeia tantas ideologias, inclusive aquelas que se dizem emancipatórias? A tarefa é clara: reler os líderes, autores e teóricos canônicos do comunismo, da emancipação e da libertação para reconhecer onde erramos. Revisitar essas obras não para descartá-las porque seus autores não enxergaram algo que podemos ver hoje (qualquer geração futura dirá o mesmo sobre nós), mas para tornar visíveis as limitações da democracia liberal através da análise histórica. No cerne da democracia liberal europeia e ocidental reside um duplo padrão.

A União Europeia foi construída sobre a ideia de que o livre comércio garantiria a paz. No entanto, a atual guinada militarista expõe esse duplo padrão e as contradições inerentes ao capitalismo que você apontou.

Atualmente, líderes governamentais afirmam repetidamente que a Europa já viveu em paz, uma paz supostamente quebrada apenas pela invasão russa da Ucrânia. De acordo com essa narrativa, “o nazismo foi derrotado em 1945 e veio a paz”. Mas isso não é verdade. Depois dessa suposta paz vieram os bombardeios atômicos de Hiroshima e Nagasaki, as guerras coloniais travadas pela Grã-Bretanha e a França e os golpes imperialistas apoiados pelas potências ocidentais. A Europa foi assolada por ditaduras, como as de Portugal, Espanha e Grécia, que duraram até meados da década de 1970. Essa paz nunca existiu: foi uma ficção com enorme poder nas sociedades ocidentais.

Nossa tarefa, portanto, é nomear o núcleo ideológico que sustenta a democracia liberal ocidental: paz para “nós”, guerra para os outros; riqueza para “nós”, suposto empoderamento para “os outros”. Em vez de redistribuir a riqueza ou reparar a desapropriação colonial, diz-se aos povos empobrecidos que eles devem se empoderar. Assim, a narrativa joga a responsabilidade sobre eles, como se a guerra ou a incapacidade de acumular riqueza fossem inerentes à sua natureza. Essa é a lógica que está acontecendo hoje em Gaza. O padrão duplo não é apenas uma figura de linguagem; é algo que opera materialmente, decidindo quem morre e cujas vidas merecem ser preservadas.

Muitas feministas, especialmente no Ocidente, ficaram presas a uma lógica que as leva a abraçar a democracia de consumo como a única forma possível de fazer política.

Não havia razão para que o feminismo europeu fosse uma exceção. Muitas feministas europeias apoiaram abertamente a colonização, convencidas de que ela traria progresso e liberdade para as mulheres em sociedades consideradas “atrasadas”. Isso aponta para algo mais profundo: não basta dizer que “elas eram filhas de seu tempo”. Mesmo durante a escravidão, havia mulheres que se opunham a ela; mulheres escravizadas que se juntavam a insurreições. A ideia de que todos pensavam da mesma forma naquela época é falsa, a menos que excluamos as pessoas escravizadas da sociedade e da humanidade.

Então, para responder à sua pergunta: o feminismo europeu não está isento do racismo ou da superioridade europeia que se apresenta como o berço das ideias humanistas e relega o resto do mundo a tentar alcançá-la. Muitas feministas permanecem profundamente brancas e estruturalmente definidas. O feminismo burguês, especialmente, se apega a essa posição.

Gostaria de aprofundar o conceito de “limpeza decolonial”, que você desenvolve em Making the World Clean. Na sua visão, como o feminismo decolonial pode revalorizar as formas de trabalho racializadas e frequentemente invisibilizadas que sustentam as nossas sociedades?

Existe uma corrente feminista que propõe a eliminação do trabalho doméstico, ou pelo menos compartilhá-lo: que os homens lavem a louça, a roupa… Mas essa nunca foi a minha posição. A sociedade não funciona sem esse trabalho. Se não houver limpeza, as escolas, as universidades, os hospitais, os centros comerciais, os bancos e tudo o mais não funcionam. Não estou dizendo que, em uma sociedade pós-racista, pós-patriarcal e pós-capitalista, a limpeza desapareceria ou seria terceirizada para robôs. A limpeza está ligada à nossa relação com os corpos: limpamos os bebês, os idosos, os doentes; lavamos a nós mesmas. Durante muitas décadas de nossas vidas, as mulheres realizam o trabalho constante de limpar seus corpos durante a menstruação. A limpeza é inevitável. A questão é como pensar a limpeza para além da divisão entre limpo e sujo imposta pelo colonialismo.

A ideia de que a Europa era limpa tem sido parte dessa ficção ao longo da história, mesmo quando as cidades europeias eram imundas. Na França, muitos apartamentos não tinham chuveiros privativos até o final da década de 1960, enquanto os hammams existiam há séculos na Ásia e na América. Essa divisão permitiu que o Ocidente colonial categorizasse o mundo como limpo ou sujo e, por sua vez, atribuísse àqueles que rotulava como “sujos” a tarefa de limpar o seu mundo, forçando-os a negligenciar os lugares onde eles próprios viviam.

Hoje, isso é claramente visível nos bairros racializados: faltam parques e jardins, o lixo não é recolhido diariamente, e assim por diante. E depois a burguesia diz: “Vejam como eles vivem”, enquanto em seus próprios bairros há parques, ruas impecáveis, pássaros e borboletas. Como nos libertamos dessa divisão racial-colonial entre o “limpo” e o “sujo” que impõe normas burguesas e invisibiliza aqueles que realizam o trabalho? A tarefa é reintegrar a limpeza como uma prática decolonial, antirracista e anticapitalista.

Você tem sido muito crítica da ideia de delegar essas tarefas às máquinas.

Acredito que devemos expandir nossa imaginação para além dos robôs e das soluções tecnocráticas. A limpeza não pode ser regida pela branquitude patriarcal e burguesa. E devemos prestar atenção a outros detalhes: nos bairros pobres, as pessoas cuidam do que as cerca. Você entra numa casa e talvez encontre uma flor ou um objeto bonito, porque ali existe amor. Não há razão para negar o amor pelo ambiente ao seu redor. Devemos redefinir o que entendemos por “beleza”, para além das noções racistas e burguesas que a moldam.

Gostaria de acrescentar mais uma coisa: mesmo no nosso trabalho como feministas ou na ecologia radical, organizamos encontros entre feministas decoloniais em locais que foram limpos naquela manhã por mulheres cujos nomes não sabemos e que não fazem parte desses encontros. Por que isso acontece?

Essa retórica da limpeza evoca o conceito de limpeza étnica; algo impossível de separar do que está acontecendo na Palestina.

Sim. Primeiro, precisamos desmantelar a própria ideia de “limpeza”. Precisamos nos perguntar o que ela abrange e a quem serve. Em seu registro político, a limpeza quase sempre assume a forma de limpeza étnica. E mesmo em sua versão técnica – isto é, o uso de produtos químicos para desinfetar ou matar um vírus –, essa “limpeza” pode acabar prejudicando o meio ambiente humano e outras espécies. É por isso que insisto: a noção de limpeza foi construída para atender às necessidades do capitalismo racial.

Em Uma teoria feminista da violência, você critica o solucionismo tecnológico do Estado – a promessa de combater a violência de gênero através da expansão de dispositivos de vigilância, como as pulseiras eletrônicas, por exemplo –, que muitas vezes acaba reforçando o controle e a securitização, ou mesmo gerando novas formas de violência. Você poderia desenvolver esse argumento?

Sabemos que as invenções tecnológicas há muito servem aos propósitos da opressão, mas também foram apropriadas por aqueles que lutam pela libertação. O rádio, a imprensa e agora as redes sociais disseminam notícias e informações, abrindo brechas de liberdade dentro de estruturas criadas para a vigilância e a não liberdade. A questão é sempre como apropriar-se das ferramentas do sistema e subvertê-las para confrontar o poder. Uma das fortalezas da resistência reside precisamente nisso: a capacidade de apropriar-se daquilo que os poderosos criaram, das suas próprias leis, e usá-las como arma contra eles.

Um exemplo famoso é a Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Todos os homens nascem livres e iguais”. Os escravizados nas colônias francesas na Ásia responderam: “Certo; então somos todos livres e iguais”. E a resposta daqueles que detinham o poder foi: “Não exatamente… não vocês”. Aí reside a prática de usar a lei contra a própria lei, de usar suas próprias contradições para expor sua hipocrisia racista.

Hoje, os Estados buscam desenvolver ferramentas de vigilância cada vez mais sofisticadas. Mas, como costumo dizer, sua imaginação é limitada: mal vai além dos instrumentos clássicos de dominação: espancamento, tortura, prisão, assassinato… Precisam do progresso tecnológico constante porque percebem que a resistência social persiste. A polícia de hoje não é a mesma de quinze anos atrás: é muito mais automatizada, e ainda assim as pessoas continuam a resistir. Então, quem está no poder se pergunta: “O que vem a seguir? Reconhecimento facial? Vigilância biométrica? Inteligência artificial preditiva?” Está ficando cada vez mais difícil escapar do panóptico digital.

Como podemos analisar criticamente essas ferramentas e, ao mesmo tempo, imaginar tecnologias que realmente fortaleçam os movimentos comprometidos com a libertação coletiva?

A força da resistência reside na imaginação, e isso é algo que o poder não pode controlar. De fato, algumas táticas se tornam mais difíceis: falsificar documentos pode ser mais complicado hoje do que era há vinte anos. Mas sempre encontramos novas maneiras de resistir, e elas provavelmente estão sendo inventadas em algum lugar do mundo neste exato momento. A questão não é se podemos lutar, mas como travamos essa luta. E não devemos agir por medo, porque é o poder que realmente tem medo: ele percebe que algo está mudando e responde endurecendo suas defesas, militarizando-se.

Sob o pretexto do progresso tecnológico, os Estados estão estendendo a vigilância a tudo o que fazemos com nossos celulares e computadores. O que eles buscam é arrepiante: querem entrar em nossas mentes. Querem controlar até mesmo nossos sonhos. O objetivo final é aniquilar a alma.

Não devemos subestimar a ânsia do poder de matar, assassinar e reprimir, mas também não devemos exagerá-lo nem nos deixar paralisar por ele. No passado, o poder também demonstrou uma força extraordinária. Quando os colonizadores chegaram à África e à Ásia, trouxeram canhões e metralhadoras que lhes conferiram uma superioridade militar esmagadora durante um tempo. Mesmo assim, os povos colonizados lutaram e resistiram.

Considerando o regime de vigilância que você descreve, como os feminismos decoloniais podem pensar e construir uma sociedade pós-violenta que rejeite a noção de que a guerra e o genocídio são “necessários” para a continuidade do sistema capitalista?

Eu diria que devemos fomentar, tanto quanto possível, espaços de alegria: lugares onde as crianças possam brincar sem serem ensinadas a obedecer, onde a dignidade seja cultivada. Com a dignidade vem o respeito e a compreensão de que as coisas requerem tempo e esforço, que não se fazem com um clique. Se você observar alguém construindo uma mesa, tecendo um tapete ou preparando uma refeição, entenderá que as tarefas cotidianas exigem dedicação. Da mesma maneira, um bebê precisa de anos para se tornar independente. Esses tipos de observações restauram a noção da temporalidade da vida: as coisas não são instantâneas; não funcionam como um aplicativo em que você simplesmente aperta um botão.

No meu livro também falo sobre a criação de espaços para a prática artística coletiva. Não me refiro ao mito do gênio solitário, ao artista entendido como um indivíduo isolado, mas à possibilidade de aprendermos juntos. Não necessariamente para nos tornarmos artistas, mas para nos reconectarmos com o prazer de criar algo em comum. Penso em oficinas onde mulheres e homens trabalham juntos e aprendem uns com os outros: aqueles que sabem esculpir madeira ou trabalhar com plantas ensinam os outros e compartilham esse conhecimento. Se cantam e conversam, aprendem e, nessa prática coletiva e criativa, cada pessoa pode dar asas à sua imaginação.

Também me interesso pelo Teatro do Oprimido, a metodologia teatral social e política criada pelo brasileiro Augusto Boal. Como podemos resgatar a arte de fazer teatro de rua? Como podemos nos reapropriar do espaço público para dialogar com as pessoas sobre suas preocupações, fazendo arte com elas, fora dos teatros e do circuito profissional? Precisamos reinventar formas de fazer: trabalhar a dança com crianças, não para que elas possam competir ou se tornar profissionais, mas para que possam se reconectar com seus corpos com liberdade e prazer.

Vivemos em um mundo conectado que promete liberdade infinita: “Você pode fazer o que quiser!”, “Você pode conseguir milhares de seguidores!”. Mas essa promessa se desfaz quando somos forçados a nos submeter à lógica extrativista da economia digital.

Por isso insisto: precisamos fazer isso com as crianças da vizinhança, com os idosos, com as pessoas com deficiência, com aqueles que enfrentam dificuldades… com todos/as. Todos nós temos corpos, todos nós temos sentimentos. Retornemos a eles por meio da ação e dos cuidados coletivos, não pelo gerencialismo benevolente desta sociedade nem pelo individualismo reproduzido em nossas escolas.

Gostaria de concluir com sua ideia de nos reapropriarmos da performance como um modo de vida. Em uma economia digital obcecada pela autenticidade, vale a pena considerar práticas performativas genuínas que, em vez de transformar a vida em uma performance contínua para fins de consumo, nos permitam alcançar objetivos verdadeiramente transformadores.

Para mim, a performance não consiste em exibir nossas capacidades. Se você dança melhor do que eu, isso faz parte da alegria compartilhada. Não me sentirei menosprezada; é simplesmente que você tem uma habilidade e eu tenho outra. Nos meus workshops, cozinhamos e comemos juntos, mas não transformamos isso em um espetáculo ou conteúdo. Não dizemos: “Hoje vamos nos apresentar em tal lugar”. Quando faço teatro de rua ou uma performance pública – algo que comecei em 2015 – é sempre gratuito e seguido por uma discussão ou conversa com quem assiste à apresentação.

Há dois anos, lançamos La Ville Dansée, em parceria com o coreógrafo e dançarino Benjamin Millepied. Ele pediu a mim e a outros que escolhêssemos dez lugares de importância histórica em Paris; a partir desse mapa, uma equipe de coreógrafos e dançarinos criou suas peças. Juntamente com Fabien Truong, também da direção artística, decidimos explorar a cidade a partir da sua história colonial.

Assim, por exemplo, em frente à Torre Eiffel – o ícone da França – contamos que sua fase final de construção foi financiada com dinheiro saqueado da República do Haiti: as chamadas reparações que a França exigiu como preço pelo reconhecimento de sua independência após 1804. O Haiti teve que pagar “pela perda da propriedade privada” dos colonizadores franceses; ou seja, pagar pelas pessoas escravizadas que deixaram de ser consideradas propriedade dos franceses.

Outra história tem a ver com o ferro. Durante muito tempo, certas técnicas avançadas de forjamento permaneceram desconhecidas na Europa. No século XIX, um observador britânico viajou para a Jamaica e viu o trabalho de pessoas escravizadas, mestres ferreiros em suas terras natais, graças ao domínio que tinham do fogo e do metal. Ao retornar à Europa, esse homem se apresentou como o inventor dessas técnicas. Na realidade, o que ele apresentou como sua própria invenção era conhecimento originário da África Ocidental. Uma coreógrafa asiática levou essa história aos palcos, transformando-a em dança. Também contamos a história da diáspora comunista vietnamita em Maubert, no Bairro Latino, um centro histórico de militância estudantil onde a comunidade teve um de seus núcleos durante décadas.

Para mim, é simples: quando a cultura está viva – nas ruas, nas oficinas, nos museus que praticam a restituição e se recusam a se tornar espaços de vigilância policial –, ela tem o poder de tecer solidariedades transfronteiriças. É aí que o feminismo decolonial prospera: em lugares onde a criação coletiva é fomentada, onde assumimos responsabilidades mútuas com as pessoas e o meio ambiente, e onde encontramos alegria em vez de medir tudo em termos de produtividade e desempenho.

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