31 Outubro 2025
"A beleza como ato de insurreição. A criação como o lugar onde a verdade abre caminho, mesmo entre os escombros e as cinzas."
O artigo é de Silvina Pachelo, artista visual, escritora, editora, ilustradora e bailarina, publicado por Página|12, 31-10- 2025.
Eis o artigo.
“Nós, os fascistas, somos os verdadeiros anarquistas”, diz um dos quatro senhores reunidos em um castelo distante, em Saló ou os 120 dias de Sodoma, último filme de Pier Paolo Pasolini (1975). Inspirado na República Social de Saló — o reduto do fascismo italiano nos estertores do regime de Mussolini durante a Segunda Guerra Mundial —, o filme não busca simplesmente denunciar o fascismo histórico, mas o seu lado mais decadente e destrutivo.
Enquanto o cinema e, hoje, as plataformas se limitam a produzir biopics adocicadas do fascismo — narrativas moralizantes, fáceis, assimiláveis — Saló oferece o contrário: uma experiência insuportável. Pasolini toma a arquitetura narrativa do Marquês de Sade. “Não há afrodisíaco mais poderoso que desafiar o Bem.” E, em Pasolini, essa frase torna-se diagnóstico: a verdadeira anarquia é a dos poderosos. Aqueles que decidem com total liberdade e absoluta prepotência sobre a vida e a morte dos outros.
O fascismo, aqui, não é uma ideologia, mas uma lógica: a do capitalismo levado ao seu extremo sádico. Saló é a representação monstruosa e inefável que nos confronta com aquilo que o sistema prefere exibir apenas sob formas decorativas. O filme retoma a arquitetura de Sade conforme seu ordenamento dantesco. Quatro senhores — figuras concentradas do poder nobiliário, religioso, judicial e econômico — retiram-se para um castelo, onde produzem seu pequeno laboratório de tirania absoluta.
Eles são acompanhados por quatro narradoras e um grupo de jovens sequestrados, reduzidos desde o início à condição de matéria disponível. As aberrações sexuais não são mero excesso: são a técnica do poder, seu fetiche totalizante. O domínio só se consuma quando o corpo do outro é degradado até converter-se em coisa: objeto de uso, de troca, de descarte.
Mas o decisivo em Saló não reside na anedota, e sim em sua forma. Pasolini advertiu com precisão: “A verdadeira mensagem é inexprimível”. O sentido não se diz — organiza-se. E essa organização é implacável. O filme se desdobra como uma liturgia invertida: Anteinferno, Círculo das Manias, Círculo da Merda, Círculo do Sangue. Cada estação é uma descida. As narradoras evocam experiências extremas; os jovens são oferecidos em sacrifício; o espectador é confinado à posição impossível do testemunho.
Nada se explica. Nada se justifica. Tudo se expõe. O filme mostra a lógica fria, cirúrgica e dessacralizada de um poder que já não precisa se ocultar, porque suprimiu toda alteridade possível — um poder sem fora, que só conhece a repetição mecânica da crueldade; um poder que, tendo triunfado, exibe o próprio rosto sem máscaras.
Saló dissolve-se no conformismo hipócrita e positivista de uma sociedade voltada ao consumo, onde os corpos se exibem como mercadorias cujo valor reside apenas em sua disponibilidade. É uma sociedade anestesiada, incapaz de estremecer diante do sofrimento do outro. O velho ordenamento foi substituído por outro mais eficiente, mas a lógica permanece intacta.
O filme encena o extermínio cultural e físico de um mundo governado por um poder real — hoje virtual, corporativo, silencioso —, como insiste o filósofo Rocco Carbone. Pasolini o havia antecipado: a violência já não irrompe de fora, mas infiltra-se na vida cotidiana, naturaliza-se, torna-se hábito, procedimento, automatismo. Uma violência teledirigida, transparente, sem resto e sem retorno.
Nesse sentido, a fórmula “Nós, os fascistas, somos os verdadeiros anarquistas” não é uma provocação, mas a chave para decifrar a matriz contemporânea do poder. O fascismo não desapareceu: dessacralizou-se, tecnificou-se, transformou-se em administração da vida e da morte.
Por isso, o que ocorre hoje em Gaza não pode ser lido como um “conflito regional” nem como um enfrentamento entre dois Estados: trata-se da execução de uma soberania que se assume situada além de toda legalidade, operando desde um lugar onde a lei já não rege, porque a própria lei é um de seus instrumentos.
É uma soberania nua, atroz, que se arroga o direito de decidir quem merece viver e quem pode ser aniquilado; uma soberania que executa não apenas a destruição física de um povo, mas também o apagamento sistemático de sua memória, de seus nomes, de seus arquivos, de seus gestos e de seus lugares.
O apoio incondicional dos Estados Unidos a Israel mostra que a soberania contemporânea já não se exerce governando, mas suspendendo a autoridade moral e jurídica em si mesma. Governar, neste novo regime, é agir sem pudor, sem limite e sem responsabilidade.
Com o consentimento passivo de uma sociedade civil e intelectual incapaz de distinguir entre guerra e genocídio, entre exército e resistência, entre vítimas e algozes, consolida-se o ponto de vista do opressor e legitima-se sua violência. É o olhar burguês de um mundo conformista que escolhe não ver.
Na América Latina, essa mesma lógica assume outros rostos: dívida externa, lawfare, dependência econômica, acordos de segurança, disciplinamento financeiro sem soberania. Ali, as decisões não são tomadas por um governo, mas por um olho panóptico sem rosto: a administração total da vida social pelo capital global.
Não se trata de uma anarquia vinda de baixo, mas de cima: um poder que não precisa destruir a ordem porque a administra sem restrições. O domínio já não opera por meio da força visível, mas através da gestão do possível, da programação do desejável, da clausura do pensável.
Saló revela, em última instância, a gramática erótica do poder fascista: sua hierarquia, sua economia do subjugamento, seu gozo na escravidão. É a obra dos últimos dias de Pasolini. O poeta vivia cercado, vigiado, marcado para a morte. Seu destino trágico estava inscrito, como o de Sade, no próprio ato de falar contra seu tempo.
Mas o poder não pôde extinguir esse resto incandescente: essa vaga-lume que persiste mesmo quando o mundo escurece.
Pode-se afirmar que, em Saló ou os 120 dias de Sodoma, a matriz da linguagem é o medo. Medo para os corpos subalternos, despossuídos, reduzidos à servidão absoluta; êxtase para os senhores, beneficiários da ordem social. Aí se configura uma economia afetiva desigual: o terror como destino de uns, o prazer como privilégio de outros.
Os senhores de Saló não apenas detêm o poder: produzem uma pedagogia do obsceno, uma formação na monstruosidade que culmina na indistinção entre arte e crime, beleza e horror. Pasolini inscreve esse regime em imagens que não seduzem, mas dilaceram.
O filme obriga o espectador a descer ao inferno: não se trata de olhar de fora, mas de ser testemunha da tortura. E essa tortura é, hoje, o espetáculo do mundo. Tudo ocorre como uma cerimônia desenhada para ser contemplada: o poder não apenas exerce a brutalidade — ele a exibe, a estetiza, a converte em norma compartilhada.
É impossível ler esse gesto estético sem a sombra da morte de Pasolini. Na madrugada de 2 de novembro de 1975, armaram-lhe uma armadilha. Foi encontrado ao amanhecer: sacrificado, martirizado, abandonado em um terreno baldio. Esse crime é o contra-campo de Saló: a mesma violência estrutural que o filme expõe foi a que o matou.
Aquilo que Pasolini denunciava voltou-se contra ele. Quase cinquenta anos após sua ausência, sua obra persiste como um grito que não cede diante da pocilga do poder. O que resta é a poesia e a insolência: a palavra viva contra o império do atroz.
A beleza como ato de insurreição. A criação como o lugar onde a verdade abre caminho, mesmo entre os escombros e as cinzas.
“Chora o que, tendo fim, renasce de novo... Chora tudo o que muda, ainda que para tornar-se melhor.” (Le ceneri di Gramsci)
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