“Os ataques dos Estados Unidos a barcos no Caribe são um crime de guerra”. Entrevista com Amy Goodman e Juan González

Foto: @SecWar/Fotos Públicas

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10 Dezembro 2025

À medida que se intensificam as críticas de democratas e republicanos aos ataques dos Estados Unidos contra supostos “barcos da droga” no Caribe e no Pacífico oriental, a Casa Branca defende uma operação realizada em 2 de setembro, na qual 11 pessoas morreram. O The Washington Post informa que o secretário de Defesa, Pete Hegseth, ordenou um segundo ataque para matar dois sobreviventes do primeiro — uma ordem que, segundo especialistas jurídicos, configuraria um crime de guerra. A Casa Branca confirmou na segunda-feira o segundo ataque, mas afirmou que a autorização não partiu de Hegseth, e sim do almirante Frank Mitch Bradley, então chefe do Comando Conjunto de Operações Especiais.

Isso acontece após a ameaça de Hegseth de submeter a um conselho de guerra o senador democrata Mark Kelly, ex-oficial da Marinha, depois que Kelly e outros cinco veteranos democratas instaram militares a desobedecer ordens ilegais.

Nos acompanha David Cole, professor do Centro de Direito da Universidade de Georgetown e ex-diretor jurídico nacional da ACLU (União Americana pelas Liberdades Civis). Seu recente artigo no The New York Times tem o título “Mark Kelly está sendo investigado por dizer a verdade”.

A última vez que falamos com ele foi em outubro, após seu artigo na The New York Review of Books, intitulado “Sair impune”, sobre os ataques a barcos. Portanto, essas duas questões estão ganhando enorme destaque nesta semana. De um lado, temos as revelações do The Washington Post sobre o segundo ataque a um barco que matou náufragos — dois homens que se agarravam à vida quando o barco foi atingido novamente; de outro, temos os ataques contra Mark Kelly para levá-lo a um conselho de guerra, depois de ele e outros terem falado sobre a obrigação de os soldados não obedecerem ordens ilegais.

A entrevista é de Amy Goodman e Juan González, publicada por CTXT, 05-12-2025. 

Eis a entrevista. 

Fale-nos sobre a convergência desses dois temas e, em especial, sobre o que está acontecendo com Kelly neste momento.

Toda essa operação, desde o início, é ilegal. Não é legal atacar de forma premeditada pessoas só porque você acredita que elas estejam envolvidas em atividades criminosas. Neste país, temos um sistema para julgar as pessoas, condená-las e sentenciá-las. Mesmo que alguém seja considerado culpado por contrabando em grande escala de drogas, não pode ser executado. A pena de morte é restrita a culpados por homicídio.

O presidente diz que isso é uma guerra, mas está confundindo a metáfora com a realidade. A “guerra às drogas” é uma metáfora, como a “guerra contra o câncer”. Isso não nos dá permissão para matar pessoas que transportam drogas, assim como a “guerra contra o crime” não nos dá permissão para matar criminosos.

O que já sabemos é que não apenas toda a operação é ilegal desde o início, como agora estão atacando os sobreviventes desses ataques — pessoas que não representam nenhuma ameaça aos Estados Unidos, que tentam salvar suas vidas e que o Exército está atacando e matando a sangue-frio. Isso se parece cada vez mais com o massacre de Mỹ Lai.

E, no entanto, quando membros do Congresso dizem aos militares: “Vocês sabem que têm a obrigação de não cumprir ordens ilegais”, o que o presidente faz? Ele não diz: “Bom, isso é verdade. Essas ordens são problemáticas. Deveríamos repensá-las. Deveríamos ouvir todos os advogados que nos disseram que eram ilegais antes de nós os expulsarmos da sala”. Pelo contrário, vão atrás de Mark Kelly, um senador, ex-combatente, simplesmente por…

Ex-astronauta?

…dizer a verdade. E ex-astronauta. Simplesmente por dizer a verdade. “Eu estava apenas cumprindo ordens” não é uma defesa para um crime de guerra. E matar civis que não estão envolvidos em um conflito armado contra nós é um crime de guerra. Trata-se de uma atividade criminosa desde o início, duplamente criminosa quando se começa a atacar os sobreviventes. Eles precisam rever essa política, e não afirmar que seus críticos estão envolvidos em sedição.

Mas, David, fico me perguntando se todos esses ataques a barcos não estão criando um clima no qual, basicamente, os Estados Unidos, o povo dos Estados Unidos, estão se acostumando com a ideia de que o país vai entrar em guerra. Ou seja, vai atacar militarmente a Venezuela. Por exemplo, o The Guardian acaba de informar que, em Trinidad e Tobago, que fica ao lado da Venezuela, há cem fuzileiros navais que instalaram um radar. Havia uma citação de um líder político de Trinidad e Tobago, David Abdulah, do Movimento pela Justiça Social, acusando seu governo de ser cúmplice dessas execuções extrajudiciais no Caribe. Que pretexto você acha que os Estados Unidos usarão para atacar militarmente a Venezuela?

Se entrarem em guerra com a Venezuela, isso será um ato de agressão contra um país que não nos atacou.

Bem, toda essa operação já é um pretexto. Não há nenhuma guerra em curso. Não estamos sendo atacados. Ninguém foi convocado para lutar contra um inimigo. O presidente Trump pegou um problema de criminalidade e disse: “Vou usar o Exército para resolver o problema da criminalidade. Como? Matando pessoas a sangue-frio”. E Pete Hegseth traduz isso dizendo à sua equipe: “Matem todo mundo”. E, então, o almirante Bradley responde a isso ordenando matar até mesmo os sobreviventes que apenas se agarram à vida. São crimes que o governo tenta justificar como atos de guerra.

Se entrarem em guerra com a Venezuela, isso também será um crime de guerra. Será um ato de agressão contra um país que não nos atacou. O fato de que haja pessoas que talvez — provavelmente — contrabandeiem drogas para este país a partir da Venezuela não diferencia esse país do México, do Canadá ou de muitos outros países de onde entram drogas por contrabando. Isso não nos dá autoridade para matar canadenses. Não nos dá autoridade para matar mexicanos. Não nos dá autoridade para matar venezuelanos. E, certamente, não nos dá autoridade para entrar em guerra com um país.

Também me pergunto sobre outra importante batalha legal do governo Trump: a admissão, por parte do Departamento de Justiça, de que foi a secretária de Segurança Nacional, Kristi Noem, quem tomou a decisão de deportar um grupo de homens venezuelanos para o famoso complexo penitenciário de El Salvador, ignorando a ordem de um juiz para mantê-los sob custódia. O que você acha disso?

É revoltante. Revoltante. Somos um país regido pela lei. Isso significa que os funcionários do governo, assim como você e eu, devem cumprir as ordens judiciais. Neste caso, o governo Trump, usando novamente o pretexto de uma guerra, disse que deportaria centenas — dezenas, mais de cem — venezuelanos, alegando que fazem parte do Tren de Aragua, uma facção criminosa venezuelana que, segundo Trump, estaria envolvida em um conflito armado contra nós, apesar de ninguém jamais ter ouvido falar desse grupo antes de Trump fazer essa afirmação ridícula.

A ACLU recorreu imediatamente aos tribunais para contestar essa decisão. O juiz realizou uma audiência e disse, de forma inequívoca: “Não deportem essas pessoas. E, se os aviões já tiverem decolado, façam-nos retornar. E, se pousarem em El Salvador, não deixem as pessoas descerem. Tragam-nas de volta”.

Mesmo assim, Kristi Noem, diretora do Departamento de Segurança Nacional, ordenou a sua equipe que desobedecesse essa ordem e prosseguisse com os voos para El Salvador, para entregar esses homens às autoridades salvadorenhas, onde foram encarcerados, na prática, em uma prisão onde se pratica tortura.

Não é assim que o Estado de direito deve funcionar. Acredito que isso resultará em acusações por desacato contra Kristi Noem e todos os que participaram desse descumprimento flagrantemente ilegal da ordem judicial.

Amy Goodman: Eu queria continuar no tema das deportações. Há o caso de Kilmar Abrego García. Um corajoso advogado do Departamento de Justiça disse no tribunal, porque precisava dizer a verdade, que não estava claro por que ele havia sido enviado ao CECOT (Centro de Confinamento do Terrorismo). Agora ele enfrenta a possibilidade de ser enviado para um país africano atrás de outro — um continente do qual ele não é originário. O governo não pretende reverter sua deportação. Queria te perguntar sobre isso.

E também sobre este outro caso: ontem tivemos a notícia de uma jovem, estudante do Babson College, deportada para Honduras neste fim de semana enquanto tentava voar de Boston para o Texas para fazer uma surpresa à família no Dia de Ação de Graças. Any Lucía López Belloza, de 19 anos, foi informada de que havia um problema com seu cartão de embarque no portão, antes de ser detida por agentes de imigração. No dia seguinte à sua detenção, um juiz federal emitiu uma ordem de emergência proibindo o governo de expulsá-la dos Estados Unidos por 72 horas. Mesmo assim, ela foi deportada e agora está em Honduras, país que não visita há anos. Ela não cresceu lá.

Acho que temos de perguntar ao presidente Trump: ele não tem nenhum senso de decência? Nenhuma vergonha? O nível de crueldade que está infligindo a pessoas que viveram aqui a vida toda, ao senhor Abrego García, cuja deportação foi, sem dúvida, um erro. E, em vez de admitir o erro e pedir desculpas, agora querem enviá-lo a um terceiro país, à África, um lugar que ele não conhece e onde nunca viveu. Isso é simplesmente inaceitável. Absolutamente inaceitável.

E acredito que o povo americano percebe que o que o governo está fazendo em nome da aplicação da lei de imigração é excessivo, cruel demais. Não estão selecionando criminosos. Não estão focando pessoas na fronteira. Estão prendendo estudantes universitários. Estão prendendo pessoas que comparecem a entrevistas e audiências judiciais e as estão enviando para países dos quais nunca saíram.

Trump está abusando do poder de indulto como nenhum outro presidente fez antes.

David, temos uma notícia de última hora. O ex-presidente de Honduras, Juan Orlando Hernández, acaba de sair da prisão nos Estados Unidos, onde cumpria uma pena de 45 anos por tráfico de drogas e crimes relacionados a armas de fogo. Seu irmão, Tony Hernández, também cumpre prisão perpétua aqui nos Estados Unidos. O ex-presidente foi condenado por enviar toneladas de cocaína aos Estados Unidos. Compare isso com o que os Estados Unidos estão fazendo no Caribe, bombardeando os chamados barcos da droga para impedir que elas entrem no país.

Mais uma vez, será que eles não têm vergonha? Trata-se de alguém que era, essencialmente, um chefão do narcotráfico, alguém que usou a autoridade do cargo para garantir que drogas, em quantidades massivas, chegassem aos Estados Unidos. Ele é processado, condenado e sentenciado. E o que o presidente Trump faz? Tira ele da prisão.

Enquanto isso, os pescadores dos barcos no Caribe, que nunca foram julgados nem acusados de nada, são alvejados e mortos do ar. E quando as pessoas se agarram à vida, eles continuam atirando e matando essas pessoas.

Isso não é uma luta para impedir que drogas entrem neste país, porque, se fosse, não se concederia indulto a alguém condenado por esse crime. Trata-se de pura política — e de brincar com a vida das pessoas, tirar a vida de pessoas, para obter vantagens políticas partidárias.

Fico me perguntando sobre o uso que Trump faz do indulto. A maioria dos presidentes espera até o último ano do mandato e, perto do Natal, concede vários indultos, mas Trump enlouqueceu com esses perdões. Você poderia falar sobre a mensagem que isso transmite sobre o poder presidencial?

Bem, o poder de indulto é um dos poderes que a Constituição concede ao presidente sem controle direto. Em geral, confiamos que os presidentes o usem com prudência, para conceder clemência em casos apropriados — não para recompensar doadores, filhos de doadores, ou aqueles que violaram a lei da mesma forma que Trump.

Trump está usando — ou melhor, abusando — do poder de indulto como nenhum outro presidente fez antes, e espero que nenhum outro volte a fazê-lo depois. Mas isso realmente levanta sérias dúvidas sobre conceder ao presidente um poder absoluto. O poder absoluto corrompe — e o presidente Trump demonstrou isso com seu uso do poder de indulto. Ele está perdoando pessoas que beneficiam seus interesses comerciais. Ou seja, está usando o poder para encher os próprios bolsos e libertar pessoas com as quais se identifica, não para conceder indultos baseados em princípios.

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