Em carta aberta, historiador Thiago Gama (doutorando da UFRJ) denuncia a ofensiva judicial de general da reserva contra o Prof. Dr. Francisco Carlos Teixeira da Silva. O manifesto expõe o uso de lawfare como instrumento de intimidação à cátedra e silenciamento da memória sobre a Guerrilha do Araguaia, reafirmando que a verdade histórica sobre a ditadura não se submete a sentenças, mas aos arquivos e à Constituição.
Prof. Dr. Francisco Carlos Teixeira da Silva (UFRJ): a cátedra e a memória sob ataque. (Foto: Arquivo Pessoal)
O artigo é de Thiago Gama, aluno de Doutorado da UFRJ orientado pela Profª. Drª. Beatriz Bissio.
Não estamos em 1968. O calendário insiste em marcar dezembro de 2025, mas o ar que respiramos nesta semana, carregado de um mofo institucional que julgávamos ter sido limpo pelos ventos da Constituição Cidadã, diz-nos o contrário.
Há um cadáver insepulto na sala de estar da República brasileira. Ele não cheira apenas a pólvora ou a sangue coagulado; ele cheira a censura. E é contra este odor putrefato, que tentam agora sufocar um dos maiores intelectuais deste país, o Professor Doutor Francisco Carlos Teixeira da Silva, que precisamos, como sociedade civil, erguer não apenas a voz, mas a muralha intransponível da Lei e da Memória.
O que se desenha diante dos nossos olhos, sob a forma cínica de um processo judicial por “calúnia” e — o termo seria risível se não fosse trágico — “falsificação da História”, não é uma disputa entre dois homens. É o choque tectônico entre duas eras, duas visões de mundo inconciliáveis.
De um lado, temos a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o templo do saber, representado por um homem que dedicou cinco décadas a desentranhar as complexidades da guerra, da política e da sociedade; um historiador que, como ele mesmo citou lembrando Marc Bloch, possui a memória do elefante. Do outro lado, sai das sombras da reserva, e das matas do Araguaia, o General Álvaro de Souza Pinheiro. E ele não vem sozinho. Ele traz consigo a tentativa desesperada de revogar a Lei da Anistia pelo avesso: se antes anistiaram os torturadores, agora querem criminalizar os historiadores que ousam apontar-lhes os nomes.
É imperativo que a sociedade brasileira compreenda a gravidade deste precedente. Quando um General, que em 2020 foi diagnosticado pelo próprio Comando Militar do Leste com “síndrome demencial” após um surto psicótico armado na Lagoa Rodrigo de Freitas, se sente autorizado a utilizar o Poder Judiciário para cassar títulos acadêmicos de um Professor Titular, a normalidade democrática rompeu-se. Há aqui uma inversão ontológica: a força bruta, que historicamente violou a lei, agora veste a pele de cordeiro do litigante para tentar calar a razão.
O General Álvaro Pinheiro, cujas mãos operaram nas Forças Especiais durante a repressão à Guerrilha do Araguaia — episódio onde a Comissão Nacional da Verdade contabiliza desaparecimentos forçados e execuções sumárias —, ousa acusar um acadêmico de “falsificar” o que ele, General, ajudou a ocultar.
O historiador Francisco Teixeira não é apenas um CPF sob ataque; ele é, neste momento, a encarnação do Artigo 5º, inciso IX, da Constituição Federal, que garante a liberdade de expressão da atividade intelectual, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. Ele é a voz viva do Artigo 206, inciso II, que assegura a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber.
O ataque a ele é um ataque direto a cada sala de aula deste país, a cada tese de doutorado que ousa investigar os porões da ditadura, a cada estudante que abre um livro de História esperando encontrar a verdade, e não uma versão saneada por aqueles que seguravam os cabos dos eletrodos.
Como podemos aceitar, passivamente, que a história seja auditada por seus algozes? O General Pinheiro, em depoimento à Comissão Nacional da Verdade em 2013, classificou a busca pelos corpos dos desaparecidos como um “desperdício de tempo”, uma “missão inglória”.
Para ele, a dor de uma mãe que não tem um osso do filho para chorar é uma ineficiência logística.
E é este homem, que demonstrou tal desprezo pela dignidade humana e pela verdade factual dos cemitérios clandestinos, que agora demanda indenização por danos morais? Onde estava a moralidade quando os corpos eram ocultados na mata? A moralidade, General, não é uma farda que se veste para ir ao tribunal; é a pele que se habita quando ninguém está olhando.
Francisco Teixeira, ao contrário, construiu sua carreira iluminando as trevas. Sua obra não precisa de defesa minha ou de qualquer advogado; ela defende-se por si mesma, alicerçada em rigor metodológico, em arquivos, em evidências. Ele serviu ao país no Ministério da Defesa, tentando, num esforço hercúleo e republicano, construir pontes entre civis e militares, tentando ensinar que a farda deve servir à Constituição, e não tutelá-la.
A ingratidão que recebe agora, sob a forma de lawfare e ameaças à sua integridade física, é a prova cabal de que, para certos setores da caserna, a democracia é apenas um intervalo inconveniente entre dois golpes.
O “passado que não passa”, frase de Ernst Nolte evocada pelo professor, está aqui, batendo à porta com um oficial de justiça. O General Pinheiro não quer apenas dinheiro ou retratação. O pedido de “cassação dos títulos acadêmicos” revela o desejo inconfesso do totalitarismo: a aniquilação intelectual do oponente.
Eles não querem vencer o debate; eles querem que o outro deixe de existir como sujeito pensante. É a lógica do extermínio, transposta da selva do Araguaia para as laudas de uma petição inicial. Mas eles esquecem que ideias são à prova de bala e, certamente, à prova de processos intimidatórios.
Vamos contrastar a biografia de quem empunhou armas contra o próprio povo com a de quem empunhou livros para libertá-lo. Vamos invocar as leis que protegem a verdade e os mártires que a regaram com sangue. Porque, se o General acha que pode intimidar a História, e, por extensão, a UFRJ e todas as Universidades deste país, ele cometeu o seu erro estratégico final. A História, General, tal qual os elefantes citados por Francisco Teixeira, não esquece. E nós, a sociedade civil, somos a memória viva desses elefantes.
A tentativa de silenciamento do Professor Chico Teixeira é o sintoma de uma febre que não curamos. O golpe de 1964, que vitimou centenas de brasileiros — 434 mortos e desaparecidos reconhecidos oficialmente pela CNV, sem contar os milhares de indígenas e camponeses cujos nomes a terra engoliu sem registro —, não foi um “movimento”. Foi um crime de lesa-pátria e de lesa-humanidade.
Crimes de lesa-humanidade, conforme o Direito Internacional e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, são imprescritíveis. A verdade sobre eles também o é. Quando o historiador narra o golpe, ele não “difama” as Forças Armadas; ele apenas segura um espelho. Se a imagem refletida é monstruosa, a culpa não é do espelho, nem de quem o segura.
Estamos diante de uma oportunidade histórica, ainda que dolorosa. O processo movido pelo General contra o Professor permite-nos reabrir o debate que foi sufocado em 1979 e ignorado na transição lenta, gradual e insegura. É a chance de colocar no banco dos réus, moralmente e historicamente, não o historiador, mas o período de trevas que o general representa. “Nada me deterá”, disse o professor.
E nós dizemos: “Ninguém solta a mão de ninguém”. A academia não recuará. A imprensa livre não recuará. A verdade, essa senhora teimosa que sobreviveu aos paus-de-arara e aos decretos secretos, não se curvará diante de uma notificação judicial.
Este é apenas o começo da nossa defesa. A História não pode ser tutelada pelo Judiciário. Vamos expor, com a frieza dos fatos e o calor da justiça, quem é quem nesta tragédia brasileira. O General Álvaro Pinheiro, que em 2020 surtou e ameaçou policiais, agora pede sanidade ao tribunal? A contradição é o próprio tecido desta farsa. Mas a farsa acabou. As cortinas abriram-se e a plateia, atenta, não aplaudirá os velhos atores da repressão. O palco agora, General, pertence à Democracia.
Se o desejo do General Álvaro Pinheiro é levar o debate histórico para o terreno jurídico, que seja. Mas ele deve saber que, ao cruzar o umbral do Tribunal, não pisa mais no solo lamacento da exceção, onde a vontade de um comandante valia mais que a lei; ele pisa no solo sagrado do Estado Democrático de Direito, pavimentado pela Constituição de 1988, aquela que Ulysses Guimarães, com a voz embargada de esperança e ódio à tirania, chamou de “Cidadã”. E neste solo, General, as suas medalhas de “pacificação” não valem como argumento de autoridade. Aqui, a única patente que o juiz reconhece é a da Verdade.
A pretensão de cassar títulos universitários e punir a interpretação histórica colide frontalmente com a muralha da ADPF 130. Nesta Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, o Supremo Tribunal Federal não apenas revogou a entulhada Lei de Imprensa da ditadura; ele cravou no coração da República que a liberdade de expressão e de pensamento é a “irmã siamesa” da democracia.
O Ministro Ayres Britto, em seu voto histórico, foi lapidar: “Não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia”. Processar um historiador por narrar os fatos de um regime de exceção é, em última análise, uma tentativa espúria de restabelecer a censura a posteriori, criando um “index librorum prohibitorum” verde-oliva.
Mais fundo ainda fere a lâmina do Direito Internacional. O Brasil, réu confesso no Caso Gomes Lund e Outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil, foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em 2010. A sentença é cristalina como lágrima de mãe órfã de filho: as disposições da Lei da Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos carecem de efeitos jurídicos. Ou seja, o Direito Internacional diz que os crimes que o General ajudou a abafar no Araguaia devem ser investigados.
E agora, numa reviravolta digna de Kafka, um dos operadores daquela repressão quer usar a justiça para punir quem investiga? É o réu da história tentando sentenciar o juiz da memória.
O conceito de “falsificação da História” alegado na petição é uma aberração jurídica e epistemológica. Tribunais não são bancas de tese. Juízes não possuem a prerrogativa de decidir se o Golpe de 64 foi uma “Revolução Democrática” ou um “Golpe Civil-Militar”.
Quem decide isso são os arquivos, as fontes primárias, os testemunhos e o debate acadêmico livre — exatamente o habitat natural do Professor Francisco Teixeira. Querer que um magistrado arbitre a verdade histórica com base na mágoa de um general é tentar transformar o martelo da justiça numa borracha escolar para apagar o que não convém.
Além disso, o direito do Professor Teixeira de pesquisar e publicar está blindado pelo Direito à Memória e à Verdade, reconhecido como direito fundamental implícito na dignidade da pessoa humana.
A sociedade brasileira tem o direito de saber o que aconteceu nos porões. Tem o direito de ler as análises de um especialista em Teoria da Guerra que dissecou as estruturas autoritárias. Calar Chico Teixeira não é apenas violar o direito dele de falar; é violar o direito de 213 milhões de brasileiros de saber. É tentar nos manter numa infância cívica eterna, tutelados por “pais” fardados que decidem quais histórias podemos ouvir antes de dormir.
O contraste ético é gritante. Enquanto o Professor Teixeira utiliza a pena e a palavra para cicatrizar as feridas da nação através da compreensão, o General Pinheiro utiliza o lawfare para manter a ferida aberta, exigindo que a história se ajoelhe diante da sua biografia. Mas a Constituição de 88 não se ajoelha. Ela fica de pé. E, ao ficar de pé, ela protege o historiador não por privilégio, mas porque sem a liberdade de contar a história crua, dolorosa e real, a democracia morre de amnésia.
O General, que em 2020 foi contido por filhos e policiais na Lagoa Rodrigo de Freitas num triste episódio de descontrole, talvez não compreenda que a República não é um quartel.
Na República, a crítica é livre, a pesquisa é livre, e a verdade é um bem público, não um segredo de Estado. Francisco Teixeira não “difamou” o Exército; ele honrou a farda de Caxias (personagem tão honrado pela corporação) muito mais do que aqueles que a mancharam com sangue de compatriotas, pois tentar limpar a instituição expondo seus erros é o verdadeiro ato de patriotismo. Encobri-los é cumplicidade.
Que o Judiciário brasileiro, guardião último das liberdades, rejeite esta tentativa de intimidação com a veemência que a história exige. Que a ação seja trancada não apenas por falta de justa causa, mas por falta de decência histórica. Porque, se permitirmos que um historiador seja condenado por fazer história, condenaremos o Brasil a ser, eternamente, o país do futuro que nunca chega porque esqueceu o seu passado.
BRASIL 247. Isolamento social leva general que serviu no Araguaia a surto psicótico. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 05 dez. 2025.
ESTADÃO. Para general que combateu no Araguaia, corpos de guerrilheiros não serão encontrados. São Paulo, 2014. Disponível aqui. Acesso em: 05 dez. 2025.
COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Depoimento do General Álvaro de Souza Pinheiro. 2014. Vídeo (YouTube). Disponível aqui. Acesso em: 05 dez. 2025.
POR ELAS. Francisco Carlos Teixeira da Silva: 60 anos do Golpe. 2024. Vídeo (YouTube). Disponível aqui. Acesso em: 05 dez. 2025.
CAMPONESES DO ARAGUAIA. A Guerrilha Vista por Dentro. Vídeo (YouTube). Disponível aqui. Acesso em: 05 dez. 2025.
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA (ABI). Em defesa do professor Francisco Carlos Teixeira da Silva. Rio de Janeiro, 2025. Disponível aqui. Acesso em: 05 dez. 2025.
DIÁRIO DO CENTRO DO MUNDO. Professor Francisco Teixeira denuncia ameaças de general: “Nada me deterá”. 2025. Disponível aqui. Acesso em: 05 dez. 2025.
RACISMO AMBIENTAL. Historiador Francisco Teixeira denuncia intimidações e ameaças por parte de general da reserva. 2025. Disponível aqui. Acesso em: 05 dez. 2025.
BRASIL. Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979. Concede anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes. Disponível aqui. Acesso em: 05 dez. 2025.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2025]. Disponível aqui. Acesso em: 05 dez. 2025.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 130. Relator: Ministro Carlos Ayres Britto. Julgamento em: 30 abr. 2009. Disponível aqui. Acesso em: 05 dez. 2025.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010 (Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas). Disponível aqui. Acesso em: 05 dez. 2025.