04 Dezembro 2025
23 terras indígenas do estado têm protocolos abertos na Funai com pedido de ampliação de território; lavouras de soja em Roraima estão proporcionalmente mais concentradas em torno das TIs demarcadas em “ilha” do que nas estabelecidas em territórios contínuos, diz estudo elaborado com exclusividade para a Repórter Brasil.
A reportagem é de Samantha Rufino, publicada por Repórter Brasil, 04-12-2025.
Um dos sonhos de Leirejane Macuxi, liderança da comunidade indígena Morcego, em Roraima, é a retomada de uma área próxima, rica em bens naturais, como igarapés, usados tradicionalmente por seu povo. Conhecido como Lago da Praia, em 2009 o local foi invadido por posseiros — pessoas que ocupam e cultivam a terra sem ter o título de propriedade.
Na época, seu pai, Jairo Macuxi, falecido em 2017, foi linha de frente na luta pela permanência no território. Mas a família teve de deixar a região em razão das ameaças e após verem sua casa ser incendiada. “É um sonho que a gente não deixa para trás. A gente não quer que ele morra, porque sabe que é a única garantia de vida para as futuras gerações”, diz Leirejane.
Formada por 73 famílias dos povos Macuxi e Wapichana — cerca de 285 pessoas —, a comunidade Morcego fica a 60 km da capital Boa Vista, dentro da TI (Terra Indígena) Serra de Moça, uma das 28 do estado demarcadas em “ilhas”. Ou seja, TIs pequenas, fragmentadas e desconectadas de outros territórios semelhantes. Roraima tem, ainda, cinco terras indígenas demarcadas em áreas contínuas, quando o território tem uma faixa de terra maior e sem interrupções.
Foi por causa desse modelo de demarcação — em ilha — que Morcego perdeu o Lago da Praia e, consequentemente, o acesso a bens naturais essenciais para seu modo de vida. Como agravante, a comunidade sofre com o avanço da monocultura de soja em seu entorno, que vem causando transtornos como o forte barulho das máquinas agrícolas, poeira nas casas e contaminação por agrotóxicos.
‘Ilhas’ pressionadas
No entanto, a comunidade de Leirejane não é exceção no estado. Segundo um estudo inédito do Programa de Formação em Ecologia Quantitativa do Instituto Serrapilheira, elaborado com exclusividade para a Repórter Brasil, há plantações de soja no entorno de 26 das 33 TIs de Roraima —, quase 80% do total, ou quatro em cada cinco. Destas, 24 são demarcadas em “ilhas”.
Entre 2017 e 2024, a área destinada para o cultivo do grão no estado cresceu mais de seis vezes, na esteira de incentivos públicos estaduais e no aumento da demanda.
De acordo com o levantamento, as lavouras de soja estão proporcionalmente mais concentradas em torno das TIs demarcadas em ilha do que nas estabelecidas em territórios contínuos. Os autores do estudo calcularam um índice de expansão da soja baseado na proporção da área ocupada pelo grão em relação às áreas totais da TI e do entorno.
A maior proporção encontrada foi na TI Sucuba, no município de Alto Alegre, com 32,1% de soja em relação à sua área total, seguida por Bom Jesus (15,3%) e Jaboti (14,3%), ambas no município do Bonfim e demarcadas em ilha. Na TI Serra de Moça, a relação é de 1,53%. Como comparação, as TIs Raposa Serra do Sol e São Marcos, ambas demarcadas em área contínua, tem 0,1% e 0,4% de soja no entorno, respectivamente.
A Repórter Brasil questionou o governo de Roraima sobre quais medidas estão sendo tomadas para diminuir os impactos da soja no entorno das TIs em ilhas, mas não recebeu uma resposta até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto para futuras manifestações.
Terras indígenas fragmentadas obrigam as comunidades a atravessar áreas não indígenas para acessar recursos naturais ou outras terras, e tem efeitos significativos na biodiversidade, segundo a pesquisa do Programa de Ecologia Quantitativa do Instituto Serrapilheira.
A discussão sobre o tipo de demarcação dominou o processo de homologação da TI Raposa Serra do Sol, no nordeste de Roraima. Sua demarcação contínua foi confirmada em 2009 pelo plenário do STF (Supremo Tribunal Federal), por 10 votos a 1.
O antropólogo Eduardo Tarragó, doutor pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), explica que esse modelo é mais compatível com o modo de vida tradicional dos povos indígenas. No formato em ilha, o efeito é o oposto, dificultando até o contato com as comunidades vizinhas.
“Para terem esse contato com outra terra indígena próxima, os moradores de uma comunidade têm que sair da terra indígena e percorrer um espaço não indígena para chegar à outra terra indígena. Além disso, muitas vezes, os recursos naturais que precisam estão nas propriedades ao redor”, pontua.
Terras indígenas representam 46% da área total de Roraima, e as demarcadas em ilha ocupam somente 5%. Proporcionalmente, o estado tem a maior população indígena do país (13,6%). Em números absolutos, é a quinta maior população indígena entre os estados brasileiros, com 97.320 pessoas.
‘Não é ampliação, é retomada’
Uma das saídas reivindicadas pelos povos indígenas de Roraima é a revisão das demarcações. Das 28 TIs em ilhas do estado, 23 têm protocolos abertos na Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) com pedido de ampliação de terras, segundo o advogado do CIR (Conselho Indígena de Roraima), Júnior Nicácio.
A maior parte das demarcações desses territórios teve início antes da Constituição de 1988, e não considerou a posse tradicional dos povos indígenas. “Muitas comunidades foram obrigadas a sair do seu território. Não porque elas queriam sair, mas por medo de fazendeiros ou como autoproteção, para garantir a sobrevivência”, explica.
“O espaço tradicional também é onde você trabalha, onde você caça, onde você pesca. As demarcações ficaram limitadas a um espaço muito físico, daquela área específica de moradia”, continua o advogado.
Júnior Nicácio é do povo Wapichana e também vive em uma comunidade demarcada em ilha — a Pium, localizada em Alto Alegre, o segundo município que mais produz soja em Roraima, segundo o governo. Para ele, a revisão requerida não se trata apenas de uma ampliação dos territórios, mas de um processo de retomada.
“As comunidades não costumam falar em revisão ou ampliação do território, porque o território já era deles. Então, não é uma ampliação, é uma retomada”, diz. Segundo o advogado do CIR, as comunidades trabalham em relatórios que vão incluir relatos de lideranças mais velhas que comprovariam a ocupação tradicional de áreas que ficaram de fora das demarcações. Em seguida, os documentos devem ser protocolados junto ao MPF (Ministério Público Federal).
A comunidade Morcego é uma das que reivindicam a ampliação da área demarcada — no caso, da TI Serra da Moça, da qual faz parte. Caso seja atendida, o desafio passará a ser a recuperação do solo do entorno. “Eu venho comentando que a gente vai ter prejuízo a partir do momento em que a terra for ampliada e homologada, porque estamos rodeados de soja. É desafiador, mas, se não fizermos isso, daqui a pouco eu acho que nem vida mais vai existir”, diz Leirejane Macuxi.
Procurada para comentar sobre os processos de reestudo das demarcações, a Funai não havia retornado até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto para futuras manifestações.
Em nota enviada à Repórter Brasil, o MPF afirmou acompanhar os pedidos de revisão e verificar “caso a caso qual a medida adequada”. “Dentre esses casos, o MPF já atua judicialmente em situações nas quais há conflito fundiário, como nas comunidades Manoá/Pium e Pium, para garantir que o bem-estar das populações nesses territórios não seja impactado pelas atividades fora do território”, disse o órgão (leia aqui a resposta na íntegra).
Estratégia de resistência
Enquanto a revisão das demarcações não acontece, as comunidades indígenas buscam alternativas para continuar vivendo em seus territórios. Uma delas é o PGTA (Plano de Gestão Territorial e Ambiental). Criado pelo Conselho Indígena de Roraima, é uma espécie de plano de governo das terras indígenas para implementar projetos de sustentabilidade.
Na comunidade Morcego, por exemplo, uma das iniciativas adotadas por meio do PGTA é um tanque para produção de peixe. Anteriormente, o plano havia dado origem a uma roça grande de macaxeira, que, no entanto, não resistiu à seca histórica que atingiu a Amazônia em 2023.
“A gente escreveu no plano como a gente pensa em um futuro para nós. A gente já colocou que a dificuldade é pescar, então a gente vai criar. De que maneira? Uma maneira sustentável. Tem como fazer? Tem”, detalha Jabson Silva, líder indígena do povo Macuxi.
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