02 Dezembro 2025
Ex-dirigente em órgãos públicos afirma que as mudanças impostas ao licenciamento forçam o país a abrir mão de critérios comuns por uma colcha de retalhos regulatória.
A entrevista é de Aldem Bourscheit, publicada por ((o))eco, 01-12-2025.
Aprovada em agosto, a nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental (15.190/2025) pode levar o Brasil a uma virada histórica no controle ambiental, com o licenciamento dependendo de autodeclarações e de outras regras muito flexíveis. Mas o que já era grave ficou ainda pior, pois o Congresso Nacional derrubou a maior parte dos vetos que barravam os dispositivos mais controversos do texto. Agora, os impactos poderão ir muito além das obras e empreendimentos, pois está em jogo a integridade dos biomas, a segurança de comunidades tradicionais e a própria ambição brasileira de liderar a agenda climática mundial.
Para elucidar essas questões, ((o))eco conversou com o mestre em Desenvolvimento Sustentável e especialista em Planejamento Energético-Ambiental em Cidades Nilvo Silva. Ele desempenhou ao longo das décadas funções variadas, seja como diretor de Licenciamento e Qualidade Ambiental do Ibama, diretor-presidente da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) – o órgão licenciador no Rio Grande do Sul – ou gerente no Programa de Meio Ambiente das Nações Unidas (Pnuma), no Quênia (África).
Nesta entrevista exclusiva, o hoje escritor e consultor em áreas como direitos humanos, desastres, governança territorial e infraestrutura analisa como as mudanças aprovadas no Congresso extrapolam a esfera do licenciamento. Para ele, isso atinge o coração do sistema que permitia alguma coordenação ambiental e põe em risco a capacidade mínima de gestão integrada no país. Confira a seguir os principais trechos.
Eis a entrevista.
O que é e qual a importância do Sisnama para o país? Como e desde quando ele vem sendo estruturado?
O Sisnama, o Sistema Nacional do Meio Ambiente, vem da Política Nacional de Meio Ambiente, da década de 1980. Na prática, ele nunca foi plenamente implantado, mas é um sistema que busca estabelecer regras comuns entre os entes da federação para que cooperem, articulem estratégias comuns e operem instrumentos com princípios semelhantes de proteção ambiental. Eu costumo compará-lo ao SUS, o Sistema Único de Saúde, onde o governo federal também define bases gerais e os estados e municípios executam políticas específicas. Isso nunca ocorreu totalmente no caso ambiental, mas sempre foi claro que é preciso coordenação para garantir uma proteção ambiental mínima para o país. Pelo contrário, a lei aprovada [lei geral do licenciamento] se recusa a estabelecer uma regra geral, destrói a coordenação entre entes federativos, fragiliza colegiados, amplia o poder discricionário individual e incentiva uma corrida para o precipício regulatório entre estados e municípios. Os critérios comuns desaparecem. É um retrocesso institucional profundo.
Então, ao derrubar grande parte dos vetos ao PL 2159, o Congresso abalou as bases desse Sistema, que já não eram tão firmes?
Sim, porque o licenciamento é o principal instrumento das instituições ambientais. É por meio dele que se avaliam impactos e se autoriza ou não um empreendimento. A coordenação desse instrumento sempre contou com o Conama, o Conselho Nacional do Meio Ambiente, que foi desmantelado no governo Bolsonaro e que agora tenta se recuperar. O Conama sempre teve papel ativo na formulação de regras nacionais. A nova lei, com os vetos derrubados, não fortalece essa coordenação: ela fragmenta. A justificativa de “acabar com o cipoal de regras” não procede, porque as regras centrais eram consolidadas. O que se faz agora é o contrário: enfraquece o sistema, elimina normas gerais, amplia a fragmentação e entrega enorme discricionariedade aos órgãos licenciadores individuais. Em vez de articulação federativa, teremos uma colcha de retalhos.
Que problemas históricos o licenciamento já enfrentava? As mudanças impostas pelo Legislativo resolvem ou agravam esse quadro?
O grande problema sempre foi a capacidade dos órgãos ambientais, como falta de financiamento, equipes pequenas, pouca gestão, baixa transparência, excesso de demandas. São instituições com responsabilidades gigantes e capacidade minúscula. Enquanto isso, as mudanças legislativas não aumentam a capacidade dos órgãos. Elas contornam essa limitação afrouxando regras e reduzindo responsabilidades. Portanto, agravam muito o problema.
Quais são outros exemplos da fragilização do Sisnama?
A Constituição determina a elaboração de um Estudo de Impacto Ambiental e de um Relatório de Impacto Ambiental, o EIA/Rima, sempre que houver degradação significativa. A nova lei diz que não será exigido quando o órgão licenciador considerar que não há impacto significativo. Isso entrega um dispositivo constitucional a uma decisão puramente arbitrária, sem critério geral. Além disso, cada ente da federação poderá definir o que precisa ou não de licenciamento, cada um definirá o potencial poluidor das atividades, atividades de alto impacto poderão ser dispensadas e abre-se margem para corrupção e, no mínimo, para caos regulatório. É uma fragmentação sem precedentes.
Por que o licenciamento é um alvo histórico de setores econômicos?
Porque ele virou praticamente o único instrumento de ação dos órgãos ambientais. Antes havia monitoramento, fiscalização, gestão ambiental mais ampla. Hoje, principalmente nos estados, a maior parte da estrutura está concentrada no licenciamento. Com isso, surgiram duas pressões: de setores que resistem a qualquer regulação; e de setores que sofrem com a lentidão gerada pela baixa capacidade dos órgãos ambientais. Logo, a solução não era mudar a lei, era melhorar gestão, transparência, autonomia, informação, financiamento dessas instituições. Não havia impedimento legal para isso. Também existem diagnósticos robustos sobre os problemas reais do licenciamento, mas nada disso foi considerado pelo Parlamento.
O que esses estudos apontam e quais instituições os construíram?
Muitas limitações do licenciamento ambiental vêm sendo identificadas em esforços, que, de maneira geral, apontam a necessidade de maior transparência, de processos de consulta e participação mais efetivos, qualificação dos estudos e capacitação dos órgãos ambientais. Esses estudos foram elaborados por profissionais da área e por instituições como Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), Abema (Associação Brasileira de Entidades Estaduais de Meio Ambiente), Banco Mundial e CNI (Confederação Nacional da Indústria). Trabalhos qualificados como esses e muitos outros foram apresentados ao longo das audiências públicas, tanto na Câmara como no Senado. Todavia, em suma o Congresso ouviu todo mundo, mas não levou nada em consideração.
As mudanças no licenciamento trarão mais judicialização e insegurança aos empreendedores privados e públicos?
Sem dúvida. Já há organizações preparando ações. Isenções absurdas, autodeclaração em atividades com potencial significativo, conceitos indefinidos – tudo isso será judicializado. Muitos setores econômicos acham que ganharam, mas ainda não perceberam o que foi aprovado. No curto prazo, algumas atividades serão facilitadas, mas no médio e longo prazos, virá uma enxurrada de conflitos.
Quais os efeitos desse novo desmonte para o clima, a biodiversidade e o dia-a-dia dos brasileiros?
Há um grande enfraquecimento da capacidade do Estado de agir. Quando atividades de médio potencial poluidor passam a ser autodeclaratórias, abre-se mão de controle. Isso não vai liberar espaço para que os órgãos ambientais avancem em outras agendas. Pelo contrário, tende a reduzir seu tamanho e sua importância. E sem planejamento – zoneamento, visão de futuro – será reforçado o papel do licenciamento como algo meramente cartorial. Além disso, é preciso reforçar que a sociedade perde duas vezes: com mais risco ambiental e com instituições mais fracas. A falta de articulação federativa é gravíssima.
Há alguma chance de correção desses retrocessos no futuro próximo?
Para aspectos pontuais, talvez. Setores mais modernos perceberão os problemas e pressionarão por mudanças. Mas a fragilidade institucional – a destruição da coordenação federativa – pode demorar muito mais a ser corrigida. Reconstruir o sistema será muito difícil.
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