19 Novembro 2025
Dois dias antes do fim de outubro, o deputado e pastor evangélico, Otoni de Paula (MDB-RJ), leu na tribuna da Câmara dos Deputados, uma nota da Convenção Nacional das Assembleias de Deus, maior denominação protestante do país. O texto defendia a indicação de um “homem de fé” à vaga deixada por Roberto Barroso no Supremo Tribunal Federal (STF). O nome sugerido era Jorge Messias, atual advogado-geral da União, que é evangélico batista, e, para a cúpula da recém-formada bancada cristã, um aliado na defesa dos valores conservadores; entre eles, a proibição do aborto.
A reportagem é de Dyepeson Martins, publicada por Agência Pública, 19-11-2025.
A Agência Pública ouviu membros da bancada cristã, que reúne evangélicos e católicos, sobre uma possível articulação da indicação de Messias ao cargo. Pelo menos cinco integrantes do núcleo central da frente parlamentar evangélica e um da frente parlamentar católica disseram terem conversado com Jorge Messias no último mês pessoalmente ou por telefone. No período, ele teria falado por telefone com senadores e nomes influentes das duas frentes que, juntas, reúnem 394 deputados e 38 senadores.
Messias é o favorito de Lula à Corte. Ele tem 45 anos e é diácono da Igreja Batista de Brasília – um tipo de auxiliar na congregação. A indicação dele é dada como certa pela base política de Lula, mas o anúncio oficial deve ocorrer só após a COP30. Um segundo nome evangélico no STF, que já tem o ministro André Mendonça, é visto como “um aceno de respeito à comunidade evangélica brasileira que tem participado de forma crescente da vida pública, sem abrir mão de seus valores espirituais e éticos”, como indicou a nota da Convenção das Assembleias de Deus lida por Otoni de Paula.
Um parlamentar da cúpula da frente evangélica afirmou à Pública, sob condição de anonimato, que “tinha certeza de que Messias era a favor da vida desde a sua concepção”, e que essa é a leitura também é feita por outros parlamentares cristãos, embora, à frente da AGU, ele tenha apontado como “inconstitucional” a resolução do CFM (Conselho Federal de Medicina) que proibia assistolia fetal – procedimento para interromper a gravidez na realização de aborto legal.
Por que isso importa?
- A indicação do advogado-geral da União, Jorge Messias, ao STF é dada como certa;
- Aliado de Lula, ele é evangélico e visto pela recém-criada bancada cristã como um aliado para avançar pautas antiaborto.
Em 12 de novembro, um dos membros da representação da bancada evangélica conversou com a Pública após a sessão solene em homenagem ao Dia da Família – evento que exaltou o combate à legalização das drogas, à união homoafetiva e à descriminalização do aborto. O deputado afirmou ter ligado para Messias na semana anterior e, nos últimos dois meses, consolidado uma “ótima relação” com o postulante ao cargo de ministro do Supremo. “Tenha plena certeza, sem dúvida alguma”, respondeu o parlamentar ao ser perguntado se Messias se posicionaria em favor da pauta antiaborto.
“Passado esse ciclo lulista, eu acredito que ele terá sim esse comportamento [contra a descriminalização do aborto] porque ele tem formação, ele tem raiz cristã. Se fosse os evangélicos que indicassem, nós teríamos outras opções, mas, como é o Lula, nós preferimos um perfil Jorge Messias a um perfil Flávio Dino”, frisou Eli Borges (PL-TO), pastor da Assembleia de Deus e porta-voz da frente parlamentar evangélica.
Segundo uma senadora evangélica que preferiu não se identificar, numa conversa recente, Messias teria dito que “o Governo Federal precisa se reaproximar da ala evangélica e isso se traduziria no uso prático de termos e formatos de comunicação que alcancem os fiéis”. “Falta isso um pouco no campo da esquerda”, enfatizou a parlamentar.
A congressista é amiga pessoal de Messias e reiterou que, se comparado ao ministro André Mendonça, ambos – “do ponto de vista de costumes, terão as mesmas posições”. Mendonça é pastor presbiteriano, foi advogado-geral da União e ministro da Justiça e Segurança Pública entre 2020 e 2021. Mendonça é considerado a consolidação do nome “terrivelmente evangélico” no STF, prometido por Bolsonaro após iniciar o mandato de presidente da República, em 2019.
Ala conservadora faz pressão por indicação de cristão
A maior parte dos parlamentares da bancada cristã ouvidos pela reportagem preferiu falar sob condição de anonimato em relação ao apoio a Messias. A discrição dos conservadores vai além do contexto de oposição a Lula. Mostrar-se favorável a um nome próximo ao petista poderia representar incoerência de partidos ligados a Bolsonaro, a exemplo do PL, sigla do ex-presidente e opositor ferrenho do atual governo. Por outro lado, há receios de que uma desaprovação pública estremeça a relação entre os Poderes.
Alguns líderes religiosos disseram que tentaram contato com Messias por intermédio de amigos, deputados e senadores. No entanto, reuniões formais estariam sendo negadas. “A regra agora é silêncio” para evitar desgastes com temas mais polêmicos, revelaram fontes da AGU à Pública.
A pressão da ala conservadora pela indicação de um cristão ao Supremo se intensificou depois que o ex-mininstro Roberto Barroso registrou – em último ato antes da aposentadoria – voto favorável à descriminalização do aborto até 12 semanas de gestação. “Questão de saúde pública”, justificou.
O julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 442) foi suspenso em 2023 após um pedido de destaque do ex-ministro. Contudo, antes de se aposentar, Barroso retirou o próprio destaque e solicitou a convocação de sessão virtual extraordinária para apresentar o voto. Caso se estabeleça na Corte, Messias não poderá votar nesse julgamento, mas outros processos em curso abordam o assunto.
Deputados têm “orientação espiritual”
Atores externos e influentes entre parlamentares cristãos, contudo, ainda somam dúvidas sobre Jorge Messias. Um deles, um padre consultado por deputados católicos na votação do projeto que suspendeu os efeitos da resolução que regulamenta o direito de menores ao aborto legal, disse à Pública, em condição de sigilo: “Não confio em nenhum deles [indicados ao Supremo] nesse período de campanha [para ser aprovado na sabatina do Senado]”.
O sacerdote revelou que ele e outros líderes religiosos orientam “espiritualmente” alguns deputados para garantir posicionamentos políticos que “preservem os valores da família”. Várias entidades ajudam na interlocução, a exemplo da Conferência Nacional dos Bispos (CNBB). A influência dos “conselheiros espirituais” vai muito além da pauta “pró-vida”. Eles orientam sobre a criminalização do porte de drogas e questões de segurança pública, por exemplo.
A cara da bancada cristã
A criação da Bancada Cristã é mais uma demonstração de força das alas evangélica e católica, em oposição ao governo federal. A urgência para votação do projeto foi aprovada sob acusações de ataque ao Estado laico. Ainda assim, a decisão foi quase unânime – somente 30 dos 513 deputados votaram contra. Com isso, a proposta não precisa passar por comissões e vai direito à votação em plenário. Com a eventual aprovação do texto, o grupo terá direito a participação, voz e voto nas decisões do Colégio de Líderes da Câmara dos Deputados.
Já há acordo para a composição da bancada pelos próximos dois anos. Em 2026, o líder será um evangélico, Gilberto Nascimento (PSD-SP), e o vice um católico, Luiz Gastão (PSD-CE). No ano seguinte, se reeleitos, os deputados irão alternar os cargos entre si. A coordenação contará também com mais quatro representantes: dois católicos e dois evangélicos.
“Nós entendemos que era melhor cerrarmos fileiras para que pudéssemos juntos ter mais força”, salientou Gilberto Nascimento. “As críticas são naturais de quem prega não só que Estado seja laicista, mas seja um Estado ateu. Eu não concordo! As pessoas não são ateias e não são pessoas que não possam manifestar sua fé”, pontuou Luiz Gastão, classificando o grupo como a “representação da maioria” do Brasil.
O pesquisador Frank Mezzomo estuda a influência entre a religião e a política. Para ele, que é professor da Universidade Estadual do Paraná e líder do Grupo de Pesquisa Cultura e Relações de Poder, o fato de 83,6% dos brasileiros se considerarem cristãos não significa que a nova bancada representa o que pensa essa população.
“Eles dizem ‘somos legítimos porque expressamos uma filiação religiosa de mais de oitenta por cento da população’. Mas esses oitenta por cento não são um bloco monolítico, essa grande maioria não pensa muitas vezes nem mesmo próxima, quando se discute pautas mais polêmicas e sensíveis. (…) Quando se cria uma bancada para isso você está pressionando uma laicidade que – de certa maneira – está correndo risco, porque o lobby se formaliza dentro do próprio poder”, explicou.
Mezzomo reforça que a possível indicação de Jorge Messias tem um “custo político” para o governo, que pretende ampliar a base eleitoral no meio conservador e religioso. “Esse movimento e, sobretudo, o dilema em torno dele e a repercussão que ocupou no Brasil, sinalizam uma estratégia pensando nos arranjos políticos para 2026.”
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