12 Novembro 2025
A realização da cúpula climática em Belém serviu de pretexto para retomar megaprojetos que estavam parados: “Era o momento de puxar o freio de mão e mudar de direção em como se vive na cidade.”
A informação é de Bernardo Gutiérrez, publicada por El Salto, 11-11-2025.
“Ninguém melhor do que nós para falar sobre mudança climática. Deveríamos estar lá na COP30, explicando aos políticos, mas não fomos convidadas, e isso que somos as guardiãs das árvores.” A frase é de Danielle Raiol, presidente da Associação de Mulheres Extrativistas de Combu, moradora da ilha fluvial de Combu, em Belém. Ela fala com frustração: explica como o aumento das temperaturas alterou os ciclos da ilha. “Em 2023, não conseguimos coletar sementes suficientes de andiroba para fazer o óleo (um dos produtos que vendemos), fazia calor demais. A seca complicou tudo”, diz Danielle.
Três décadas de COPs e avanços contra a mudança climática
A poucos metros dali, em um pequeno píer que liga a sede da associação a um igarapé, Junior Boaventura, de 32 anos, confirma o sentimento agridoce que a COP30 deixou na ilha Combu, onde vivem cerca de 1.500 pessoas. Sem negar que o evento trouxe turistas, o influenciador ambiental da ilha reclama da falta de investimento público: “Nem houve investimento nem fomos convidados para a COP30.” Uma bandeira do Sebrae tremula no restaurante de sua família, o Boá da Ilha: “Sebrae pelo turismo.” “Isso não é investimento, só ajudam com consultorias. Além disso, prometeram empréstimos à população local, mas são de 15 mil reais — com isso não se faz nada”, critica.
Em setembro, um megashow da cantora Mariah Carey, organizado pelo Rock in Rio, deu visibilidade global à ilha do Combu. O palco em forma de nenúfar custou 30 milhões de reais. “Para a ilha, deixaram dois milhões — uma miséria. Essa lógica dos megaeventos não nos deixa quase nada e incentiva a especulação imobiliária”, aponta Junior, que frequentemente faz publicidade em seu Instagram. Ele lamenta que a COP30 nem sequer tenha trazido propostas comerciais.
O desencanto dos moradores de Combu reflete as contradições da COP da Amazônia. Apesar do esforço do governo brasileiro em incluir a sociedade civil nos 286 painéis do evento, a maioria das comunidades tradicionais da região metropolitana de Belém não está presente na programação oficial da Zona Azul da ONU. E o investimento público de 7 bilhões de reais (1,14 bilhão de euros) em infraestrutura beneficiou pouco a população mais pobre. Qual será o legado da COP30 para Belém e a Amazônia? As delegações oficiais conseguirão reparar a extrema sensibilidade do clima tropical úmido ao aquecimento global?
O legado carbônico da COP30
O governador do Pará, Helder Barbalho, vangloriou-se recentemente de que 98% das obras prometidas para a COP30 estão concluídas: pontes, avenidas, saneamento em bairros periféricos, reformas de mercados (como o Ver-o-Peso) e portos, como o de Outeiro. Uma mudança radical na imagem da metrópole de 2,5 milhões de habitantes. Na rua, muitos aprovam as obras: “Eram necessárias, vão melhorar a cidade. Belém estava esquecida há anos”, diz Wendel Lima, motorista particular. “As obras deixaram o centro bonito”, acrescenta Aldaid Santos Ataide, morador de Outeiro e segurança na Zona Azul.
Mas há críticas contundentes. A urbanista Raquel Rolnik denunciou, em artigo incisivo, que as obras da COP30 repetem o modelo carbonocêntrico: duplicação de avenidas e viadutos, mais asfalto, foco nos automóveis. “É particularmente contraditório para Belém, uma metrópole fluvial com 42 ilhas e relação histórica com as águas”, escreve. Para ela, Belém deveria ter usado a COP30 para deslocar o debate sobre os modos de produção do planeta do hemisfério norte para a periferia do capitalismo, a partir da Amazônia.
A professora Ana Cláudia Duarte Cardoso, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFPA, denuncia que o megaevento foi pretexto para ressuscitar projetos antigos: “É lamentável como esse processo gentrificador domina o imaginário de muitos técnicos. Era hora de mudar o modo de viver na cidade.” A construção do Parque da Cidade, que abriga as Zonas Azul e Verde, entregou espaço público à iniciativa privada. O parque foi erguido sobre um antigo aeroclube após alteração de lei municipal em 2022, liberando atividades de hotelaria, cultura, lazer e esportes para agentes privados, relata Brenda Taketa em O Joio e o Trigo.
A estrada da discórdia
Ana Cláudia cita a ampliação da Avenida da Liberdade como exemplo de obra oportunista — destaque na imprensa internacional como “a estrada construída sobre floresta protegida para facilitar o tráfego durante a conferência”. O projeto, de 2012, não recebeu verba da COP30, mas o governo tentou associá-lo ao pacote para acelerar sua execução. “Como deu má repercussão, agora negam a relação com a COP”, diz Ana Cláudia. As obras estão paradas. A ampliação da avenida tem irregularidades: deslocamento da comunidade tradicional Nossa Senhora dos Navegantes, invasão da Área de Proteção Ambiental de Belém e construção sobre aquíferos. “O traçado passa sobre dois lagos Bolonha que abastecem boa parte de Belém”, denunciou o ativista Maurício Santos à Agência Pública.
A expansão também afetou o Quilombo Abacatal, onde vivem 121 famílias afrodescendentes. Suas manifestações não foram ouvidas. Vanulza Cardoso, matriarca do quilombo, diz: “Deveriam ter nos consultado. Atropelaram nossos direitos.” A comunidade vive em harmonia com a natureza: “Embora retiremos alimentos, vivemos uma relação de respeito entrelaçado com ela. O capital econômico entende a natureza como capital.”
Racismo ambiental
Em abril, viralizou a imagem de um drone com a faixa “racismo ambiental” sobre uma comunidade de palafitas. Crianças e adolescentes da Vila da Barca protestavam contra o plano do governo de fazer os resíduos da COP30 passarem por ali. O jornalista Guilherme Guerreiro Neto relatou o caso na revista Sumaúma: “Denunciavam racismo ambiental. Sentem isso na pele e no gosto da água.” A poucos quilômetros dali, na Avenida Visconde de Souza Franco (Doca), apartamentos de 600 m² chegam a custar 2,5 milhões de dólares. A Doca foi transformada em um parque — “puro maquiagem para a COP”, escreve Guerreiro. Ali o governo instalou árvores falsas importadas de Cingapura. “Faz sentido importar essa tecnologia para a Amazônia, a região mais biodiversa do planeta?”
A Vila da Barca, sem saneamento básico, está em pé de guerra. Entrou na Justiça, que desacelerou, mas não suspendeu as obras. A luta popularizou o termo “racismo ambiental” — usado na Amazônia para denunciar grandes empreendimentos próximos a comunidades tradicionais, quilombolas, indígenas ou ribeirinhas.
O racismo ambiental, conceito em ascensão, parece ter entrado pela porta dos fundos da COP30, mas sairá pela frente com a Declaração de Belém. Segundo o governo brasileiro, o documento “busca fomentar o diálogo internacional sobre a interseção entre igualdade racial, meio ambiente e clima, reforçando a dimensão dos direitos humanos, particularmente da justiça social, nas políticas internacionais.”
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