A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 31º Domingo do Tempo Comum, ciclo B do Ano Litúrgico, comemoração de Todos os Fiéis Defuntos, que corresponde ao texto bíblico de Lucas 12,35-40.
“Que vossos rins estejam cingidos e as lâmpadas acesas” (Lc 12,35)
A morte é sempre estranha e, com frequência, se revela incômoda. O ser humano pós-moderno não sabe o que fazer com a morte. Às vezes, o único que lhe ocorre é ignorá-la, escondê-la e não falar dela. Busca esquecer o quanto antes esse triste acontecimento, cumprir os trâmites religiosos e civis e retornar ao mesmo ritmo da vida cotidiana.
No entanto, mais cedo ou mais tarde, a morte vai visitando nossos lares e arrancando de nós nossos seres mais queridos. Como reagir diante da morte que nos arrebata para sempre nossos entes queridos, nossos pais, nossos amigos... Que atitude adotar diante de uma pessoa muito próxima e querida que diz seu último adeus? Que fazer diante do vazio que vão deixando em nossa vida tantos amigos e amigas?
Vivemos uma atmosfera cultural que não quer mais saber da morte; ela é escondida. Há uma angústia que, sem trégua, atormenta os vivos diante de sua ameaça escondida nas sombras, sempre presente na doçura da vida e no fervilhar das paixões.
Como se torna complicado falar dela, buscamos suavizá-la utilizando palavras como “falecer”, “deixar este mundo”, “ir-se”, “apagar-se” ..., entre outras muitas. Encarar a morte não é fácil, pois nos assaltam as dúvidas sobre o sentido da vida, o que acontecerá depois, a vida eterna, etc. Como consequência da dificuldade de enfrentar a morte, há pessoas que a ignoram e vivem com a sensação de serem eternas.
Diz a carta aos Hebreus que quem tem medo da morte passa a vida sujeito à escravidão (Heb. 2,15): escravo diante de um “deus amo” com quem é preciso passar a vida negociando a existência, porque esta não é vivida como dom gratuito; e escravo do próprio ego que se inchou até níveis insuportáveis.
Nos Evangelhos, encontramos diversas exortações, parábolas e chamados que só tem um objetivo: manter viva a responsabilidade do seguidor de Jesus. Uma das advertências mais conhecidas é a que encontramos no Evangelho indicado para este “dia de Finados”: “Tende cingido vossos rins e suas lâmpadas acesas”.
As duas imagens são muito expressivas. Indicam a atitude que os empregados devem ter quando, à noite, estão esperando que regresse seu senhor para abrir-lhe a porta da casa quando ele os chamar. Devem estar com a “cintura cingida”, ou seja, com a túnica presa à cintura para poder mover-se e atuar com agilidade; devem estar com as “lâmpadas acesas” para ter a casa iluminada e manter-se despertos.
A vida do seguidor de Jesus é um contínuo estar em alerta, estar sempre despertos, estar sempre em espera, estar sempre dispostos. Ele precisa viver com os olhos abertos às vindas surpreendentes de Deus; precisa estar com os ouvidos atentos para escutar seus passos; precisa viver sempre em prontidão para abrir a porta de seu coração.
As palavras de Jesus não contêm nada de ameaça nem de cobrança; não alimentam um ego fechado nem sustentam nenhuma ideia de mérito. São palavras de sabedoria que convidam, ao contrário, a despertar para a Realidade que somos.
Despertar é uma das palavras básicas de todas as tradições de sabedoria. Todas elas nos alertam que facilmente nos submergimos no sono da ignorância, crendo ser o que não somos e desconectados do que realmente somos; e esta é a fonte de muitos sofrimentos.
A revelação central de Jesus é que “Deus é Vida” e quer que vivamos intensamente, agora e na eternidade. Procedemos da Vida, vivemos na Vida e retornaremos ao seio da Vida. Todos morremos para o interior de Deus. O Sopro de vida que recebemos retorna à Fonte: todos seremos “aspirados” para dentro do Deus da Vida.
A partir desta realidade revelada, o mais adequado para considerar a morte é vê-la como um “despertar”. Assim como ao sair do sonho emerge uma nova identidade, muito diferente do sujeito onírico, ao morrer amanhecemos para a nossa identidade mais profunda, na qual o ego (falso eu) encontra também seu final. Não é que ele morra, mas é porque descobrimos que ele nunca existiu; é uma ilusão alimentada pela nossa mente.
Os místicos sufis nos ensinaram que quando vivemos, estamos adormecidos, e quando morremos, despertamos. A que despertamos? Sem dúvida nenhuma, à Vida, ao que sempre fomos e somos, embora não o tivéssemos visto antes. Precisamente por isso não precisamos “alcançar” nada que não tivéssemos, senão cair na conta (despertar) daquilo que sempre somos: envolvidos pela Vida, sustentados e protegidos pela Vida, iluminados pela Vida...
Assim, morrer é o processo pelo qual nos “re-integramos” na Vida que sempre fomos. Com o termo “Vida” aludimos à mesma Realidade que as religiões nomeiam como “Deus”.
Ao despertarmos, descobriremos o que sempre tínhamos sido e que tínhamos esquecido, ou seja, vivíamos a unidade com o Todo e com todos
A melhor metáfora para falar do silêncio que a morte impõe é a do rio que desemboca no mar. O rio perde seu nome e sua forma, treme de medo diante da imensidão do mar que se abre diante dele; mas é justamente, ao entregar-se, quando o rio se descobre como água. Torna-se oceano; morreu a “forma” de rio, permanece a água. E é nessa mesma “Água” onde todos nos encontramos, porque constitui nossa identidade mais profunda. Para além do “rio” único de cada um – de nossa personalidade -, nos reconhecemos “uno” na “Água” – nossa identidade comum e compartilhada, que transcende todas as formas.
Com a morte começa a vida para sempre, na presença do Deus Amor. E, por isso, se a morte é capaz de privar-nos do dom da vida, o Amor tem poder de nos devolvê-lo. Aqueles que em sua vida aprofundam e vivem o sentido do amor de Deus, começam a experimentar a eternidade e as bem-aventuranças que esse amor confere à vida. Na morte, seremos abraçados plenamente por esse Amor. É caminhar ao encontro da Fonte para beber da vida eterna; é entrar em um alegre amanhecer. Podemos afirmar, e com razão, que a “morte é um amanhecer” (Elisabeth Kubler-Ross). Morrer então, é viver mais e melhor (cf. L. Boff)
Os sábios veem a morte como parte da vida; dão-se conta que a vida é mortal, que somos, por essência, seres mortais. Vamos morrendo devagar, lentamente, a prestações, desde o primeiro momento até acabar de morrer. Segundo José Marti “morrer é fechar os olhos para ver melhor”.
Quando queremos nos concentrar e ir fundo no pensamento, fechamos naturalmente os olhos. Ao morrer, fechamos os olhos para ver melhor o coração do universo, para ver os espaços infinitos do mundo e os segredos mais escondidos da vida.
Pensadores mais antigos nos lembram da interdependência entre vida e morte.
Eles nos ensinaram que aprender a viver bem é aprender a morrer bem, e que, reciprocamente, aprender a morrer bem é aprender a viver bem. Quanto mais mal vivida é a vida, maior é a angústia da morte; quanto mais se fracassa em viver plenamente, mais se teme a morte.
Diz o refrão que “a morte, menos temida, dá mais vida”. Ao desvelar a precariedade de nossa existência, a morte nos faz reingressar na vida de uma maneira mais rica e apaixonada; ela aumenta a consciência de que esta vida, nossa única vida, deve ser vivida intensa e plenamente. Ao compreendermos, de verdade, nossa condição humana – nossa finitude, nossa fragilidade, nosso breve período de tempo -, não só passamos a saborear a preciosidade de cada momento e o simples prazer de existir, como também intensificamos nossa compaixão por nós mesmos e por todos os outros seres humanos.
Encarar a morte, com serenidade, não só nos pacifica como também torna a existência mais leve, mais preciosa, mais vital. Situar-nos serenamente no horizonte da morte ajuda a dar conteúdo à nossa própria vida.
Finados de silêncio: cala a palavra, mas fala o coração; cala a palavra mas o coração sente a voz daqueles(as) que já estão no silêncio do coração de Deus. É o silêncio do coração que espera o momento, que escuta o mistério por dentro; é o silêncio do coração que medita e guarda dentro o mistério, que espera a nova palavra pascal. É o sábado das esperanças que começam a verdejar.
- No silêncio, faça memória e entre em comunhão com aquelas pessoas que foram presenças inspiradoras em sua vida e que deixaram “marcas” saudosas.
Vale a pena fazer no dia de hoje uma “memória agradecida”.