"A lógica aplicada a Gaza – destruir e depois reconstruir para fins de lucro – corre o risco de se tornar um modelo global", alerta o urbanista italiano
O plano de recontrução de Gaza, articulado por Donald Trump e que conta com o apoio do seu genro, Jared Kushner, e de Tony Blair, ex-primeiro ministro britânico, é uma iniciativa que transcende a dimensão técnica e se configura como uma operação política e econômica. A proposta, que visa transformar a Faixa de Gaza em uma espécie de "Riviera" ao estilo Dubai, é delineada por consultores anônimos e prioriza a viabilidade econômica e os interesses de investidores em detrimento das vidas humanas e da história do território.
O projeto colonial, que recebeu o nome de "Riviera do Oriente Médio" ou GREAT (Gaza Reconstruction and Economic Advancement Trust), ignora sumariamente o direito internacional e os direitos da população local. O documento prevê o deslocamento da população palestina para outro país ou para áreas restritas [campos de concentração], tratando os habitantes de Gaza como "um problema a ser gerenciado, não como pessoas", avalia o professor de urbanismo na Sciences Po, em Paris, Marco Cremaschi.
Conforme explica o urbanista, o plano visa transformar a Faixa em um polo logístico e de extração, uma "cidade dividida em zonas funcionais, cercada e vigiada", com infraestruturas voltadas para o capital e os fluxos comerciais. Em essência, o território seria transformado em uma "loteria imobiliária baseada em blockchain", adverte o pesquisador, onde a reconstrução está condicionada à lucratividade, e não aos direitos.
Os problemas do projeto são evidentes e graves: trata-se de uma forma de "ocupação permanente" sob tutela dos EUA, sem soberania palestina e sem garantias para o autogoverno nas fases iniciais. O projeto culmina em um cenário que o professor Marco Cremaschi denomina de "necrocidade", onde a cidade "ressurge como plataforma econômica sem cidadãos, laboratório de um urbanismo administrado pelo capital". Com isso, a memória e a história do povo palestino são apagadas e o território é "zerado" e redesenhado "como uma vitrine econômica", demonstrando uma lógica que transforma a guerra em investimento e as cidades em "campos de testes do poder", esclarece.
A violência do "urbicídio" (destruição deliberada da cidade como lugar de convivência e memória) de como premissa para a especulação, onde o novo modelo urbano é "o protótipo de uma cidade construída para o capital: isolada, cercada, privatizada, onde tudo é mercadoria e a vida coletiva é reduzida ao mínimo", complementa.
O que se desenha para o futuro de Gaza é uma cidade controlada e mercantilizada. “Gaza não é mais pensada como uma comunidade, mas como um corredor logístico entre Israel, Arábia Saudita e o Mediterrâneo, funcional aos fluxos de petróleo e matérias-primas”, pontua Cremaschi na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. O perigo, observa o professor, não se restringe à Faixa. “A lógica aplicada a Gaza – destruir e depois reconstruir para fins de lucro – corre o risco de se tornar um modelo global”. Hoje, conclui, “poderíamos dizer: fazem uma ruína e a chamam de desenvolvimento”.
Marco Cremaschi (Foto: Alexis Lecomte | Sciences Po)
Marco Cremaschi é especialista em desenvolvimento urbano, professor de Universidade de Sciences Po desde 2015, onde dirige o Centro de Urbanismo e é professor na École Urbaine, depois de ter atuado como diretor do Mestrado em Projeto Urbano em Roma Tre. Atuou como professor nas Universidades de Pittsburgh (2003), Marie Curie Fellow na University College London (1996) e boursier CNRS no Instituto Francês de Urbanismo da Universidade Paris 8 (1992). Foi pesquisador visitante na Politécnica de Milão (2008), Bauhaus-Weimar (2009-2010), Cornell (2010), IDS Calcutá (2011) e UNSAM Buenos Aires (2012-2013).
IHU – A cidade de Gaza foi varrida do mapa. Segundo a ONU, são mais de 67 mil mortos e 170 mil feridos. Sobrou o território como ferida aberta. Até que ponto a destruição urbana e a dizimação humana apagam a história e a geografia do território?
Marco Cremaschi – O conflito entre Israel e a população palestina já dura mais de um século e, desde o início, configurou-se como uma luta mútua pela expulsão do outro. É uma questão entrelaçada com a história do século XX: o Holocausto, a Guerra Fria, a Nakba palestina e as dificuldades do mundo árabe-muçulmano em construir caminhos estáveis de desenvolvimento político e econômico.
Não podemos esquecer a incapacidade histórica de grande parte do mundo árabe-muçulmano de trilhar caminhos frutuosos de desenvolvimento político e econômico, que ao longo do tempo conduziu repetidamente a becos sem saída: exemplos disso incluem o fim inglório do nacionalismo árabe, as armadilhas no jogo de alianças entre Estados Unidos e União Soviética durante a Guerra Fria, a afirmação do fundamentalismo religioso, por vezes sectário, e, mais recentemente, o expansionismo iraniano.
A questão palestina tem sido, desde o início, uma luta por espaço: dois povos que aspiram ambos a uma comunidade política "entre o mar e o rio", o Mediterrâneo e o Jordão. Até que a presença e a legitimidade do outro sejam aceitas, não pode haver solução.
Hoje, Gaza é o ápice dessa história. Após dois anos de bombardeios, sua materialidade — história, topografia, registro de terras — foi praticamente apagada. A ONU estima que 78% dos edifícios estejam destruídos ou severamente danificados e que os escombros superem 60 milhões de toneladas. Espalhados por toda a Faixa, elevariam seu nível em 30 centímetros. Removê-los exigiria bilhões de dólares, milhares de máquinas e anos de trabalho. Enquanto isso, alguns já propõem despejá-los no mar, transformando a catástrofe em um negócio, evocando até portos e ilhas artificiais "no estilo Dubai".
IHU – Com o acordo de paz, vamos a um segundo momento desse conflito: a reconstrução de Gaza. Do que se trata o projeto de "redesenho urbano" para a região elaborado por consultores estadunidenses?
Marco Cremaschi – A chamada reconstrução de Gaza é, na realidade, uma operação política disfarçada de plano técnico. Um documento de consultores anônimos avalia apenas a viabilidade econômica, ignorando as dimensões humana e política. O plano propõe realocar a população para construir uma "Riviera" inspirada em Dubai, criar um Fundo para governar a Faixa até a "reforma" da comunidade palestina e atrair investidores com monopólios de infraestruturas.
Do ponto de vista urbano, Gaza se tornaria um polo logístico e de extração: uma cidade dividida em zonas funcionais, cercada e vigiada, com infraestruturas projetadas para os capitais e os fluxos comerciais, mais que para os residentes. É uma modelo de cidade para investidores, não para cidadãos.
IHU – A propósito, quem são esses consultores?
Marco Cremaschi – Trata-se de uma rede de consultores, empresários e políticos. Jared Kushner, genro de Donald Trump, já havia argumentado que a costa de Gaza tinha um grande potencial imobiliário e que os habitantes poderiam ser realocados no Deserto do Negev.
Em agosto, Trump convocou à Casa Branca Kushner, o empresário Steve Witkoff e o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair para discutir o futuro de Gaza. Segundo vários analistas, o plano teria sido encomendado pela Fundação Humanitária de Gaza, próxima aos ambientes evangélicos da Casa Branca. A fundação se transformaria em um Fundo com plenos poderes sobre o território, que seria proprietário de parte das terras e confinaria a população em moradias temporárias.
IHU – Como deveria ser a "nova Gaza", de acordo com esse projeto?
Marco Cremaschi – Sete ou oito cidades com 200 mil habitantes, cada uma dedicada a uma função econômica ou a um grupo industrial: logística, dados, turismo. Tudo monitorado, conectado por corredores e infraestruturas.
As propriedades seriam "tokenizadas", ou seja, transformadas em cotas digitais negociáveis nos mercados especulativos. Essencialmente, Gaza se tornaria uma loteria imobiliária baseada em blockchain, onde a reconstrução depende da lucratividade, não dos direitos.
IHU – Qual a importância de fazer memória à tragédia e ao sofrimento do povo palestino na reconstrução de uma nova Gaza? Que espaço tem a memória do povo palestino nesse projeto?
Marco Cremaschi – Praticamente nenhum. O modelo de reconstrução que deveria emergir de uma tragédia tão grande prevê o oposto: reutilizar materiais no local, envolver a população local, reconstruir os lugares de memória e manter os traçados originais. Aqui, em vez disso, tudo é zerado: um território sem história, pronto para ser redesenhado como uma vitrine econômica.
IHU – Levando em conta o documento apresentado, como ele ilustra a captura dos nossos modos de vida pelo capital financeiro?
Marco Cremaschi – O projeto utiliza instrumentos financeiros e tecnológicos – trust, tokens, blockchain, inteligência artificial – para transformar a cidade em um produto de investimento. Gaza não é mais pensada como uma comunidade, mas como um corredor logístico entre Israel, Arábia Saudita e o Mediterrâneo, funcional aos fluxos de petróleo e matérias-primas. É a projeção urbanística da reaproximação entre Riad e Tel Aviv, vista por Washington como um novo equilíbrio estratégico.
IHU – Em seus textos, o senhor fala de "urbicídio" e "necrocidade". Pode explicar o que significam esses conceitos?
Marco Cremaschi – "Urbicídio" significa destruir deliberadamente a cidade como lugar de convivência e diversidade. Não se trata apenas de demolir prédios, mas de aniquilar a memória e a vida urbana. O termo se afirma com Sarajevo e Mostar na década de 1990, mas hoje Gaza representa sua versão nova e inquietante.
"Necrocidade" é a fase seguinte: a cidade ressurge como plataforma econômica sem cidadãos, laboratório de um urbanismo administrado pelo capital. Gaza é ambos: o urbicídio como premissa para a especulação.
IHU – A população de Gaza não é citada nenhuma vez ao longo do documento, no entanto menciona os “stakeholders”. Que cidade pode emergir de um plano que ignora a presença humana multimilenar na região?
Marco Cremaschi – Os habitantes de Gaza são tratados como um problema a ser gerenciado, não como pessoas. O documento prevê que uma parcela significativa emigre, e cada partida é avaliada economicamente. As compensações pelos imóveis destruídos são calculadas com base em valores mínimos, enquanto as novas habitações teriam preços semelhantes aos de Tel Aviv. Nas imagens geradas por IA, os moradores de Gaza desaparecem completamente, substituídos por investidores em roupas brancas.
IHU – Uma das principais empresas a serem beneficiadas no projeto de Trump é a construtora, mas não somente, da família Bin Laden. Como compreender essas intrincadas relações de poder entre EUA e os Bin Laden?
Marco Cremaschi – Durante a presidência de Trump, Jared Kushner estabeleceu relações econômicas com grupos sauditas e catarianos, que, segundo diversas fontes, apoiaram seus empreendimentos imobiliários. Hoje, Kushner não ocupa cargos oficiais, mas continua a atuar como intermediário entre política e finanças, em uma zona cinzenta onde os interesses pessoais e estratégicos se confundem. É a imagem de uma diplomacia transformada em negócios.
IHU – Quais as características que marcam o novo projeto para Gaza como uma “cidade perversa”?
Marco Cremaschi – Pedi aos meus alunos da Sciences Po que imaginassem a cidade mais "maligna" possível: bairros fechados, espaços públicos artificiais, vigilância total. O oposto do bom urbanismo não é o caos, mas o controle. Gaza, nessa perspectiva, torna-se o protótipo de uma cidade construída para o capital: isolada, cercada, privatizada, onde tudo é mercadoria e a vida coletiva é reduzida ao mínimo.
IHU – Esses modelos dizem respeito apenas a Gaza?
Marco Cremaschi – Não. Os mesmos princípios já são visíveis nas novas cidades do Golfo e em muitas metrópoles asiáticas: espaços privatizados, enclaves residenciais, natureza artificial, vigilância generalizada. Isso sinaliza o desaparecimento da cidade como espaço livre e indisciplinado, substituído por um ambiente controlado, curvado à lógica da valorização financeira.
IHU – Gostaria de acrescentar algo?
Marco Cremaschi – Talvez apenas um aviso. A lógica aplicada a Gaza – destruir e depois reconstruir para fins de lucro – corre o risco de se tornar um modelo global. Tácito escrevia: "Fazem um deserto e o chamam de paz". Hoje poderíamos dizer: fazem uma ruína e a chamam de desenvolvimento. A violência serve para criar as condições para o negócio da reconstrução. É uma espiral que transforma a guerra em investimento e as cidades em campos de testes do poder.