17 Outubro 2025
"As feridas também aparecem no outro lado da Faixa", escreve Edelberto Behs, jornalista.
Eis o artigo.
Os grandes se acertaram. Pelo menos nesta primeira fase do Acordo de Paz entre o Hamas e o Estado de Israel, dando uma trégua às mortes e destruição na Faixa de Gaza, alimentando a esperança de palestinos e o sonho de “voltar para casa”. Mas há analistas mais céticos, que preferem falar num cessar-fogo e não num acordo de paz. Apenas a primeira etapa do acordo está em andamento. A segunda etapa define pontos mais espinhosos, como a desmilitarização de Gaza, a governança de uma “força internacional de estabilização”, a retirada da Força de Defesa de Israel para uma “linha amarela”, uma fronteira dentro de Gaza onde os militares ainda controlam metade da Faixa, até o recuo para uma “linha vermelha”.
Há quem lembre outros planos de paz do passado, que redundaram em fracasso. Reportam os Acordos de Camp David, assinados em 1978 pelo presidente egípcio Anwar Sadat e o primeiro-ministro israelense Menachem Begin; a fase subsequente dos Acordos de Camp David, que previa o autogoverno palestino e acabar com as colônias israelenses na Cisjordânia. Depois vieram os Acordos de Oslo, em 1993, e Oslo II, de 1995, com a retirada dos militares israelenses da Cisjordânia ocupada. A saída dos militares israelenses nunca aconteceu. Então, cerca de 250 mil colonos judeus viviam na Cisjordânia; hoje, esse dado sobe para 700 mil!
Ao estilo Trump, o Acordo de Paz não estipula prazos, condições, responsabilidades e sequer faz referência à Cisjordânia ocupada. Trump, que persegue um Nobel da Paz, posou de herói ao discursar no Kneset, o Parlamento israelense, após a libertação dos reféns, em cumprimento ao Acordo. O governo dos Estados Unidos, já sob Biden, mas também na administração Trump, despejou em Israel 22 bilhões de dólares em ajuda militar desde 7 de outubro de 2023, dia do ataque do Hamas. O próprio presidente lembrou, em seu discurso, que forneceram armas e que os israelenses “têm sido muito bons em usar”. O guerreiro agora é pacificador!
Se os grandes se acertaram, como ficam os pequenos? Como o pequeno comerciante, o farmacêutico, o verdureiro, o dentista, o médico, que perderam tudo, inclusive casa e seu comércio e ofício, vão reiniciar nas condições em que se encontram? Serão indenizados? Quem paga essa conta de destruição de escolas e hospitais na Faixa de Gaza? Em dois anos, a guerra produziu 60 milhões de toneladas de entulho. Para onde vai esse volume de descarte? “Sentimo-nos como se tivesse acabado de passar um tsunami”, respondeu o padre Gabriel Romanelli, da Paróquia Sagrada Família de Gaza, à repórter Francesca Caferri, do jornal La Republica.
Por onde começar? O padre quer ver logo as escolas funcionando, para que as crianças não percam mais aulas. As famílias que voltaram a Gaza começam a cavar com pás e picaretas os escombros em busca de seus entes queridos que estão desaparecidos. Segundo estimativas da agência de Defesa Civil de Gaza, cerca de 10 mil pessoas, cadáveres, estão sob os entulhos. Yahya al-Mugra, de Jabalia, acredita que seu irmão, Sharif, esteja morto entre os escombros. “Encontrar um único osso, nos permitiria dar-lhe descanso e sentir algum alívio”, disse à reportagem do The Guardian. O diretor de ajuda humanitária da Defesa Civil de Gaza, Mohammed al-Mugheer, acredita que será possível desenterrar os soterrados num prazo de seis a doze meses, se Israel permitir a entrada de maquinaria pesada nos próximos dias. Mais uma vez “se Israel deixar”.
A dor e a desolação não estão na conta do Acordo de “Paz”. Os traumas da guerra, dos ataques aéreos, dos drones, das balas de canhão, do retumbar das metralhadoras, também ficaram de fora dos 20 pontos de Trump. São traumas para a vida toda. “A partir de amanhã (o primeiro dia pós cessar-fogo) teremos que refletir, superar a vergonha, não podemos mais contornar as 20 mil crianças que morreram em Gaza. Os responsáveis pela situação a que chegamos terão que assumir a responsabilidade. Não será um processo rápido. A sociedade está doente, um em cada três israelenses sofre de transtorno de estresse pós-traumático e ninguém sabe quanto tempo durará”, declarou o escritor israelense Etgar Keret ao La Stampa.
As feridas também aparecem no outro lado da Faixa.
Leia mais
- "A paz está em risco se os interesses pessoais prevalecerem". Entrevista com Majed Al-Ansari (Catar)
- Gaza começa a procurar seus mortos entre os escombros após o cessar-fogo: “Encontrar um único osso nos traria alívio”
- "Espancados, enjaulados e sem informação nenhuma": as histórias de dois anos de terror para os reféns
- Romanelli, após o cessar-fogo: "Gaza está devastada"
- Os moradores de Gaza olham para o futuro e para o plano de Trump com pessimismo: "As coisas voltarão a ser como eram ou até piores"
- "Se Trump se distrair, a trégua em Gaza não será mantida". Entrevista com Nasser al-Qudwa
- Israel e Hamas concluem a primeira fase do acordo de Gaza sem saber quais serão os próximos passos
- Israel e Hamas chegam a acordo sobre a primeira fase do plano de paz de Trump para Gaza
- Acordo sobre sequestros, detentos e retirada das IDF, mas o plano está em risco por causa da Palestina
- Todos os pontos-chave do plano de Trump. E o que ele pode fazer com o sonho de um Estado palestino