27 Setembro 2025
"A história se faz presente e, justamente nesse ato de se fazer presente, ela nos dá um senso de sacralidade que nenhuma fronteira ideológica pode minimizar: se o sangue é sagrado, cada gota inocente é um sacramento invertido e toda a terra é um único altar".
O artigo é de Anita Prati, professora de Letras no Instituto Estatal de Educação Superior Francesco Gonzaga, em Castiglione delle Stiviere, na Itália, publicado por Settimana News, 24-09-2025.
Eis o artigo.
Nunca é fácil falar sobre sangue, especialmente de um púlpito, nos corredores de uma igreja. O terreno é escorregadio, exposto aos caprichos da hagiografia e dos respingos, e simplificações retóricas brandindo a bandeira do heroísmo exemplar estão sempre à espreita, carregadas de banalidades estereotipadas.
Falar de sangue sem trilhar o caminho da sublimação espiritualizante, sem cair na desumanização obscena — eis o milagre realizado pelo Cardeal Mimmo Battaglia em 19 de setembro, festa de São Januário. Do púlpito da Catedral de Nápoles, na cidade onde o sangue na taça representa uma devoção que permeia tudo, suas raízes, sua identidade, o cardeal, com lúcida resolução, percorreu o caminho que nos permite falar de sangue sem desviar o olhar de sua humanidade vertiginosa e profunda.
Hoje, a palavra sangue arde dentro de nós: todos compreendemos o seu significado, sentimos a sua responsabilidade; todos somos chamados a prestar contas. O sangue de Januário não pertence a um passado distante, mas está idealmente misturado ao sangue derramado na Palestina, como na Ucrânia, e em todas as terras feridas onde a violência se julga onipotente, mas, na verdade, é apenas ruído.
A história se faz presente e, justamente nesse ato de se fazer presente, ela nos dá um senso de sacralidade que nenhuma fronteira ideológica pode minimizar: se o sangue é sagrado, cada gota inocente é um sacramento invertido e toda a terra é um único altar.
O frasco do sangue milagroso de Januário se torna um frasco para armazenar e exibir o sangue de cada vítima — crianças, mulheres, homens de todos os povos — para que nenhum rito nos absolva da responsabilidade e a oração sinta o peso de cada ferida e não se perca.
Apoiada num silêncio vibrante de participação, a voz grave do cardeal avança, pronunciando palavras corajosas, as palavras de que precisávamos:
Hoje, com modéstia e com fogo, digo: é o sangue de cada criança de Gaza que eu colocaria em exposição nesta catedral, ao lado do frasco do santo.
Mas onde há uma vítima que sofre e morre, há uma mão que usa a violência, que golpeia e comete o mal. E Dom Mimmo tem palavras claras e diretas, sem graça diplomática, mesmo para Israel:
Escute, Israel: falo a você não como um adversário, mas como um irmão em humanidade. Eu o chamo pelo nome com o qual a Escritura convoca o coração ao essencial: Escute. Pare de derramar sangue palestino.
Que cessem os cercos que nos roubam pão e água; que cessem os ataques que destroem lares e infâncias; que cessem as represálias que confundem segurança com opressão; que cessem a invasão que sufoca toda esperança de paz. A segurança que espezinha um povo não é segurança de forma alguma: é um fogo que, mais cedo ou mais tarde, queima a mão que pensou poder domá-lo.
Eu sei o peso da sua dor, as feridas que você carrega na carne e na consciência.
Mas hoje — diante do sangue do mártir — eu te chamo pelo nome: tu, Israel, fica quieto. Abre as portas, deixa passar a cura e o pão, suspende o fogo que não distingue e multiplica os órfãos. Não te peço fraqueza: peço-te grandeza. A grandeza daqueles que restringem a própria força quando a força profana a justiça; daqueles que reconhecem que a única vitória que salva é aquela sobre a vingança.
O sangue de Januário, que contém em si o sangue de todas as vítimas e de todos os mártires que o Amor não deixou sozinhos, não pode, não deve deixar-nos indiferentes, porque, como o sangue clamado dos escombros, é uma anáfora de Deus que repete: O que fizeste ao teu irmão?
O que você fez com seu irmão? Deste chamado divino surge o apelo à consciência dos indivíduos e da cidade, pois, como disse La Pira, devemos começar pelas cidades para unir as nações. É um chamado à esperança fundada em práticas de paz que, antes de tudo, limpam a linguagem da escória da comunicação equívoca e violenta, porque a mentira começa com as palavras, especialmente as ambíguas e anestesiadas: drones são disparos controlados remotamente; "danos colaterais" são crianças sem rosto.
É um apelo à única geopolítica evangélica digna do Nome que invocamos, a geopolítica que sabe que gastos militares que excedem educação e saúde não são segurança, mas suicídio coletivo.
É um chamado à franqueza dos santos, à santa indignação nascida da consciência de que o mal não é uma ideia, é uma cadeia de suprimentos completa com escritórios, contadores, bônus, planos industriais, a parresia que se recusa a se acomodar na covardia do silêncio indiferente, mas levanta sua voz com indignação para denunciar a barbárie da guerra:
A guerra não "irrompe": ela é produzida, financiada e recompensada. Todo orçamento militar que incha como uma vela é um vento ruim contra a carne dos pobres. Toda "expansão dos gastos com defesa" que excede educação e saúde não nos torna seguros: nos torna mais isolados e mais pobres.
Somente esse estado de espírito pode nos permitir voltar a olhar para o sangue de Januário não como uma curiosidade, mas como um espelho, dando ouvidos às palavras que nos chegam desse mesmo sangue:
Cada gota diz: não traia. Não traia o Evangelho com uma devoção sem conversão. Não traia os pobres com esmolas sem escolha. Não traia a paz com palavras sem propósito. Não traia as crianças com escolas sem professores e cidades sem pátios.
Só então o sangue liquefeito do mártir pode se tornar a imagem de corações derretidos e a promessa do único milagre que podemos esperar: o de corações que, libertos de medos disfarçados de prudência e da pátina de cinismo que se apega à fé, trilhando os caminhos da coragem sem drama, fazem escolhas que não viram notícia, mas mudam vidas.
Notas
O texto completo da homilia pode ser lido aqui e ouvido aqui.
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