24 Setembro 2025
Conteúdo religioso com tecnologia de IA está tomando conta da internet, com vídeos postados no YouTube e no TikTok ultrapassando milhões de visualizações em apenas algumas semanas.
A reportagem é de Selva Vargas Reátegui, publicada por El País, 23-09-2025.
No YouTube e no TikTok, o bizarro se infiltra nos vídeos. Com a ajuda da inteligência artificial, criadores transformam histórias bíblicas em conteúdo audiovisual com uma estética infantil. As passagens se desenrolam por meio de vozes robóticas, que vêm de um lugar distorcido e alternam entre as de um homem e uma mulher, sem necessariamente se adequar aos personagens e períodos de tempo. A lógica se dissolve em um universo estranho, infantil e falso, que a inteligência artificial cria em segundos.
Outros canais estão optando por cenas mais inusitadas: Jesus, com seus bíceps definidos, comendo frango frito de uma rede global que promete felicidade em baldes; ou Maria transmitindo o nascimento de seu filho, como uma influenciadora: "Aqui estou, pronta para dar à luz". Em alguns casos, eles até recorrem a personalidades contemporâneas que aparecem nas primeiras páginas dos jornais devido às suas mortes (como o líder jovem trumpista Charlie Kirk). O fenômeno não é pequeno. Algumas delas, publicadas há apenas algumas semanas, alcançaram milhões de visualizações.
Nir Eisikovits, professor de filosofia na Universidade de Massachusetts (UMass), encara esse conteúdo com distanciamento crítico. Ele afirma que os valores de produção são altos, mas a estética é "quase ridícula". "É como se Hollywood encontrasse videogames", afirma. De acordo com o diretor fundador do Centro de Ética Aplicada da UMass, um instituto que estuda a ética e a política da inteligência artificial, esses vídeos são "um mal-entendido sobre como a religião funciona".
O fenômeno se enquadra no que é conhecido como AI slop, um tipo de conteúdo digital gerado automaticamente, caracterizado por sua baixa relevância ou por ser ridículo e falso. "As empresas não acreditam, mas é exatamente isso que elas são. São ainda piores que o AI slop, porque são prejudiciais", diz Eisikovits.
Pelo contrário, alguns especialistas veem uma oportunidade nessa tendência. Juan Antonio Estrada, teólogo e professor emérito da Universidade de Granada, acredita que os vídeos podem aproximar a Bíblia das pessoas e podem até ser incorporados às salas de aula como ferramentas de ensino, pois, segundo Estrada, a Bíblia é um livro fundamental para a compreensão da cultura e da história da Europa e do Ocidente. Mas ele alerta que transformá-la em animação instantânea traz riscos. "Você pode transmitir meias verdades", diz ele, "selecionando o que é apropriado e silenciando o resto. Isso, na religião, é perigoso".
Opinião semelhante é compartilhada pela socióloga Tatiana Íñiguez. Para ela, esse fenômeno consumista traz riscos: "Há uma clara descontextualização das mensagens. Com essa simplificação e até idealização da mensagem religiosa, o que se faz é ignorar toda a complexidade, todas as nuances históricas e culturais que a religião contém".
Segundo o especialista, a adaptação digital de conteúdos bíblicos tem um duplo componente: de um lado, a oferta de conteúdo gerado automaticamente; de outro, a demanda dos usuários, que buscam significado espiritual em espaços digitais diante da perda de referências tradicionais na sociedade.
Nas postagens, os comentários se acumulam como uma avalanche de respostas repletas de fervor religioso. "Amém" e "Glória a Deus" se repetem como ecos de uma fé compartilhada. Maoli Lasso, usuária venezuelana do TikTok, reflete sobre o poder que esses vídeos têm em sua vida. Segundo ela, são uma forma de encontrar conforto, principalmente em momentos de vulnerabilidade pessoal. "Gosto deles porque deixam mensagens lindas e, às vezes, me identifico com eles por causa de alguma situação que estou passando na minha vida", explica Lasso.
Historicamente, o cristianismo tem usado a tecnologia disponível para disseminar sua mensagem, desde esculturas e pinturas até a imprensa e a televisão, com pregadores. "Agora, a maneira mais fácil de alcançar a população é por meio das mídias sociais", diz Íñiguez.
Somando-se a essa discussão está a visão dos próprios criadores. Para o youtuber Abraham Aragón, o surgimento da inteligência artificial apenas ampliou um desejo já existente. "Acho que as pessoas costumavam querer criar conteúdo religioso porque é algo de que gostam e sempre gostaram. Mas agora, com a IA, elas têm os meios para isso", afirma. "Sei que, por um lado, o YouTube está se enchendo de lixo, com vídeos 100% automatizados, e se você está assistindo, é porque chegou lá por engano."
Negócios ou revelação?
A criação de conteúdo religioso gerado por IA vai além da fé. Na Espanha e na América Latina, dezenas de youtubers ensinam como criar histórias bíblicas em série como forma de obter lucros rápidos. Canais como o Bible In a Nutshell, um dos mais vistos e referência para criadores de conteúdo, geram cerca de seis mil euros por mês. De acordo com Aragón, criador de tutoriais para a criação de negócios usando IA, o Bible In a Nutshell está ganhando essa quantia exclusivamente com anúncios no YouTube.
Este criador de conteúdo espanhol explica que vídeos longos geram mais receita do que os Shorts do YouTube. E ainda mais quando são em inglês. "Isso ocorre porque a grande maioria dos falantes de espanhol não tem o mesmo padrão de vida dos falantes de inglês, que tendem a ser mais ricos", explica. "Empresas que anunciam em vídeos voltados para esse público pagam mais."
Segundo Eisikovits, incluir a religião no universo dos criadores de conteúdo tem consequências claras: permite ampla popularidade e custos mais baixos, mas também sacrifica a complexidade e a profundidade dos textos religiosos. Para o professor de filosofia, transformar a religião em um produto no estilo Spotify (assinaturas, playlists personalizadas e conteúdo descartável) pode atrair mais pessoas, mas o que elas consomem deixa de ser religioso no sentido mais profundo: é reduzido a entretenimento, o que distorce seu valor.
A exposição a conteúdo fragmentado misturado a entretenimento trivial cria um efeito de "esmagamento" na mensagem, afirma Eisikovits. O especialista argumenta que a experiência de assistir a combinações inacreditáveis de personagens bíblicos e desenhos animados cria um impacto visual marcante, porém insignificante, priorizando a atenção imediata em detrimento de uma compreensão mais profunda.
Segundo Estrada, esse é um risco inerente à era da pós-verdade, em que a informação pode ser constantemente manipulada para fins econômicos. "É essencial que existam canais e instituições que priorizem a pedagogia e a fidelidade cultural em detrimento do mero lucro", explica o teólogo.
Ética em jogo
Sem uma estrutura ética para tecnologias emergentes, alertam especialistas, o conteúdo gerado por IA pode distorcer a cultura e propagar interpretações tendenciosas como se fossem legítimas. "Como esse conteúdo afeta nossa capacidade de acessar informações verdadeiras ? Quais de nossas capacidades ele fortalece e quais enfraquece? Isso é uma boa ideia? Se alguém acredita que instituições religiosas contribuem para nossas vidas, deveria se preocupar com essa tecnologia", enfatiza Eisikovits.
Sem regulamentação, enfatizam, ficamos com a superfície do consumo digital rápido, colorido e efêmero. Para Estrada, não há dúvida: "Quando falta ética, podemos nos ver diante de todo tipo de desastre".
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