10 Setembro 2025
"Não brandia armas, mas palavras que abalavam as consciências e continuam a ressoar hoje, enquanto as sociedades globais oscilam entre a indiferença e a polarização. 'Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto porque eles são pobres, chamam-me de comunista', respondia com amarga ironia. De estatura diminuta, tanto que recebeu o apelido de 'bispinho', mas com grande visão, dedicou sua existência a construir pontes", escreve Alicia Lopes Araújo, jornalista, sobre trechos do discurso de Helder Câmara quando Sermig lhe concedeu o Prêmio Artesão da Paz em 1982, em Turim, em artigo publicado por L’Osservatore Romano, 09-09-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
"Se não tiveres tábua a jogar nas águas sê, tu mesmo, tábua viva para os náufragos, teus irmãos". Essa frase por si só já bastaria para descrever Dom Hélder Câmara (1909-1999), uma das figuras proféticas da Igreja latino-americana do século XX. Em plena Guerra Fria, apontou o caminho da fraternidade universal, promovendo uma paz global fundada na justiça social e na não violência. "Bispo das favelas", "profeta desarmado", "bispo vermelho": muitos são os apelidos que acompanharam sua vida. Nascido em Fortaleza, no nordeste do Brasil, escolheu ficar do lado dos marginalizados. Nomeado bispo auxiliar do Rio de Janeiro em 1952 e, depois, arcebispo de Olinda e Recife a partir de 1964 (ano do golpe de estado militar), tornou-se uma das vozes mais corajosas contra a ditadura. Não brandia armas, mas palavras que abalavam as consciências e continuam a ressoar hoje, enquanto as sociedades globais oscilam entre a indiferença e a polarização. "Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto porque eles são pobres, chamam-me de comunista", respondia com amarga ironia. De estatura diminuta, tanto que recebeu o apelido de "bispinho", mas com grande visão, dedicou sua existência a construir pontes. Para Câmara, a paz, que se tornou coração de seu ministério, não é herdada, mas construída entrelaçando ética, política e espiritualidade, transformando as estruturas opressivas.
Censurado em sua terra natal, continuou a escrever, a se encontrar com os jovens, a viajar e a semear esperança. Participou do Concílio Vaticano II, fundou a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em 1952, colaborou na criação do CELAM em 1955, esteve entre os precursores da Teologia da Libertação e foi signatário do Pacto das Catacumbas, por uma Igreja "serva e pobre". Mais vezes indicado ao Prêmio Nobel da Paz, recebeu inúmeros reconhecimentos, incluindo o Prêmio Artesão da Paz do Serviço Missionário da Juventude (SERMIG) em Turim. Publicamos o discurso, extraído do site do SERMIG, proferido em 18-04-1982, na lotada Praça de São Carlos.
"À medida em que a violência se espalha pelo mundo e o ódio, além de envenenar mentes e corações, causa desastres terríveis, feliz é aquele que não abriga em si a menor gota de ressentimento e adota, como programa de vida, a oração de São Francisco de Assis: “Senhor, fazei de mim um instrumento da vossa paz”.
Nós, que queremos ser artesãos da paz, não devemos, portanto, ter medo de falar de questões candentes, de levantar problemas que tocam questões profundas, correr o risco de ser incômodos e decepcionar. Devemos "ousar a paz".
Hoje, a humanidade está crucificada entre dois extremos: Leste e Oeste em permanente tensão, e Norte e Sul, com seus profundos desequilíbrios. Durante a Segunda Guerra Mundial, para derrotar o nazismo, o Ocidente não hesitou em pedir ajuda à Rússia, até então considerada e julgada como a besta do Apocalipse e o próprio Anticristo. O preço foi a divisão de Berlim e da Alemanha, a divisão das zonas de influência dos Estados Unidos e da Rússia, que colocaram a semente do Pacto de Varsóvia e da Aliança Atlântica, com a implícita constituição do eixo Leste-Oeste, tão responsável pela corrida armamentista e pelos gastos desenfreados que desviam recursos para enfrentar as misérias em que se encontram bilhões de pessoas. Com a ajuda do Espírito de Deus, há saídas, há alternativas, há esperança!
Por que o abismo entre Norte e Sul só aumenta e assume proporções catastróficas?
Problemas de raça? De inteligência? De vontade de trabalhar? De honestidade? (...). O que aconteceu e está acontecendo cada vez mais é que o Norte preserva a sua riqueza esmagando o Sul. Na época dos chamados "descobrimentos" e, posteriormente, do "colonialismo", o que um dia seria chamado de Norte ainda era, na verdade, apenas a Europa. Se é verdade que, com os "descobrimentos" e o "colonialismo", sob o pretexto de ajuda, as culturas locais foram direta ou indiretamente destruídas; se, via de regra, as populações indígenas foram forçadas a escolher entre a escravidão ou as guerras de extermínio; se houve a destruição da natureza e a exploração total de matérias-primas, tudo isso acontecia em nível empírico, já que o termo "economia" estava ainda por nascer. Os verdadeiros donos do mundo, as multinacionais, impõem sua vontade às superpotências. (...) Quem não sabe, quem não sente que as Nações Unidas estão na impossibilidade concreta de condenar mais de cento e cinquenta hegemonias nacionais? Acontece que, embora seja verdade que após a Segunda Guerra Mundial o número de países com independência política se multiplicou, também é verdade que essa independência política existe apenas nominalmente, pois sem independência econômica e cultural, praticamente todos são forçados a se mover nas zonas de influência do bloco oriental ou ocidental. Fala-se muito em diálogo Norte-Sul, que, na atual situação mundial, é uma enorme ilusão. Em que condições de diálogo pode se encontrar um mendigo, um Lázaro, convidado à mesa do ultrapoderoso Rico?
O Norte tem mais medo da Bomba M (a Bomba da Miséria) do que da bomba nuclear. Daí as campanhas teleguiadas e fortemente direcionadas para conter a explosão populacional, como o inimigo número um do desenvolvimento. (...)
O que concluímos então? Que a escuridão é total? Que não há saídas? Que a esperança é impossível? Não, nem tudo está perdido. Existem caminhos que nos levam a ter esperança contra toda esperança. Há gestos mais expressivos do que as palavras. (...)
Hoje ainda há muitas pessoas, pessoas comuns, mas também intelectuais, cientistas, que trazem seu pequeno pedaço de paz na vida privada e pública. Elas estão convencidas, como eu, de que o ser humano é a dimensão fundamental capaz de subverter profundamente os sistemas e as estruturas de toda a humanidade e de libertar a existência individual e coletiva das ameaças que pesam sobre ela. É o povo, de um modo geral, o verdadeiro portador do futuro. Seu desenvolvimento e sua tomada de consciência da nova condição humana e das maiores responsabilidades que ela acarreta são as diretrizes para a reorientação da sociedade. Isso foi reafirmado pelo Concílio Vaticano II e pelas declarações de Medellín e Puebla! Aquelas páginas contêm palavras que são um arco-íris de esperança!
Pensando no futuro da humanidade, estou também convencido de que, por razões de justiça e de democracia, as vozes dos jovens devem ser ouvidas. Os jovens são mais críticos em relação à sociedade contemporânea e, como ainda não estão presos em suas engrenagens, são mais livres para usar sua criatividade para imaginar uma sociedade diferente. São mais puros e, portanto, mais sensíveis às necessidades de um mundo mais justo, mais honesto e mais humano. Podem ser portadores de uma nova ideia de civilização.
Tenho um sonho a lhes confidenciar. Nós, da não violência ativa, podemos pensar em voz alta diante de todos, porque não nascemos para conspirar. (...) Que Deus nos ajude a abrir, com a contribuição de todos que querem ser artesãos da paz, uma brecha por onde possa entrar em plenitude liberdade e a luz, e a esperança contra toda esperança."
- Hélder Câmara
Leia mais
- Dom Hélder Pessoa Câmara, profeta, místico e pastor
- Dom Hélder Câmara, o arcebispo que via Deus no Carnaval do povo
- Profecia, missão e santidade: 25 anos sem Dom Hélder Câmara. Artigo de Renan Dantas
- Hélder Câmara: 25 anos após a sua morte
- As mudanças de rumo na vida de Hélder Câmara. Artigo de Eduardo Hoornaert
- As ‘Minorias Abraâmicas’ de Hélder Câmara. Artigo de Eduardo Hoornaert
- Hélder, Luciano e Zumbi: bispos e profetas de uma Igreja em saída. Artigo de Gabriel Vilardi
- 27 de agosto: A Páscoa de Hélder Câmara, Luciano Mendes de Almeida e José Maria Pires
- Memória. Dom Hélder, dom Luciano e dom José Maria Pires
- D. Luciano narra a sua vida em entrevista especial no dia 8-10-2005
- Dom Hélder Câmara e Dom Luciano Mendes de Almeida: a opção pelos pobres
- Hélder, um Dom!
- De Hélder Câmara a Francisco, deserto e profecia continuam
- 25 anos sem Dom Hélder Câmara, por Urariano Mota
- Dom Hélder Câmara, uma vida de transformação e resistência. Entrevista especial com Nelson Piletti. Revista IHU On-Line, Nº. 437
- Dom Hélder Câmara: místico, fraternal, servidor fiel. Entrevista especial com José de Broucker. Revista IHU On-Line, Nº. 288
- Hélder Câmara: o Dom. Entrevista especial com Zildo Rocha. Revista IHU On-Line, Nº. 288
- Profecia, missão e santidade: 25 anos sem Dom Hélder Câmara. Artigo de Renan Dantas
- Dom Hélder Câmara na manhã de espiritualidade do CEPAT
- Dom Hélder Câmara: um ex-integralista nos altares. Artigo de Luís Corrêa Lima
- Dom Fernando Saburido anuncia que Dom Hélder Camara está mais perto de ser declarado “venerável”
- Documentos de Dom Helder Câmara enviados ao Vaticano
- Dom Hélder Câmara e Dom Luciano Mendes de Almeida: a opção pelos pobres
- Textos inéditos de Dom Hélder Câmara serão enviados ao Vaticano
- Meus queridos amigos. As crônicas de Dom Helder Câmara
- Documento para beatificação de dom Helder Câmara é entregue ao Vaticano
- Dom Helder Câmara, um dom para a Igreja do Brasil
- “Deslancha” a causa da beatificação de Dom Hélder Câmara no ano de São Romero
- Em 16 de dezembro se encerrará a causa pela beatificação de Dom Helder Câmara
- Dom Hélder Câmara e Dom Luciano Mendes de Almeida: paladinos dos pobres e da justiça
- Dom Hélder Câmara, beato?
- São Francisco de Assis e Dom Helder Camara