02 Setembro 2025
"É inegável que o Brasil tenta apresentar iniciativas positivas — como o lançamento de uma rede global contra a desinformação climática e a narrativa de uma “COP da Amazônia”. Mas sem ambição real nas metas, sem coerência entre discurso e prática, e sem garantir espaços de participação ampla, o risco é que a conferência termine esvaziada".
O artigo é de Ismael Machado, jornalista, roteirista e cineasta, publicado por Amazônia Real, 01-09-2025.
Eis o artigo.
A poucos meses do início da COP30, em Belém, o Brasil se encontra diante de uma encruzilhada que mistura expectativas globais, desafios locais e contradições políticas. A conferência, que deveria ser o palco do protagonismo amazônico e da liderança climática brasileira, corre o risco de ser lembrada mais pelos tropeços do que pelos avanços.
Desde que Belém foi escolhida, uma onda de desconfiança tomou conta da imprensa nacional e estrangeira. De um lado, há um olhar preconceituoso, que insiste em reforçar estereótipos da Amazônia como território de precariedade e caos; de outro, há críticas legítimas às escolhas políticas do governo federal e estadual, que vacilam entre o discurso verde e práticas de incentivo a combustíveis fósseis e flexibilização ambiental. A cobertura internacional já escancara as contradições do Brasil. O país que promete liderar a transição climática ainda flerta com o petróleo na foz do Amazonas e suspende instrumentos eficazes contra o desmatamento, como a moratória da soja, um pacto que buscava proteger a floresta amazônica ao impedir que traders de soja comprem de produtores que tenham desmatado áreas na região após julho de 2008. Mas, para a Superintendência-Geral do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) a moratória “constitui um acordo anticompetitivo entre concorrentes que prejudicam a exportação de soja” e determinou sua suspensão.
No plano local, o Pará acumula erros que fragilizam sua imagem. O mais evidente é a crise de hospedagem: hotéis inflacionados, preços abusivos e uma incapacidade de garantir infraestrutura mínima para receber delegações de quase 200 países. A ONU alertou para a exclusão que isso pode causar, e até países como a Áustria desistiram de participar por não conseguir acomodação. A situação expõe improviso, falta de planejamento e uma espécie de aposta cega de que a estrutura se resolverá no último minuto. Soma-se a isso o polêmico projeto da Avenida Liberdade, uma rodovia que avança sobre área protegida, batizada com nome pomposo, mas que traz consigo a marca do desmatamento — um paradoxo doloroso para um evento que deveria simbolizar justamente a preservação.
Há também um debate que pouco aparece nas manchetes, mas que é central. A ausência de atores sociais nos preparativos. Organizações indígenas, quilombolas e periféricas denunciam que não foram devidamente incluídos nos preparativos e alertam para o risco de a COP30 se tornar “a mais excludente da história”. O alto custo de participação, a burocracia no credenciamento e o peso dos lobbies empresariais tendem a sufocar as vozes daqueles que mais deveriam ser ouvidos: os povos da floresta, as comunidades ribeirinhas, as periferias urbanas que vivem os efeitos das enchentes e do calor extremo. Há um claro afastamento das organizações de base.
Sem recursos para se hospedar e com pouco espaço para falar, a sociedade civil corre o risco de ser silenciada. O protagonismo periférico precisa ser mais que um discurso decorativo; deve ser parte estrutural da conferência, caso contrário a COP30 será apenas mais uma vitrine de marketing ambiental. A COP30 só terá legitimidade se abrir espaço real para os povos da floresta e para as periferias da Amazônia urbana. Caso contrário, será apenas uma grande feira de negócios verdes, com discursos vazios embalados para agradar investidores internacionais.
É inegável que o Brasil tenta apresentar iniciativas positivas — como o lançamento de uma rede global contra a desinformação climática e a narrativa de uma “COP da Amazônia”. Mas sem ambição real nas metas, sem coerência entre discurso e prática, e sem garantir espaços de participação ampla, o risco é que a conferência termine esvaziada.
A COP30 é uma oportunidade rara de vincular a preservação ambiental à justiça social e territorial, de mostrar que a Amazônia não é cenário exótico, mas centro de decisões globais. Porém, para que isso aconteça, será preciso mais do que palanques e obras emergenciais. Será necessário humildade política, inclusão social e compromisso real com uma transição justa. O tempo é curto e o desafio é gigantesco — mas ainda há chance de fazer da COP30 um marco histórico, e não um fiasco anunciado. E é preciso dizer com todas as letras que a COP30 não pode ser reduzida a uma vitrine de marketing ambiental. Não basta colocar a Amazônia no centro do mapa se as vozes amazônicas continuarem nas margens. Não basta repetir mantras sobre transição energética se, na prática, o país insiste em explorar petróleo. Não basta anunciar metas de neutralidade de carbono se, ao mesmo tempo, se desmontam políticas eficazes de controle do desmatamento.
A conferência tem, sim, potencial de ser um marco. É uma oportunidade única para o Brasil pressionar por financiamento climático justo, colocar desigualdade no centro da pauta e mostrar que não existe solução climática sem justiça social. Mas para isso será preciso – repetindo o óbvio- coragem política, humildade institucional e, acima de tudo, compromisso com a inclusão. A COP da Amazônia só fará sentido se for também a COP dos povos da Amazônia — indígenas, quilombolas, ribeirinhos, agricultores familiares, juventude periférica. Isso tem sido repetido ad nauseam, mas como diria Nelson Rodrigues, muitas vezes o óbvio ululante não é visto nem notado. E o trem da história continua avançando e nos atropelando.
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