02 Setembro 2025
“Tudo começa com o dom recebido: o amor de Deus, que nos antecede e nos move. Quando a ação social nasce desse dom, não se prende à lógica de resultados imediatos, nem à busca de visibilidade, mas se torna testemunho do amor gratuito de Cristo. É a gratuidade que impede o ativismo vazio e devolve à Igreja sua identidade mais profunda: ser sacramento do Reino, sinal visível de uma esperança que vai além do sucesso de projetos ou da eficiência institucional”, escreve José F. Castillo Tapia, padre jesuíta que trabalha na Amazônia brasileira apoiando povos indígenas. É graduado em Filosofia e Teologia pela Pontifícia Universidade de Comillas e mestre em Teologia Sistemática pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE) de Belo Horizonte.
José Castillo é autor de duas edições do Cadernos Teologia Pública, intituladas O Rito Amazônico na Igreja Católica: contexto, desafios e propostas (nº 182, 2025) e Ecologia integral e encarnação nos povos originários (nº 180, 2025).
Eis o artigo.
A Igreja, em sua dimensão missionária, sempre esteve atenta às necessidades concretas do povo. Desde os Atos dos Apóstolos, quando a comunidade cristã organizava a partilha para que “ninguém passasse necessidade” (At 4, 34), até as iniciativas contemporâneas de solidariedade, a preocupação com a justiça socioambiental é parte constitutiva do anúncio do Evangelho. Contudo, essa mesma missão enfrenta uma tensão permanente: como responder às demandas sociais e socioambientais sem reduzir a Igreja a uma simples organização não governamental, perdendo o horizonte da fé e da evangelização?
A fé cristã é inseparável do compromisso com a vida em sua integralidade. A Laudato Si’ recorda que “não há duas crises separadas, uma ambiental e outra social, mas uma única crise socioambiental” (LS 139). Isso significa que evangelizar implica também cuidar da Casa Comum, proteger os pobres e promover uma sociedade mais justa. Assim, os serviços sociais, os projetos de sustentabilidade e as iniciativas de solidariedade não são um “acréscimo” à missão, mas parte dela.
Para sustentar tais iniciativas, a Igreja recorre muitas vezes a parcerias, financiamentos e projetos junto a organismos públicos ou privados. Aqui, surge a primeira tensão: a necessidade de recursos pode gerar dependência, burocratização e até condicionamentos externos que enfraquecem a liberdade profética da Igreja. O risco é que, em vez de ser sinal do Reino, a comunidade cristã passe a funcionar como mera prestadora de serviços, competindo com outras instituições no mercado de projetos sociais.
O que diferencia a ação da Igreja de uma ONG não é a eficiência administrativa, mas a motivação e o horizonte: o Evangelho de Jesus Cristo. A ação social não é apenas filantropia, mas expressão do amor gratuito de Deus, que se doa. Nesse sentido, a Igreja não ajuda os pobres “de fora para dentro”, mas caminha com eles, reconhecendo neles o rosto de Cristo. É o que lembrava o Pe. Pedro Arrupe ao afirmar que a opção pelos pobres é constitutiva da missão jesuíta e da Igreja: não só trabalhar pelos pobres, mas com e a partir dos pobres (CG 32).
O Papa Francisco advertiu diversas vezes que a Igreja não é uma ONG. Quando se perde a centralidade de Cristo, a espiritualidade da missão e o horizonte escatológico, a prática social da Igreja se reduz a um assistencialismo sem alma. Isso pode gerar ativismo, esvaziamento do anúncio e até um cansaço pastoral que não alimenta a fé. A identidade cristã se fragiliza quando os projetos substituem o testemunho e a oração.
O caminho de equilíbrio para a Igreja passa, antes de tudo, por manter viva a consciência de que toda ação socioambiental nasce da fonte do Evangelho. A fé não é um apêndice à ação, mas seu coração pulsante. Quando uma comunidade se envolve em projetos de saúde, educação ou cuidado da natureza, não o faz apenas por um dever cívico ou por solidariedade humana genérica, mas porque reconhece no outro o rosto de Cristo e na criação a marca do Criador. É essa consciência que diferencia uma prática evangélica de uma simples prestação de serviços.
Esse equilíbrio se expressa na íntima união entre anúncio e serviço. Não se trata de escolher entre pregar o Evangelho ou oferecer apoio concreto às comunidades; trata-se de perceber que ambos são inseparáveis. A Boa Nova se torna palpável no gesto de repartir o pão, de proteger a floresta, de acompanhar uma família vulnerável. E, ao mesmo tempo, cada gesto solidário encontra sua plenitude quando aponta para o Reino de Deus, para uma vida mais digna e fraterna, onde a salvação é experimentada já agora, ainda que de modo incompleto.
Outro aspecto fundamental é o modo como a Igreja se relaciona com os pobres e com os povos. Não basta atuar “em favor deles” a partir de uma posição externa; é necessário caminhar junto, escutar, aprender e reconhecer neles sujeitos de sua própria história. A pastoral socioambiental encontra seu dinamismo não na imposição de soluções, mas na construção de processos coletivos que promovam autonomia, participação e protagonismo. Dessa forma, a Igreja se converte em companheira de estrada e não em tutora.
Também faz parte desse equilíbrio buscar formas sustentáveis de apoiar as iniciativas, sem depender exclusivamente de recursos externos que muitas vezes impõem condicionamentos ou criam dependência. As experiências de economia solidária, de mutirão comunitário, de cooperação entre redes, paróquias e pastorais mostram que a força da solidariedade pode gerar alternativas concretas e criativas. O recurso não é apenas financeiro: o tempo do voluntariado, a partilha de saberes, a mística que anima as comunidades são dons preciosos que não se compram e que expressam o “mais” evangélico que nenhuma ONG pode oferecer.
Por fim, o equilíbrio se sustenta na gratuidade. Tudo começa com o dom recebido: o amor de Deus, que nos antecede e nos move. Quando a ação social nasce desse dom, não se prende à lógica de resultados imediatos, nem à busca de visibilidade, mas se torna testemunho do amor gratuito de Cristo. É a gratuidade que impede o ativismo vazio e devolve à Igreja sua identidade mais profunda: ser sacramento do Reino, sinal visível de uma esperança que vai além do sucesso de projetos ou da eficiência institucional.
Assim, a Igreja poderá seguir atuando no coração das lutas socioambientais sem perder sua alma, lembrando sempre que o que a diferencia não é a quantidade de serviços prestados, mas a capacidade de revelar, em cada gesto de cuidado, o rosto do Deus que se doa e faz novas todas as coisas.
A Igreja, quando serve aos pobres e cuida da Casa Comum, permanece fiel ao Evangelho. Mas precisa recordar sempre que sua missão não é apenas resolver problemas sociais, mas testemunhar o Reino de Deus já presente. O equilíbrio entre ajuda concreta e anúncio espiritual é delicado, mas possível, quando se mantém como fio condutor a doação de Cristo, que faz da Igreja não uma ONG, mas sacramento vivo de esperança e de vida nova.
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