Gaza: a primeira fome no Oriente Médio

Foto: Anadolu Ajansi

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25 Agosto 2025

Dois relatórios publicados hoje, 22 de agosto, confirmam o que já era conhecido: Israel está usando a fome como arma de guerra em Gaza e como estratégia não apenas para matar palestinos, mas também para desumanizar a população e desintegrar a sociedade.

A reportagem é de Queralt Castillo Cerezuela, publicada por El Salto, 22-08-2025.

Um novo relatório da Forensic Architecture (FA) e da World Peace Foundation (WPF) foi divulgado hoje, examinando os padrões de distribuição de ajuda alimentar em Gaza.

As conclusões são claras: desde 18 de março de 2025, Israel desmantelou o comprovado e internacionalmente aprovado “modelo civil” de distribuição de ajuda, substituindo-o por um “modelo militar” que promove os objetivos militares e políticos de Israel em Gaza, ao mesmo tempo que priva a população civil da região de alimentos.

A arquitetura da fome

A instrumentalização da distribuição de ajuda humanitária atingiu o objetivo dos israelenses: forçar o deslocamento de segmentos significativos da população, principalmente para o sul do enclave, onde está prevista a construção do que os sionistas chamam de "zona humanitária", mas que na verdade será classificada como campo de concentração, como já alertaram inúmeras organizações de direitos humanos.

"Em Gaza, sob o sistema israelense de distribuição de ajuda humanitária, a fome em massa está sendo intencionalmente produzida", afirma o relatório.

O relatório também destaca que os palestinos precisam caminhar em média 6 km para chegar aos postos de racionamento operados pela controversa Fundação Humanitária de Gaza (GHF), e que esses postos permaneceram abertos por uma média de 23 minutos entre o final de maio e o início de junho. "Entre 19 de junho e 4 de julho, essa média caiu para 10 minutos, e 60% dos anúncios na página da GHF no Facebook foram publicados menos de uma hora antes da abertura programada do posto. Em 23% dos casos, o fechamento de um posto de racionamento foi anunciado antes de qualquer comunicação prévia", afirma o relatório.

"Em Gaza, sob o sistema israelense de distribuição de ajuda humanitária, a fome em massa está sendo intencionalmente produzida", dizem as conclusões do documento, mencionando também que Israel busca: "A destruição do grupo como um todo, por meio da desumanização coletiva, a separação da população de seu território e a desintegração de uma sociedade palestina funcional em Gaza".

No comunicado à imprensa, Alex de Waal, diretor executivo da Fundação para a Paz Mundial, enfatiza: “A desumanização dos palestinos, a privação de sua dignidade básica e a destruição do tecido social da comunidade não são consequências acidentais da fome em massa infligida à população de Gaza. Há razões para acreditar que é isso que Israel pretende com seu sistema de racionamento militarizado.”

Hoje, tentar obter ajuda humanitária é perigoso e potencialmente mortal para a população palestina. Há semanas, sabe-se que o exército israelense se aproveita da situação para matar pessoas que buscam ajuda. "Israel tem usado a ajuda para desmantelar as estruturas sociais e civis existentes em Gaza, baseadas em relações entre redes familiares, grupos políticos e organizações internacionais de ajuda humanitária, para gerar dependência e, como resultado, estabelecer controle político sobre a população palestina", afirmam a Forensic Architecture e a World Peace Foundation.

Por fim, também é importante destacar algo levantado no relatório, que não é insignificante: até o momento, não foram encontradas evidências de qualquer desvio de ajuda humanitária pelo Hamas.

A primeira vez que ocorreu uma fome nesta região do mundo

O relatório da Forensic Architecture e da World Peace Foundation coincide com o lançamento, também hoje, de um novo relatório da Classificação Integrada de Fases de Segurança Alimentar (IPC), que determina que o limiar da fome foi atingido em Gaza.

O relatório de Classificação Integrada de Segurança Alimentar apoiado pela ONU confirma a fome (Fase 5 do IPC) na província de Gaza, que deve se espalhar para as províncias de Deir al-Balah e Khan Yunis até o final de setembro.

“A Classificação Integrada de Segurança Alimentar (IPC) é um sistema globalmente reconhecido para classificar a gravidade da insegurança alimentar e da desnutrição. Esta é a primeira vez que ocorre uma fome no Oriente Médio”, confirmou a Oxfam em reação aos relatos. Não há dúvida de que a fome no enclave palestino e as mortes relacionadas são uma consequência direta do bloqueio israelense.

Se ambos os relatórios destacam algo, é a decisão deliberada de Israel de matar de fome a população de Gaza — e não figurativamente. Desde o início do bloqueio à ajuda humanitária e a outros bens essenciais, em março deste ano, Israel não permitiu a entrada de nenhuma organização internacional no enclave; toda a distribuição foi realizada por meio da Fundação Humanitária de Gaza, uma operação conjunta dos EUA e de Israel. Nos pontos de distribuição da Fundação, dezenas de palestinos foram mortos por estilhaços israelenses enquanto aguardavam para receber alimentos.

O relatório destaca que “mais de meio milhão de pessoas na Faixa de Gaza enfrentam condições catastróficas (Fase 5 do IPC), caracterizadas por fome, miséria e morte. Outros 1,07 milhão de pessoas (54% da população) estão em estado de emergência (Fase 4 do IPC) e 396.000 pessoas (20%) estão em situação de crise (Fase 3 do IPC)”.

De acordo com os últimos dados das Nações Unidas desta semana, na Cidade de Gaza, a maior cidade do enclave, que atualmente abriga um milhão de pessoas e está prestes a ser invadida por Israel, 28,5% da população sofre de desnutrição aguda.

A comunidade internacional reage

Várias organizações de direitos humanos ao redor do mundo reagiram à publicação dessas informações, incluindo a Oxfam, que emitiu um comunicado à imprensa condenando a situação em Gaza.

Da Plan International, Unni Krishnan, diretora humanitária global da ONG, afirmou: “As terríveis consequências do uso da fome como arma de guerra por Israel e do seu bloqueio à ajuda humanitária são devastadoramente evidentes para todos. Nenhum conflito deveria chegar a este ponto. O que estamos presenciando hoje em Gaza é uma catástrofe completamente provocada pelo homem e evitável, que está deixando mais de um milhão de crianças palestinas — e 2,2 milhões de pessoas no total — lutando pela sobrevivência.”

A organização apela ao mundo para que continue a concentrar-se em Gaza e enfatiza a ideia de que "a fome em Gaza não é uma falha de logística ou ajuda; é o resultado de uma guerra brutal e de fome deliberada".

Por sua vez, e em uma declaração conjunta, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), a Unicef, o Programa Mundial de Alimentos (PMA) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) reiteraram seu apelo por um cessar-fogo imediato e acesso humanitário irrestrito "para impedir mortes por fome e desnutrição".

“Só em julho, mais de 12.000 crianças foram avaliadas como gravemente desnutridas, o maior número mensal já registrado e seis vezes maior do que no início do ano. Quase uma em cada quatro dessas crianças sofria de desnutrição aguda grave, a forma mais letal, com repercussões a curto e longo prazo”, destaca o comunicado do Unicef, enfatizando também que esta é a primeira vez que uma crise de fome ocorre no Oriente Médio.

“O povo de Gaza esgotou todos os meios possíveis para sobreviver. A fome e a desnutrição ceifam vidas todos os dias, e a destruição de terras agrícolas, gado, estufas, pescarias e sistemas de produção de alimentos agravou ainda mais a situação. Nossa prioridade agora deve ser garantir acesso seguro e sustentável à ajuda alimentar em larga escala. O acesso à alimentação não é um privilégio, é um direito humano fundamental”, disse Qu Dongyu, Diretor-Geral da FAO.

Sem acesso à água potável

Há apenas algumas horas, a Médicos Sem Fronteiras (MSF) emitiu um comunicado à imprensa observando que a disponibilidade de água potável no enclave é muito limitada, o que deteriorou drasticamente os serviços de saneamento e levou ao surgimento e à disseminação de doenças, incluindo diarreia, febre e infecções respiratórias e de pele agudas.

"Israel está deliberadamente privando a população de Gaza de água. Como parte de sua campanha genocida, as autoridades israelenses estão negando aos palestinos necessidades básicas da vida, como comida, água e assistência médica", denuncia a organização.

“Só no último mês, as equipes médicas de MSF realizaram mais de 1.000 consultas por semana para diarreia aquosa aguda. Além disso, a falta de água para higiene também levou a população a sofrer com doenças de pele, como sarna”, enfatiza MSF, lembrando que essa situação não é nova e que, desde 7 de outubro, “Israel danificou repetidamente duas das três tubulações que atendem Gaza. Estima-se que 70% da água que passa por essas tubulações seja perdida devido a vazamentos na rede de tubulações mais ampla, causados ​​por danos causados ​​por bombardeios”. Isso significa que a água precisa ser distribuída por caminhões-tanque de usinas de dessalinização, muitas das quais foram destruídas por bombardeios do exército israelense.

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