21 Agosto 2025
As medidas anticientíficas do governo Trump estão alarmando especialistas internacionais em saúde pública, que estão pedindo um papel europeu mais forte.
A reportagem é de Pablo Linde María Antonia Sánchez-Vallejo, publicada por El País, 19-08-2025.
O corte de US$ 500 milhões (€ 430 milhões) na pesquisa de vacinas de RNA mensageiro (mRNA) pelos EUA não é apenas mais um corte. O déficit orçamentário retarda o progresso de uma tecnologia promissora que já se mostrou eficaz durante a pandemia de COVID-19 e é a grande esperança para conter rapidamente outras ameaças semelhantes à saúde pública. Também alimenta a desconfiança em relação às vacinas. Enquanto o Secretário de Estado Robert Kennedy Jr. dispensa o comitê consultivo de vacinas de uma só vez para nomear candidatos mais alinhados a uma ideologia que frequentemente entra em conflito com as evidências científicas, especialistas internacionais em saúde pública estão preocupados com o colapso de um elemento-chave da arquitetura global de preparação para emergências de saúde.
A desculpa para os cortes é que a tecnologia apresenta mais riscos do que benefícios, algo que não é apoiado por evidências científicas: graças a ela, a pandemia de COVID mudou seu curso e os mais vulneráveis foram protegidos um ano após o início da pandemia.
Kennedy aproveitou o ambiente propício à resistência à vacina, fomentado pelo próprio Donald Trump. Um exemplo de quão longe esse clima pode chegar foi o ataque mortal à sede dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), há duas semanas, por um homem que culpou a vacina contra a COVID por deixá-lo deprimido e com tendências suicidas. Funcionários da agência federal, uma das agências sob o Departamento de Saúde lideradas por Kennedy, alertam que este não é um incidente isolado. Um sindicato que representa os trabalhadores do CDC afirmou que o ataque, no qual um policial foi morto, não foi aleatório, mas o resultado de "meses de maus-tratos, negligência e difamação sofridos pelos funcionários do CDC".
As consequências da paralisação do investimento em vacinas vão além dos Estados Unidos e podem impactar o mundo inteiro. “Se os Estados Unidos espirrar, o mundo pega um resfriado”, resume a imunologista do Instituto de Saúde ISGlobal, Adelaida Sarukhan, que alerta para um impacto “enorme” na capacidade de resposta a um novo patógeno. Ela dá o exemplo de uma potencial pandemia de gripe, algo que está sempre no radar dos profissionais de saúde: “Com as técnicas tradicionais, levaria 18 meses para fabricar doses suficientes para imunizar um quarto do planeta; com vacinas de RNA mensageiro, quase o mundo inteiro poderia ser vacinado em um ano. Estamos abrindo mão da arma mais rápida e poderosa que temos atualmente contra pandemias”.
No vácuo deixado pelos Estados Unidos, uma batalha silenciosa está sendo travada: uma batalha que opõe a ciência à desinformação, o investimento ao recuo ideológico. "Nesse cenário, retornar à produção mais lenta e deixar o campo aberto à retórica antivacina é um luxo que não podemos nos dar", resume Sarukhan.
A tecnologia de mRNA utiliza uma cópia sintética das instruções genéticas que nossas células leem para produzir proteínas. Em uma vacina, esse mRNA codifica uma proteína do patógeno — por exemplo, a proteína spike do coronavírus — que, quando produzida no organismo, desencadeia uma resposta imune sem a necessidade de introduzir o vírus inteiro. Embora seu desenvolvimento remonte a pesquisas iniciadas na década de 1990, foi a pandemia de COVID-19 que demonstrou seu potencial. Com base na sequência genética de um vírus, um protótipo de vacina pode ser projetado e fabricado em questão de semanas, reduzindo drasticamente os prazos de entrega em comparação com as técnicas tradicionais.
Sua velocidade se deve ao fato de que a mesma plataforma tecnológica pode ser usada para diferentes patógenos, bastando alterar a sequência de mRNA para adaptá-la a um novo alvo, sem a necessidade de refazer todo o processo do zero. Além de doenças infecciosas, essa versatilidade abre portas para aplicações em outras áreas, como vacinas terapêuticas contra o câncer, tratamentos personalizados para doenças raras ou autoimunes e até mesmo terapias para regeneração de tecidos. Devido à sua modularidade, escalabilidade e adaptabilidade, o mRNA é hoje considerado uma das ferramentas biomédicas mais promissoras.
Jaime Jesús Pérez, presidente da Associação Espanhola de Vacinologia, afirma que não há motivos reais para desconfiar dessa tecnologia. "Mas, como foram as mais amplamente administradas durante a COVID, tornaram-se um alvo fácil para negacionistas e teóricos da conspiração", explica.
Amós García Rojas, vacinologista que representou a Espanha por três anos na Organização Mundial da Saúde, vai além: “Cortar o financiamento para a pesquisa de vacinas, para a ciência, é investir na ignorância”. “As vacinas têm sido um dos passos mais importantes para melhorar a saúde dos cidadãos. Se interrompermos seu desenvolvimento, deixaremos uma lacuna terrível que, mais cedo ou mais tarde, se traduzirá em retrocessos na saúde global”, alerta. E ressalta que substituir as pessoas mais qualificadas nos comitês por pessoas com pouca formação científica incentiva “o debate a ser preenchido com especulações e opiniões infundadas”.
Os cortes, aponta Sarukhan, não apenas ameaçam o desenvolvimento de vacinas e tratamentos como os mencionados, mas também prejudicam a preparação contra o bioterrorismo, uma área que Washington considerava prioritária. Além disso, podem desacelerar iniciativas que visam fornecer aos países de baixa renda sua própria capacidade de fabricação de vacinas, um plano em vários países africanos que pode ser comprometido.
São precisamente esses e outros países em desenvolvimento que recorrem às autoridades sanitárias dos EUA para aprovação de medicamentos, visto que não possuem agências equivalentes. No caso das vacinas, isso agora está sendo questionado pela mudança no conselho consultivo.
A alternativa, tanto financeira quanto como referência científica, poderia ser a Europa. Adrián H. Aginagalde, porta-voz da Sociedade Espanhola de Medicina Preventiva, Saúde Pública e Gestão da Saúde, menciona o precedente da Segunda Guerra Mundial, quando o enorme investimento científico dos Aliados foi decisivo. "Se os EUA se retirarem, é a nossa vez", afirma. Sem uma liderança alternativa, alerta, o padrão observado na África, de doenças preveníveis que continuam a circular devido à falta de programas de vacinação em massa, se repetirá.
O Secretário de Estado da Saúde, Javier Padilla, deixa claro que a Europa "deve preencher a lacuna" deixada pelos Estados Unidos. Ele ressalta que a vacina da Pfizer foi resultado de uma colaboração transatlântica: "A BioNTech foi um spin-off de uma universidade europeia". "O mundo está se tornando cada vez mais multipolar, e acredito que a Europa deve, por um lado, assumir um foco maior no investimento em vacinas e, por outro, assumir um certo papel de liderança na coordenação e no incentivo a outras regiões que atualmente estão aderindo, por assim dizer, ao investimento nessa área", conclui.
O revisionismo de Kennedy em relação às vacinas não apenas prejudica a verdade científica e a saúde pública, mas também contribui, como demonstra o ataque aos escritórios do CDC, para alimentar a desinformação em torno de um movimento antivacina diretamente responsável pela pior epidemia de sarampo no país desde 1992, oito anos antes de a doença ser declarada erradicada, e para cujo tratamento Kennedy recomendou, para indignação dos cientistas, óleo de fígado de bacalhau e vitamina A.
Em 5 de agosto, havia 1.356 casos confirmados de sarampo em 41 estados e 32 surtos declarados até o momento neste ano, de acordo com o CDC, a maioria deles em crianças não imunizadas. "O surto atual que estamos observando nos Estados Unidos ressalta a importância de manter níveis adequados de vacinação contra o sarampo", disse William Moss, diretor executivo do Centro Internacional de Acesso a Vacinas (IVAC), que codirige o projeto de rastreamento do sarampo com a Escola de Saúde Pública da Universidade Johns Hopkins. "Os Estados Unidos correm o risco de perder seu status de país livre do sarampo se os casos continuarem nesse ritmo. Como a confiança na vacina continua a ser prejudicada, a imunização é mais importante do que nunca para acabar com este surto e prevenir a ocorrência de futuros surtos".