19 Agosto 2025
"A história do anjo começa no guerreiro e termina no cuidador, começa impiedosamente e termina maternalmente. Nada se diz na Escritura de criação de anjos celestes, mas se fica sabendo seus modos de ser quando eles atravessam as nossas histórias aqui na terra para cumprir suas missões como enviados divinos", escreve Frei Luiz Carlos Susin, OFMCap, doutor em teologia e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Segundo ele, "evidentemente oração, penitência, renovação de vida, em tempos mais intensos do ano, são edificantes da vida cristã, e podem ser incentivados em uma “quaresma de São Miguel”. Mas não separe o homem o que Deus uniu: porque não chamar então de “quaresma – ou, melhor, retiro – com os arcanjos São Miguel, São Rafael e São Gabriel”? Com orações de intercessão simultaneamente aos três, num círculo virtuoso, a potência, a sabedoria e o cuidado? Os céus agradecem. E o magistério da Igreja deveria advertir".
"Se um bom cristão – conclui o teólogo – não vê razões para crer em anjos, algo tão consolador que insiste em atravessar as páginas da Bíblia, e prefere um cristianismo mais árido, menos poético, nem por isso deixa de ser um bom cristão".
Quaresma de São Miguel: é hora de falar de anjos! De São Miguel, mas não só. Brasil a dentro espalha-se a quaresma de São Miguel com um fervor crescente. O arcanjo militar, chefe de milícia celeste, com sua espada em punho, desafia o Maligno e todas as suas hostes, um bom combate. Em nome de Deus: Quis ut Deus? (Quem como Deus?), um brado escrito em latim junto à representação do anjo, que se espalha em estátuas, monumentos, estandartes. O nome é uma boa tradução da origem hebraica desta figura apocalíptica nomeada três vezes no livro de Daniel, uma vez na carta de São Judas e uma vez no livro do Apocalipse. A quaresma de São Miguel é atribuída a São Francisco, um homem de paz e bondade, que andava saudando com Paz e Bem! Não é estranho?
E cadê os outros dois arcanjos – cadê Rafael e Gabriel – que a grande reforma litúrgica pós-conciliar, munida de um aprofundamento teológico e de um sentido de fidelidade às origens, juntou na mesma festa? Dia 29 de setembro, no calendário da Igreja Católica, não é só festa de São Miguel, é dos três grandes arcanjos juntos: São Miguel, São Gabriel e São Rafael. São inseparáveis, formam um círculo, mesmo quando as festas eram em dias e meses diversos. Juntos é que eles formam “o poder protetor de Deus” (Miguel), a “cura divina” (Rafael) e a “força da Palavra de Deus manifestada na boca humana” (Gabriel). São três mensageiros divinos, como as três graças e as três virtudes teologais, como três são as pessoas da divina Trindade. Não separe o homem o que Deus uniu, porque isolado cada arcanjo começa a ter problema, São Miguel em primeiro lugar. Ele regride no tempo.
É que os anjos têm uma história em sua representação e sua literatura. No Oriente Médio eles surgem fora da Bíblia, entre assírios e babilônios: são mensageiros militares do rei, são exércitos enviados sem piedade que submetem os povos sob a espada. São masculinos, encouraçados, sanguinários. Atravessando a Bíblia, deixam aos poucos de ser agressores para se tornarem anjos de defesa: se tornam soldados guardiães do templo, das muralhas, da cidade – até mesmo da porta fechada do Éden. Na cristandade medieval continuarão a ser soldados guardiães da ponte ou da entrada na cidade.
Mas uma das novidades do Novo Testamento é a nova forma do anjo. O evangelho se abre com a cena do anjo doce e alegre saudando Maria. Não é Miguel, é Gabriel. Ganha traços mais femininos, especialmente na pintura de Fra Angelico. Essa transição de sexo, como anota Régis Debray em Deus, um itinerário, é marcante. De fato, na tradição cristã, anjos não só ganham um rosto e gestos mais delicados, mas se tornam delicadamente, maternalmente, anjos da guarda, especialmente das crianças. Até se tornarem eles mesmo anjinhos aos pés de Nossa Senhora da Glória em período barroco. Confundem-se com a inocência das crianças, esses anjinhos de cara fofa, que, como crianças, precisam agora de nosso cuidado adulto. É nossa vez de sermos anjos, cuidadores dos pequenos, dos mais frágeis e vulneráveis. Os anjos celestes – puros espíritos como seres, mas anjos como mensageiros, na definição de Santo Agostinho – contam com esta parceria de anjos de carne e osso para o cuidado de quem tem carne, as crianças, os pobres, os doentes.
A história do anjo começa no guerreiro e termina no cuidador, começa impiedosamente e termina maternalmente. Nada se diz na Escritura de criação de anjos celestes, mas se fica sabendo seus modos de ser quando eles atravessam as nossas histórias aqui na terra para cumprir suas missões como enviados divinos.
A Bíblia é discreta, há apenas alusões a serafins amorosos, a sábios querubins, à estabilidade cósmica e social ou política dos “tronos”, das “dominações”, “virtudes”, “potestades” ou “principados”. Mas essas indicações dão asas a especulações angelológicas refinadas, de forma hierárquica: modelos de hierarquia terrestre. Desde Dionísio, o Areopagita, passando por todas as ondas escolásticas. Na reforma protestante do século XVI, eles permanecem católicos, inspiram poesia e devoção, dão amabilidade à religião, se multiplicam. Quando se trata de lutar pela própria identidade católica, até contra os outros, há preferência por São Miguel, o combatente, ao lado das “três brancuras” – a Eucaristia, a Virgem Maria e o Papa, ou seja, os sacramentos, a devoção e a doutrina.
Mas separado da sabedoria e da esperança anunciadas por Gabriel e da misericórdia e dos cuidados de Rafael, Miguel pode fazer derivar a espiritualidade de combate em uma paranoia por defesa que transforma a obsessão em agressividade e violência a quem represente ameaça. Não separe o que Deus uniu: os três arcanjos se celebra juntos!
Qual a relação entre São Miguel e a quaresma de São Francisco? As fontes franciscanas são claras: o santo costumava ter longos recolhimentos por ocasião de três quaresmas. A quaresma maior, que preparava a Páscoa, de sete semanas, desde a semana Septuaginta. Outra quaresma preparava o Natal, o que hoje é o Advento. E outra, depois das pregações itinerantes de primavera e verão. Esta terceira é que aqui interessa. Francisco isolou-se algumas vezes em uma pequena ilha dentro do lago Transimeno. Mas ao dispor de uma montanha, o Monte Alverne, favorecido por um nobre encantado com sua pregação, Francisco fez da montanha seu lugar de quaresma preferido, e foi de lá que desceu com as marcas dos estigmas. A partir de “ferragosto”, quando o verão, no meio de agosto, começa a ceder, a montanha se torna um lugar tépido, longe da neve que a recobre em boa parte do ano, e também longe do calor que ainda assola a planície. O retiro de Francisco e seus companheiros se estendia até o final de setembro – festa da Santa Cruz, então no dia 25, ou festa de São Miguel, no dia 29 – quando os ventos mais frios do norte traziam o outono que ainda hoje douram as folhas das altas faias. Era hora de descer, como fazem até hoje os pastores com seus rebanhos. Esta é a coincidência, ainda que ele tivesse devoção ao arcanjo, assim como toda a cristandade.
Evidentemente oração, penitência, renovação de vida, em tempos mais intensos do ano, são edificantes da vida cristã, e podem ser incentivados em uma “quaresma de São Miguel”. Mas não separe o homem o que Deus uniu: porque não chamar então de “quaresma – ou, melhor, retiro – com os arcanjos São Miguel, São Rafael e São Gabriel”? Com orações de intercessão simultaneamente aos três, num círculo virtuoso, a potência, a sabedoria e o cuidado? Os céus agradecem. E o magistério da Igreja deveria advertir.
E a queda dos anjos, os demônios? A carta paulina aos efésios, diante das crenças em espíritos maus espalhados nos ares, enfatiza, sem ficar discutindo sua existência ou não, que não mais precisamos temer qualquer tipo de dominações, potestades, etc., pois Cristo, crucificado e exaltado, está acima de tudo e reina pacificamente sobre tudo (Cf. Ef. 1, 21-23; 3, 10) De toda forma, a armadura cristã é a couraça da verdade e da justiça, o evangelho da paz, o escudo da fé, o capacete da salvação, a espada do Espírito e Palavra de Deus (Cf. Ef. 6, 10-17). Tudo muito claro e auspicioso. Sobre demônios, é assunto para outra hora. Por ora, é ainda bom lembrar que demônios, mas também anjos, não estão no “Credo”, o eixo da fé cristã. Se um bom cristão não vê razões para crer em anjos, algo tão consolador que insiste em atravessar as páginas da Bíblia, e prefere um cristianismo mais árido, menos poético, nem por isso deixa de ser um bom cristão.