29 Setembro 2020
“Venerado como o comandante dos exércitos angelicais, um curador sagrado, um protetor dos lugares altos e um companheiro durante nossa jornada final entre este mundo e o outro. Com tantos talentos, é fácil entender por que Miguel estava entre os santos mais populares e amplamente retratados da Europa medieval”, escreve Michael Carter, historiador, em artigo publicado por The Tablet, 28-09-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
29 de setembro é dia de São Miguel e eu não poderia deixar a festa do meu padroeiro [St. Michael, em inglês] passar sem uma coluna em sua homenagem. São Miguel Arcanjo foi – e ainda é – o mais famoso de todos os anjos de Deus. Ele era venerado como o comandante dos exércitos angelicais, um curador sagrado, um protetor dos lugares altos e um companheiro durante nossa jornada final entre este mundo e o outro. Com tantos talentos, é fácil entender por que Miguel estava entre os santos mais populares e amplamente retratados da Europa medieval.
Existem sólidos fundamentos bíblicos para a veneração de São Miguel, ou para ser nerd, seu culto. Miguel é mencionado no livro de Daniel como um dos principais príncipes das hostes celestiais e como protetor especial de Israel. No Apocalipse, Miguel é o guerreiro triunfante de Deus na batalha celestial entre as forças do bem e do mal.
Ele também era um dos favoritos dos apócrifos bíblicos – os primeiros escritos cristãos não aceitos como parte da Bíblia. As descrições de Miguel em vários textos apócrifos, como o Testamento de Abraão e a Vida de Adão e Eva, o levaram a adquirir uma associação especial com a água. Seu culto cristão nasceu no que hoje é a Grécia e a Turquia, concentrava-se em fontes e nascentes, especialmente aquelas com poderes de cura. Diz-se que o arcanjo santificou vários desses lugares aquáticos com aparições e, então, Constantino, o Grande, o primeiro imperador romano cristão (falecido em 337), construiu um santuário para o santo – o Miguélio – em um desses locais.
A veneração de Miguel na Europa Ocidental foi turbinada por uma série de visões do arcanjo. Diz-se que três ocorreram no Monte Gargano, no sudeste da Itália, durante o século V, a montanha sagrada que se tornou o centro do seu culto nos séculos posteriores.
Outra aparição ocorreu na Roma do século VII. Durante o surto da peste, o papa Gregório, o Grande (falecido em 664), testemunhou o anjo de pé sobre o túmulo do Imperador Adriano. O pontífice avistou o anjo embainhando sua espada ensanguentada, um sinal claro da intervenção de Miguel para salvar a cidade da peste. O local da aparição recebeu o nome de Castel Sant'Angelo em homenagem ao evento, um nome que o alegra até hoje.
O arcanjo também agraciou o norte da Europa com visitas, as mais famosas em 709, quando apareceu no cume de uma montanha na costa da Normandia, que foi chamado para sempre de Monte Saint-Michel. Uma visão semelhante foi a razão para o nome do Monte de São Miguel, na costa da Cornualha. Ambas as colinas sagradas tornaram-se locais de mosteiros.
Você deve ter notado um tema comum aqui, com Miguel propenso a se manifestar em locais elevados. Essa associação entre o arcanjo e os lugares altos perdurou por toda a Idade Média: a igreja no topo de Glastonbury Tor foi dedicada ao santo, assim como uma capela em uma colina ao sul da Abadia de Fountains. Nossos ancestrais medievais teriam compreendido prontamente o motivo.
Conforme explicado na Lenda de Ouro, uma coleção de vidas de santos composta na Itália do século XIII, Lúcifer e seus companheiros anjos caídos habitavam o ar “entre o céu e a terra” e “voavam ao nosso redor como moscas”. Felizmente, o sempre vigilante Miguel, resplandecente com asas compostas de penas coloridas do arco-íris, estava lá para golpear aqueles demônios malvados com sua espada desembainhada. Sua imagem esculpida foi colocada em muitas torres para deter as forças do mal e reassegurar os fiéis de sua presença protetora.
Os serviços sagrados de Miguel também estavam disponíveis para os moribundos. O arcanjo estava pronto para lutar contra Satanás pelas almas dos que haviam partido recentemente. “Então vós todos ajoelhem, e rezem a São Miguel, que ele aparecerá para vocês, e quando ocorrer, todos passarão para fora deste mundo, e defenderá vocês, e os levará para o paraíso da felicidade”, escreveu John Mirk, um cônego e mais tarde prior da Abadia de Lilleshall, um mosteiro agostiniano em Shropshire, por volta de 1400.
Por causa desses serviços no leito de morte, Miguel é considerado um “psicopompo”, um guia confiável para as almas em sua jornada da Terra para a vida após a morte. E uma vez que uma alma alcançou os Portões Perolados, ela foi pesada em balanças seguradas pelo arcanjo para determinar se sua virtude era suficiente para garantir a passagem para a felicidade eterna. Não é preciso muita imaginação para descobrir por que cemitérios e capelas funerárias em toda a Europa foram dedicados a São Miguel.
Os peregrinos aglomeraram-se no santuário do Monte Gagano, muitos gravando seu nome na rocha perto de onde dizem que São Miguel apareceu. Entre os que fizeram a peregrinação piedosa estava um grupo de cavaleiros normandos. A visita deles à montanha sagrada no início do século XI foi o catalisador para uma cadeia de eventos que resultou na conquista normanda da Sicília.
Pedras lascadas do local das aparições de Miguel em Gargano foram disseminadas como relíquias sagradas. Dois encontraram o caminho para a Abadia de Batalha, a grande penitência de Guilherme, o Conquistador, por sua vitória na Batalha de Hastings em 1066. As sagradas associações militares do anjo atraíram as elites guerreiras da Europa medieval. Desde o tempo de Carlos Magno em diante, Miguel foi o protetor oficial do Sacro Império Romano e as ordens de cavalaria foram fundadas sob seu patrocínio.
Durante séculos, os artistas encontraram inspiração nas múltiplas funções de Miguel: anjo pacífico nos gloriosos mosaicos do século XII na Catedral de Cefalù, na Sicília; um guerreiro sagrado em várias telas antigas da Ânglia Oriental do final da Idade Média; um pesador de almas na aterrorizante pintura de painel do século XV de Hans Memling do Juízo Final.
A sua festa de 29 de setembro comemora a dedicação, no século V, de uma basílica em sua homenagem nos arredores de Roma. O nome inglês para a festa é Michaelmas. Um dos históricos dias de pagamentos e contratações (“quarter days”), também recebeu seu nome nos termos acadêmicos e jurídicos que se iniciam nesta época do ano. Não é comum que haja um período de tempo bom e quente no final de setembro. Agora geralmente chamamos isso de Verão Indiano, mas em épocas passadas era rotulado de Verão Michaelmas – certamente uma denominação digna de reviver nestes tempos de maior sensibilidade ao uso da linguagem. Pode até ser algo que ambos os lados na guerra cultural, tradicionalistas autonomeados e combativos decoloniais, poderiam concordar. Isso seria algo mais para agradecer a São Miguel.
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Como São Miguel, o “psicopompo”, afasta os demônios do mal com sua poderosa espada da justiça - Instituto Humanitas Unisinos - IHU