Ambiente digital agrava violações de direitos contra crianças e adolescentes. Entrevista especial com Arlete dos Santos Petry e Danielle Cramer

“Necessitamos deixar de lado o pacto de silêncio e a política do ‘não estou vendo o que está acontecendo’ e fazer garantir a mínima proteção para os adolescentes”, diz procuradora do Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro

Foto: Freepik

Por: Edição: Patricia Fachin | 14 Agosto 2025

A possibilidade de maior interatividade social na internet desde a emergência da Web 2.0 no início dos anos 2000 permitiu a criação de novas plataformas digitais e, com elas, vieram à tona velhos e novos problemas sociais. Um deles é o modo como utilizamos as plataformas digitais e como somos impactados pelos seus algoritmos. Na semana passada, um desses problemas viralizou: a denúncia de adultização de crianças e adolescentes em plataformas digitais feita pelo influenciador digital Felca.

O uso excessivo de telas e games por crianças, adolescentes e adultos foi tema do debate “Das plataformas e ‘games inocentes’ ao trabalho infantil no mundo digital”, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU em maio deste ano. Participaram do evento Arlete dos Santos Petry, professora do Departamento de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Adriana Sena Orsini, desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais, e Danielle Cramer, procuradora do Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro. As palestrantes sublinharam os limites entre diversão e trabalho nas plataformas digitais e destacaram a necessidade de proteger crianças e adolescentes dos efeitos nocivos do ambiente digital.

Segundo Danielle Cramer, “vêm ocorrendo diante dos nossos olhos, nos meios digitais, situações de trabalho infantojuvenil que, diferentemente daqueles que acontecem na vida real, não têm causado comoção, indignação, perplexidade ou até mesmo atuação firme e incisiva, visando coibi-los, seja por parte do Estado, seja por parte da família ou da sociedade, a quem, por dever constitucional, incumbe zelar com absoluta prioridade pelos direitos da criança e do adolescente, como determina o artigo 227 da Constituição”. No ambiente digital, assevera a procuradora, as relações têm se estabelecido como se a Constituição fosse letra morta.

Arlete dos Santos Petry lembra que as tecnologias não são neutras e nossa participação nesses ambientes depende de uma “escolha que exige um posicionamento crítico, mas para que esse posicionamento crítico aconteça é preciso que haja informação”. Contudo, diz a pesquisadora, este “ainda é um ponto muito borrado. Não sabemos muito bem como nos situar nessa área”.

A seguir, publicamos, no formato de entrevista, os principais apontamentos de Arlete dos Santos Petry e Danielle Cramer no evento. A exposição completa está disponível aqui

Arlete dos Santos (Foto: UFRN)

Arlete dos Santos Petry é doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), mestre em Educação e graduada em Psicologia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).

Danielle Cramer (Foto: TRT7)

Danielle Cramer é procuradora do Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro e integrante da Coordenadoria de Combate à Exploração da Criança e do Adolescente (Coordinfância).

Confira a entrevista.

IHU – Como a internet 2.0 reconfigurou a atuação das pessoas na rede?

Arlete dos Santos Petry – O livro de Nicholas Negroponte, intitulado A vida digital (‎Companhia das Letras, 1995), apresenta alguns cenários do que seria a vida digital. Hoje, conseguimos perceber um pouco melhor o que é essa vida. A web 2.0, lançada em 2004, possibilitou não só a participação, mas também a produção de conteúdo digital. Isso gerou uma série de movimentos no sentido de uma cultura participativa e uma certa euforia de muitos em poder produzir conteúdo na rede, conteúdo que todos pudessem ver.

O jogo Doom, produzido em 1997 e em 1999, abriu seu código fonte para algumas pessoas criarem versões do jogo. Isso deu espaço para a cultura participativa ligada à produção digital crescer. Com o Doom começaram a acontecer os primeiros fóruns de jogadores. O que estava sendo feito na produção dos jogadores, desenvolvedores e produtores de jogos foi compartilhado nos fóruns e, com isso, uma vida de comunidades de jogadores e desenvolvedores de jogos foi sendo estabelecida. Muitas trocas foram feitas e isso gerou uma característica importante para o ser humano: o pertencimento a um grupo que produz junto. O elemento do pertencimento é uma tônica que nos ajuda a compreender como chegamos nessa questão de as pessoas estarem participando de grupos numa plataforma de jogos. Todas as pessoas buscam pertencer e serem aceitas por um grupo. Temos aqui um elemento impulsionador para este tipo de espaço.

Outro elemento que marca a cultura participava é o fato de a pessoa querer tanto pertencer a uma comunidade, que dedica tempo e esforço para produzir, abnegando de outras esferas da vida para se sentir aceita. Essa abnegação também começa a ter um nível de exploração. Ou seja, pessoas se sujeitam a colocar tempo, esforço e dinheiro em plataformas, excedendo as suas condições físicas de esforço e trabalho.

IHU – O que acontece nessas comunidades pode ser classificado como trabalho ou é entretenimento?

Arlete dos Santos Petry – A partir da década de 1990, teóricos começam a discutir a questão dos computadores pessoais, que, ao mesmo tempo, é um lugar de trabalho, onde se produz trabalho, mas também é um lugar de entretenimento. O mesmo objeto tem esse caráter ambíguo. Hoje, essa situação se repete via smartphones.

Sara Grimes, da área da comunicação, e Andrew Feenberg, teórico da filosofia, dizem que, com a abertura do código fonte do Doom, começou o ciclo de desenvolvimento dos jogos digitais, jogos feitos pelos próprios jogadores ou pessoas apaixonadas por jogos. O esforço dos jogadores agrega benefícios econômicos para as empresas. Esse é o ponto que nos leva a questionar o que está acontecendo aí: entretenimento ou trabalho?

Outro autor, Yee, em 2006, fez uma pesquisa com jogadores de MMORPG (Massively Multiplayer Online Role-Playing Games) e observou que o número de horas que as pessoas despendiam trabalhando as personagens era muito grande, cerca de 22 horas por semana. Muitos diziam que iniciavam o jogo por diversão, mas, na prática, trabalhavam no desenvolvimento de personagens e perdiam um pouco da diversão. Passavam por situações de cansaço ou situações que tinham característica de trabalho. Para alguns, essa atividade acabava sendo uma forma de sustento, porque recebiam um valor econômico por estarem construindo objetos para os jogos.

IHU – A divisão entre o que é trabalho e o que é diversão está clara para os jogadores?

Arlete dos Santos Petry – Eu diria que há um borramento entre jogo e trabalho, dado o histórico de um objeto que nasce como diversão, mas acaba tendo um caráter de trabalho. O problema é quando essa divisão não fica tão clara para o jogador. O mesmo se aplica para o caso dos influenciadores ou para todos nós que postamos conteúdos nas redes sociais. O que publicamos pode ter um caráter interessante, mas, ao mesmo tempo, isso também gera lucros enormes para algumas empresas. Será que estamos conscientes ao fazermos isso? Claro que as empresas dizem que se trata de entretenimento, mas essa forma emergente de esforço é característica do trabalho imaterial e não da diversão.

A experiência do Minecraft

Eu pesquisei sobre o Minecraft em 2014, quando o jogo foi vendido para a Microsoft. Ele foi desenvolvido por Markus Persson, um desenvolvedor sueco. Persson começou o jogo sozinho, nas horas vagas. Depois, organizou um estudo com outras pessoas e, nesse desenvolvimento do jogo, começou a contar com colaborações e opiniões das pessoas que estavam jogando. O jogo ficou como ficou graças às pessoas que foram opinando sobre as personagens. O jogo foi vendido por 2,5 bilhões de dólares para a Microsoft. Quem ganhou financeiramente com isso foi o estúdio, mas Persson e muitos outros trabalharam para o jogo se tornar o que acabou sendo. É um jogo de código aberto, que existe por causa da produção das pessoas. Tem dois modos de jogar: o modo sobrevivência e o modo criativo. O criativo é o que as pessoas mais gostam porque elas podem criar e se sentirem pertencentes. Isso é trabalho ou entretenimento?

Roblox

O Roblox é um jogo de 2004, mas explodiu apenas recentemente. É uma plataforma mais complexa, que usa palavras do mundo do trabalho: espaço para contratar, espaço para ser contratado, oportunidades. Há uma remuneração para a produção, equipes podem ser formadas, podem-se conhecer pessoas. Os jogadores pagam para fazer parte do estúdio de produção do Roblox. Quem está lá? Crianças de 13 a 16 anos. Também tem situações de atrasos de pagamento, de não pagamento em relação ao combinado.

O jogo é um mundo fechado e protegido da diversão, mas quando chegam os MMORPGs, essa fronteira é borrada. A vida online invade a offline e isso interfere no cotidiano dos jogadores. Além disso, o Roblox gera dinheiro com a monetização do próprio jogo e da plataforma. Com isso surgem inúmeras questões: gerar lucro é a intenção de quem está na plataforma? É a intenção da empresa? Como devemos situar as crianças que brincam em videogames e jogos virtuais? Quem são as crianças que participam da economia digital? São pessoas que vão ter empregos incríveis, ou são uma mão de obra operária, numa figura mais clássica de trabalho? Elas são uma promessa para o futuro ou não?

Talvez tenhamos que repensar as categorias de trabalho. Em inglês tem duas palavras para falar disso: “work” e “labor”. Quando entrevistei crianças de 6 a 12 anos que jogavam Minecraft, elas falavam dessa questão. O que distingue o trabalho da diversão? Trabalho tem um retorno financeiro. Mas aquele esforço, tempo, conhecimento, que não teve retorno financeiro, como chamamos? O que é isso que se faz? É uma questão importante a ser pensada.

IHU – Qual a relação entre jogo e aprendizagem? Os jogos favorecem a aprendizagem?

Arlete dos Santos Petry – Meu doutorado foi sobre isso. Um dos autores que pesquisei, Yee, diz que o propósito encoberto pelas empresas de videogame é levar o jogador a trabalhar mais e ainda se divertir. Ou seja, ele se diverte e trabalha. O excedente de trabalho gera lucro para a empresa. Rousseau, no livro Emílio ou Da educação, diz que se apresentamos certas coisas que queremos que a criança faça (por exemplo, estudar, esforçar-se), temos que fazer na forma de um jogo, porque a criança se esforçaria para a aprendizagem de maneira prazerosa. Ela faria com alegria aquilo que, de outra forma, não faria.

IHU – Como as transformações no ambiente digital alteraram a compreensão de infância e influem na vida dos jovens?

Arlete dos Santos Petry – O conceito de infância mudou muito. Na história da humanidade, nem sempre a criança foi pensada como um ser que deve ser protegido e resguardado para poder se desenvolver bem. Os anúncios e filmes televisivos mostram uma criança que está sempre produzindo, como se o tempo de lazer, que é esperado e preservado para a criança, já não tivesse mais espaço na rotina infantil. A criança aparece se divertindo, aprendendo alguma coisa, mas já pensando no futuro profissional. O conceito de infância que se estende desde a modernidade começa a não ter mais muito espaço.

Feenberg também lembra que nenhuma tecnologia é neutra. Por um lado, temos o livre arbítrio de decidir se vamos ou não entrar numa plataforma. Há uma escolha que exige um posicionamento crítico, mas para que esse posicionamento crítico aconteça é preciso haver informação. Esse ainda é um ponto muito borrado. Não sabemos muito bem como nos situar nessa área.

Outro ponto a considerar é que uma mesma situação pode gerar experiências diferentes para diferentes pessoas. Posso afirmar isso a partir de entrevistas que fiz com jogadores. Um mesmo jogo, para um jogador, tem um efeito de reflexão sobre a própria vida, enquanto para outros jogadores é apenas uma experiência que não gerava reflexão. Alguns entrevistados com quem conversei disseram que certos personagens de jogos eram importantes para eles pensarem até como agir em situações cotidianas.

IHU – Como o ambiente digital tem transformado as relações de trabalho, inclusive permitindo o trabalho infantil?

Danielle Cramer – Vêm ocorrendo diante dos nossos olhos, nos meios digitais, situações de trabalho infantojuvenil que, diferentemente daqueles que acontecem na vida real, não têm causado comoção, indignação, perplexidade ou até mesmo atuação firme e incisiva, visando coibi-los, seja por parte do Estado, seja por parte da família ou da sociedade, a quem, por dever constitucional, incumbe zelar com absoluta prioridade pelos direitos da criança e do adolescente, como determina o artigo 227 da Constituição.

O Ministério Público (MP) tem por incumbência defender a sociedade em suas mais diversas dimensões enquanto coletividade. Já o Ministério Público do Trabalho (MPT) tem por incumbência defender a sociedade em questões relacionadas ao mundo do trabalho. Essa defesa acontece de várias maneiras: combatendo situações discriminatórias nas relações de emprego e trabalho, precarização nas contratações de trabalhadores, pejotizações em contratos fraudulentos de estágios, terceirizações ilegais, ambientes inadequados que fazem com que os trabalhadores adoeçam, além de combate ao trabalho escravo, trabalho infantil e trabalho de adolescentes em condições inadequadas e ilegais.

Constata-se que o ambiente digital tem servido de cenário para que graves violações de direitos ocorram com crianças e adolescentes, inclusive no tocante aos seus direitos trabalhistas. Diferentemente do que acontece com o trabalho infantil no chamado mundo real, que já vem sofrendo uma mudança cultural de repulsa dessa forma de exploração, o mesmo não se dá no mundo virtual, em que há uma espécie de normalização, aceitação e romantização dessas violações de direitos.

IHU – Qual é o limite entre trabalho e diversão no caso de crianças e adolescentes que estão no ambiente digital? Quando a atividade eletrônica é compreendida como trabalho?

Danielle Cramer – Quando jogar um game ou participar de uma transmissão num canal pela internet vira trabalho? Qual é a diferença e o limite? Tenho um filho adolescente que gosta de jogar FIFA. Ele joga mais do que eu gostaria. Ele está trabalhando? Não. Jogar jogos online não é necessariamente trabalho. Quando isso vira trabalho? É preciso estabelecer limites e diferenciação para não incorrer no erro de que tudo é trabalho ou nada é trabalho. É preciso separar o joio do trigo.

A relação de trabalho ocorre, no caso dos jogos eletrônicos, quando os jogadores (atletas profissionais), chamados nesse mundo digital de players ou pro players, são contratados por equipes ou times para jogar por horas a fio nas diversas plataformas em troca de remuneração que pode ser custeada por equipe, patrocinador, mídia ou monetização do canal em que o jogo está sendo transmitido pelo streaming. Nessa situação específica, verifica-se a existência de uma relação de trabalho independente do nome que se dê, uma vez que estão presentes todos os requisitos que caracterizam uma relação trabalhista, como subordinação, pessoalidade, remuneração e habilidade. Ou seja, o jogador está vinculado e subordinado a uma equipe, foi contratado e está recebendo por intermédio da equipe. Nesses casos, estamos, sim, diante de uma relação de trabalho e, por que não dizer, de uma relação empregatícia.

IHU – Quais as polêmicas envolvendo a atuação de adolescentes em jogos eletrônicos?

Danielle Cramer – Aí existe um problema porque os atletas contratados pelas equipes são, na maioria dos casos, muito jovens. Muitos contratados estão abaixo da idade mínima permitida para começar a trabalhar no país. O limite etário para começar a trabalhar no Brasil é 16 anos, salvo na condição de aprendiz, o que pode ocorrer a partir dos 14. Os jogadores contratados pelas equipes para jogar jogos de forma profissional são muito jovens porque há uma relação direta entre performance e idade. Quanto mais novos forem, melhor é a performance, assim como acontece, por exemplo, na ginástica artística. Não existe, no mundo digital dos jogos, o respeito à idade mínima prevista na Constituição Federal, no artigo 7º, inciso 33. Também não existe formalização de contrato ou, quando o contrato é formalizado, não é formalizado como contrato de trabalho. É formalizado como contrato civil e, nesses casos, com cláusulas extremamente abusivas. Ou seja, a contratação nunca é feita de forma correta.

Muitas vezes, os atletas, indivíduos extremamente jovens, são alojados em casas da equipe contratante, denominadas gaming houses, com péssimas condições de higiene e salubridade, em total desconformidade com as normas regulamentares que disciplinam o ambiente de trabalho. Não podemos perder de vista que por mais que chamem esses locais de gaming houses, trata-se de um alojamento e, como alojamento, precisam ter condições mínimas de higiene, de salubridade, de acordo com as normas regulamentares do MPT. Essas casas não atendem essas especificidades porque não são consideradas ambiente de trabalho.

Outro problema detectado é que, por força do contrato ou da monetização, os adolescentes ficam jogando por horas e horas, inclusive no período noturno. Há pesquisas que revelam que durante uma temporada eles jogam de 12 a 15 horas diárias. Esses não são casos excepcionais; é a regra. Muitos jogadores usam fraldas para não precisarem ir ao banheiro. A recomendação da Sociedade Brasileira de Pediatria é de que menores de 18 anos utilizem, no máximo, três horas de tela por dia. No caso dos jogadores, há um excesso de tela num grau excessivo e, considerando que eles estão trabalhando, são jornadas de trabalho excessivas.

Outro problema detectado nesse tipo de contratação e de relação de trabalho é a ausência ou inadequação de remuneração. Muitas vezes, eles são contratados sem uma remuneração especificada no momento do contrato. A remuneração mínima tem que ser definida no ato da contratação.

Riscos à saúde

Outros danos observados no caso dos atletas adolescentes são o risco e o impacto negativos à saúde por conta dos movimentos repetitivos. Estima-se que eles executem de 300 a 400 movimentos repetitivos por minuto, com sérias lesões no pescoço, no ombro e nas costas. Além de transtornos psíquicos relacionados a longos períodos de exposição a telas.

Existe um transtorno diagnosticado e catalogado, chamado gaming disorder. Ou seja, o excesso de tela é um transtorno identificado. Também há risco de assédios – inclusive assédios sexuais –, pressão psicológica por desempenho e resultado, discriminação por não atender a performance exigida pelo contratante ou pela equipe. No caso dos adolescentes, isto é extremamente cruel. Eles não estão preparados emocionalmente para sofrerem esse tipo de pressão e discriminação, ou para serem descartados por uma equipe por não estar rendendo o desejado.

Ilegalidades

Outra ilegalidade observada nesse tipo de contratação é o conteúdo inadequado para a idade. Muitas vezes, esses atletas são contratados para jogar jogos cuja classificação indicativa é para uma faixa etária maior do que a deles. Outra ilegalidade é a ausência prévia de autorização judicial por alvará de trabalho artístico de streaming. Como o direito de imagem da pessoa está sendo utilizado, seria preciso um alvará do juizado da infância para que a imagem fosse veiculada, o que não acontece. Não se pede direito de imagem. Todas as emissoras de televisão se submetem a isso, mas, no mundo virtual, isso não ocorre. É uma ilegalidade que tem sido sistematicamente praticada pelas plataformas e equipes.

Também é frequente o abandono escolar na medida em que quanto mais os jovens jogam, mais eles acabam não indo à escola e, por inconsequência, abandonam os estudos, o que é completamente ilegal. O ensino é obrigatório no Brasil até a conclusão do ensino médio. Alguns jogadores não frequentam as escolas para poder jogar mais e os pais e as equipes não se responsabilizam por isso. Existe uma completa omissão de todos os envolvidos.

Outro problema é a ausência de convivência familiar e comunitária, que são direitos dos adolescentes previstos no artigo 227 da Constituição. Esses jovens não convivem com suas famílias. Quando estão nas casas de games, ficam afastados do convívio familiar, do convívio com outros adolescentes que não aqueles que estão na mesma condição.

Omissão das plataformas

Também há ausência ou ineficiência de medidas de devida diligência e cuidado por parte das plataformas digitais quanto à ocorrência de trabalho infantil em suas sedes. Há uma completa omissão das plataformas. As plataformas dizem que não há o que fazer, mas é evidente que há como aferir a idade de quem está jogando. Elas teriam como impedir quem tem menos de 16 de participarem ou exigir alvará judicial.

É como se o mundo digital fosse um mundo à parte, onde a Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) não valem. É como se princípio de proteção integral previsto na Constituição da República fosse letra morta. Mas não é. O mundo digital é um prolongamento do mundo real. E o que vale no mundo real, vale também no mundo digital.

IHU – Que resoluções jurídicas vislumbra para esses casos?

Danielle Cramer – Proibir os jogos eletrônicos ou o trabalho de adolescentes nos esportes eletrônicos não parece ser a melhor solução. Existe um ditado usado no direito que diz o seguinte: quando o direito ignora a realidade, a realidade ignora e atropela o direito. Se proibirmos a atividade, ela vai continuar existindo. É como o jogo do bicho.

Se a realidade é a da indústria lucrativa dos jogos eletrônicos, que fatura bilhões e que tende a se popularizar ainda mais (a estimativa é de que em 2026, somente no Brasil, a indústria dos jogos eletrônicos lucre mais de 2,6 bilhões de reais), então devemos lidar com essa realidade e contabilizá-la com o ordenamento jurídico, assegurando aos adolescentes a necessária proteção. Necessitamos deixar de lado o pacto de silêncio e a política do “não estou vendo o que está acontecendo” e fazer garantir a mínima proteção para os adolescentes.

É uma hipocrisia chamarmos as pessoas no MP e dizer que os filhos não podem trabalhar no comércio da família porque trabalho infantil é ilegal ou faz mal, e permitirmos que o trabalho infantil nas plataformas corra solto, como se não fizesse mal. Os interesses econômicos da poderosa indústria dos jogos eletrônicos não podem prevalecer sobre o interesse dos adolescentes nem comprometer o pleno desenvolvimento físico, psíquico, moral, emocional e intelectual deles.

No plano esportivo não existe uma lei específica regulamentando os direitos dos atletas praticantes de esportes eletrônicos, o que não significa que eles se encontrem num limbo jurídico. A despeito de algumas controvérsias, atualmente não há dúvida de que os jogos eletrônicos são, sim, esportes e, nessa condição, eles sujeitam seus ditames à Lei Pelé, de nº 9615/1998, à Lei Geral do Esporte nº 14 597/2023, que estabelecem normas sobre o desporto, ainda que sem mencionar especificamente os jogos eletrônicos.

Os jogos eletrônicos são esportes. Essa questão já foi discutida, com uns dizendo que eles não envolvem atividade física. O xadrez também não envolve atividade física e é um esporte. Há esportes que envolvem outro tipo de acuidade. Não há dúvida quanto a isso e aplica-se a normativa do esporte em geral e, por se tratar de adolescentes, as normas específicas que protegem e tutelam crianças e adolescentes. É importante mencionar também que o marco legal dos games, que é uma legislação mais recente (lei nº 14.852/2024), embora não regulamente as relações de trabalho dos atletas e adolescentes, tem como um dos seus princípios a proteção integral da criança e do adolescente.

IHU – Por outro lado, qual é a situação dos influenciadores digitais? Como avalia a atuação infantil nesses casos?

Danielle Cramer – Outra forma de exploração nas plataformas digitais é a dos influenciadores. Há crianças e adolescentes trabalhando nas redes, fazendo publicidade de produtos, o que é proibido no Brasil. Existem pais parando de trabalhar para ganhar dinheiro com os filhos. Crianças estão sendo privadas dos seus direitos de serem crianças, dos direitos de brincar.

Recentemente, vimos um conflito entre adolescentes e crianças que trabalham nas redes e tiveram suas vidas expostas. Algumas ganharam milhares de seguidores por conta disso. Outras perderam milhares de seguidores. Mas o fato é que são adolescentes que estão tendo a intimidade e a privacidade expostas.

Ao contrário do que acontece no mundo real, muitas vezes essas pessoas não estão na rede por necessidade econômica; é por vaidade, por ego. São filhos de famílias de classe média que estão na rede vendendo coisas, vendendo sua imagem. Nós achamos bonitinho, mas quanto desta infância não está sendo perdida com tal exposição? Esta é uma reflexão que nós, como sociedade, precisamos fazer: se o uso de telas pelas crianças faz mal, estar do outro lado da tela também me parece ser bastante nocivo.

Uma criança influenciadora foi tirada da escola porque estava sendo perseguida por fãs fanáticos. Isso é muito preocupante, muito grave e merece uma reflexão grande de nós, enquanto sociedade. Não se trata de vilanizar os pais individualmente, mas a sociedade tem que refletir e colocar limites a isso porque se trata de trabalho infantil e trabalho infantil no nosso país não é permitido.

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