26 Junho 2019
Como aquele anúncio que há tempo causou furor, Nicholas Negroponte (Nova York, 1943) veio do futuro. Não nos trouxe candura, mas, ao contrário, algumas previsões do que nos aguardava ao virar da esquina, sobretudo em matéria tecnológica. Algumas delas se cumpriram (todo o ambiente digital em que nos movemos, hoje, já sabia de cor antes que a Web fosse Web). Outras, felizmente, não. Hoje, quase 35 anos após fundar o MIT Media Lab, segue convencido que é possível continuar inovando. E veio falar disso em Madri, onde participou do fórum “Cruce de Caminos”, organizado pelo Banco Caminos e Bancofar.
A entrevista é de Inés Martín Rodrigo, publicada por ABC, 24-06-2019. A tradução é do Cepat.
Você, que esteve tantas vezes no futuro, mostra-se otimista em relação ao presente?
Sim. Visitar o futuro é como visitar um país, e, sim, me sinto muito otimista em relação ao presente. Estamos vivendo momentos muito confusos em países como os Estados Unidos, mas tecnicamente sigo otimista como sempre.
Tendo em conta essa confusão reinante em tantos lugares, quais são os desafios fundamentais que a sociedade enfrenta?
O desafio fundamental, nesse momento, é o resultado de trinta anos ao longo dos quais dissemos a nossos filhos que só deveriam se preocupar com eles mesmos. A avareza perdeu o controle e estamos pagando as consequências. Por isso, escutamos os jovens nos dizendo que deveríamos nos preocupar mais com o “nós” do que com o “eu”. O dano provocado pelo “eu” gerou coisas como Trump e o Brexit, um mundo no qual recompensamos aquelas pessoas que fazem coisas unicamente pelo seu interesse próprio e não pelo interesse geral. Mas, estamos em uma situação geral de recuperação, vamos nos recuperar.
Mas, como?
Uma das coisas que nos força a isso é a mudança climática, porque é muito maior, muito mais importante que todos nós. Note quem luta contra a mudança climática.
Os jovens, só eles.
Claro, porque são eles que a vão sofrer, eu já não estarei aqui. Não se trata apenas da voz dos jovens, mas, sim, de fazer com que as pessoas repensem o que é importante. Estou decepcionado de que tenhamos demorado tanto para nos dar conta e que tenhamos passado por um período tão longo, por uma escola de negócios tão avarenta.
Os jovens lutam pela mudança climática, enquanto Trump a nega.
Sim, mas não é necessário ser muito inteligente para perceber que Trump não acredita realmente nisso. Diz isso porque pensa que irá lhe ajudar nos negócios, mas não engana ninguém. Simplesmente, é decepcionante que existam pessoas que neguem a mudança climática e, sobretudo, que algumas dessas pessoas estejam no poder, mas isso não irá durar muito tempo.
É o que espero... Admiro sua capacidade analítica, de invenção e engenho, mas não sei se, justamente, a tecnologia que você tanto defende não está nos tornando um pouco preguiçosos do ponto de vista criativo.
Não nos torna mais preguiçosos, não. É algo que ocorreu com todas as tecnologias. Com a escrita, houve gente que pensou que ao poder escrever, já não seríamos capazes de memorizar. Com as calculadoras, pensou-se que iriam nos tornar mais débeis, porque não faríamos cálculo mental... Mas, aconteceu justamente o contrário: temos uma sociedade muito mais criativa que antes, e isso vem da capacidade de poder nos expressar de formas que antes não existiam. Há uma mudança que facilitou isso.
Mas, todas as mudanças assustam.
As mudanças não causam medo em você, estou certo.
Não, é claro que não.
É verdade que conforme vamos ficando velhos, deixamos de gostar da mudança, as pessoas se sentem mais cômodas quando as coisas não mudam. Mas, houve uma modificação em nosso ponto de vista sobre a mudança, estamos mais preparados para a mudança. Pense, por exemplo, nas uniões do mesmo sexo. Chegamos a tudo isso em apenas dez anos, em um período muito curto de tempo. Mudamos nossa perspectiva de mudança, e isso continuará.
Continuando com as mudanças, como a superabundância de informação afeta a nossa memória? Pergunto isso, porque para mim é cada vez mais difícil recordar um nome, o título de um livro, de um filme, porque sei que a internet irá me dar a resposta.
Mas, não acontece nada. O que tem de ruim nisso? A possibilidade de poder buscar algo na internet não tem nada de ruim. Eu acredito que a memorização está superestimada.
Nisso estamos de acordo.
O importante é ter o maior número de experiências possíveis, centenas delas. Antes era um grande privilégio viajar, e agora todo mundo pode fazer isso, e ter experiências inclusive sem a necessidade de viajar. Agora, vivemos um momento de consumo muito mais rápido. Hoje, em um só dia, posso fazer o que meus pais faziam multiplicado por três ou por quatro, e eram pessoas muito cultas, não se acomodavam no sofá. Agora, tudo está entrelaçado, ao alcance de sua mão, em seu telefone... Antes, todo mundo vivia no passado, era como um ovo frito, tudo estava muito separado, e já não é assim, agora está tudo misturado, como um omelete.
Como é possível compatibilizar o respeito à ética e a privacidade com a comercialização de nossos dados pessoais na internet? É possível alcançar um equilíbrio?
Veja, se você sai agora do hotel e é atropelada por um carro, vem uma ambulância e, nesse momento, você não se preocupa com seus dados pessoais. Mais que isso, o que deseja é que saibam tudo sobre você. Mas todos os seus dados precisam estar em algum lugar para que possam tirar daí a informação que necessitam. Todos comercializamos nossa informação pessoal em troca de certos serviços de qualidade.
Se alguém está há muito tempo trabalhando contigo e conquistou um grau de confiança a ponto de apenas com uma palavra sua saber ao que está se referindo, essa pessoa tem tal conhecimento a seu respeito que, caso você seja raptada, terá muita informação a seu respeito que poderá utilizar. O mundo digital é um pouco o mesmo: estamos comercializando nossos dados sabendo do que estamos fazendo, não nos enganemos.
O Gmail funciona gratuitamente porque comercializam anúncios, e você chega a esse acordo, aceita. Sendo assim, protestar é um pouco contraditório, um pouco falso, porque funcionou muito bem para nós, nos ajudou.
O interessante é que, graças a isso, você tenta viver uma vida em que não tenha nada a esconder, portanto, não é tão ruim, pois, inclusive, faz com que nos comportemos melhor. A regulamentação precisa sair de si mesmo, devemos regulamentar nós mesmos, e não é um preço muito alto a pagar.
É curioso porque Trump é um grande defensor das redes sociais, faz seu uso como microfone, especialmente o Twitter, mas se mostra muito crítico aos meios de comunicação tradicionais. São repercutidas, por exemplo, suas broncas com a CNN.
Não levo a sério Trump. Não consigo descrever a enorme vergonha que sinto por ele ser o presidente dos Estados Unidos. Faz com que Berlusconi se pareça com Winston Churchill. É incrível.
Parece que terá um segundo mandato...
Eu não estou tão certo disso... A única forma de Trump não ser reeleito é os jovens votarem. Mesmo que apenas 35% da população entre 18 e 31 anos votassem, essa porcentagem seria suficiente, porque foram os que não votaram. A única coisa que é necessário fazer é mobilizar os jovens para que votem, basta.
De fato, muitos deles estão se envolvendo na política. Veja o caso de Alexandria Ocasio-Cortez.
É fantástica! Ela é uma dessas pessoas que fazem você se sentir mais otimista. Nem Biden e nem Sanders, os mais velhos não fazem você se sentir assim.
Há alguns anos, você não se mostrava especialmente otimista em relação ao futuro da imprensa em papel. Como o vê agora, que futuro aguarda os jornalistas?
Sempre disse que a criação de palavras, de histórias, é uma das profissões mais nobres, é uma vocação, as pessoas a fazem por motivos muito nobres e eu admiro muito isso. Mas, o envio de um papel me parece que não faz sentido. A ideia de que se torne algo eletrônico muda a natureza da distribuição, agora tudo é acessível em todo o mundo.
É claro que algo mudou, mas eu sempre fui um grande admirador dos jornalistas, de todas essas pessoas capazes de digerir a informação, entendê-la, e repassá-la para uma linha editorial.
Mas, não acredita que qualquer pessoa possa ser jornalista.
Não, e você percebe rapidamente se alguém é ou não, se tem esse espírito.
Sim, basta ler certas coisas...
Sim (risos).
Nesta semana, o Facebook apresentou uma moeda própria. Pergunto-me se estamos preparados, do ponto de vista econômico e social, para o que está por vir.
Eu sou um grande defensor do bitcoin. Até agora, foi o equivalente ao ouro. Mas, não teve êxito em termos de transações, e talvez o Facebook consiga, e isso é interessante, com pouco custo ou inclusive custo zero. Por exemplo, com os micropagamentos, que nunca pudemos executar.
Exponho os jornais como exemplo: eu utilizo Flipboard, uma página web que permite a você reunir jornais que publicam histórias, mas os jornais obrigam você a fazer uma assinatura e eu não quero fazer isso. Sim, pagaria por uma história em concreto, mas não quero fazer uma assinatura. Deixe-me pagar por uma história com um micropagamento.
Talvez a moeda do Facebook nos permitirá fazer isso, e isso seria fantástico. Desse modo, jornalistas como você ou jornais como o seu poderão receber pagamentos. Não é tudo ou nada, fazer a assinatura ou não. É possível que a moeda do Facebook mude isso.
Todas as vezes que entrevisto um pensador, um filósofo, todos concordam em destacar que a desigualdade é um dos traços que melhor define a fase do capitalismo em que estamos.
Oh, é que é um capitalismo sem nenhum tipo de limite. Tendemos a pensar no capitalismo como sinônimo de democracia, e não é assim. Chegou a um ponto em que precisa mudar, e só há uma forma: com os impostos, fazendo mais pela sociedade civil. E não me refiro só aos ricos. Todo mundo precisa participar mais na sociedade civil. Não é tão difícil mudar isso. Mas, pagar impostos não é algo que seja muito popular.
E por que, se ao final é algo que impacta a sociedade?
Os Estados Unidos, e acredito que a Europa, possuem sua própria versão disto: o conceito de pagar impostos é contraditório com todo o espírito do país. Há pessoas que acreditam firmemente que não deveriam pagar impostos. Ronald Reagan e Margaret Thatcher convenceram a muitas pessoas de que o melhor governo era um governo pequeno, um não governo.
É a essência do liberalismo.
Sim, pode chegar tão longe como isso.
Mas, veja a situação na Europa, onde a extrema direita tem uma presença cada vez maior.
A extrema direita está no auge, é certo, mas nas últimas eleições europeias não subiu tanto como se esperava. Na Europa, sim, tem o problema dos refugiados, que torna as coisas mais difíceis ainda. Nos Estados Unidos não temos um problema de imigração, ainda que Trump pretenda fazer acreditar que sim. Se há algo que não temos é um problema de imigração, e a falsidade de tudo isso. O surpreendente é que pintam você como se houvesse uma guerra na fronteira sul.
Mas, olhe o que Trump conseguiu do México.
Não está tão claro que tenha conseguido algo. Mas, a ideia de utilizar taxas para negociar é terrível, é algo que vai além do ódio.
Interessa-me muito como a cultura, as humanidades, podem e devem dialogar com a tecnologia, com a ciência, e você é um bom exemplo de que esse diálogo pode ser muito frutífero. No entanto, fico desanimada em ver como as humanidades desaparecem dos planos de estudo.
Concordo com você. Todo o conceito de colégio, de aprendizagem, é preciso repensar, reconsiderar. O melhor que você pode fazer, se tem a sorte de ter pais que possam ser um exemplo, é aprender deles... A empatia não é algo que se aprende na escola, se aprende na vida.
Por que sempre precisam nos fazer escolher entre ciências e letras?
Bom, Leonardo da Vinci não teve que escolher. É uma dicotomia falsa. Por exemplo, pense na relação entre a música e as matemáticas, têm um acoplamento muito básico, muito palpável, muito natural. Eu sempre fui bom em letras e matemáticas, e decidi estudar arquitetura, porque me parecia uma boa combinação de ambas. Muitos anos depois, percebi que a combinação de ambas, das artes e as matemáticas, era a informática, e isso foi possível quando os computadores se tornaram mais visuais, porque em um dado momento não eram.
Para terminar: resta algo a inventar, senhor Negroponte?
Sim, muitas coisas. Mas, não será uma extrapolação de mais internet, mais informática, mais computadores. Será mais biológico, biologia sintética. Nós, seres humanos, temos sido capazes de fazer coisas que são cada vez menores. Antes, só a natureza podia chegar até aí: células, genes... E, de repente, podemos fazer isso, e estamos fazendo coisas que são artificiais e reais ao mesmo tempo.
Por exemplo, no MIT Media Lab nunca poderia ter imaginado que desenharíamos ratos, e agora fazemos e esses ratinhos estão correndo por aí. São reais ou artificiais? Devem ser reais, mas não existiam antes de criarmos esta engenharia, portanto, são também artificiais. Todas estas coisas emocionantes que acontecerão no futuro têm a ver com que agora somos capazes de melhorar a natureza.
Podemos fazer isso?
É claro: podemos eliminar doenças, as deficiências... A resposta é: sim, podemos. E isso é o importante, o interessante, por aí passará o futuro.
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“Pensamos no capitalismo como sinônimo de democracia, mas não é assim”. Entrevista com Nicholas Negroponte - Instituto Humanitas Unisinos - IHU