05 Agosto 2025
"Gaza é um conflito cuja assimetria militar é acompanhada de uma assimetria epistemológica e midiática, uma guerra marcada pela intensificação de tecnologias militares e por uma mutação mais profunda: a automação da letalidade", escreve Sérgio Braga, professor titular do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Paraná (UFPR), em artigo publicado por A Terra é Redonda, 04-08-2025.
O século XX assistiu à consolidação de uma nova lógica de guerra: os civis tornaram-se alvos centrais de estratégias militares voltadas à desarticulação moral, psicológica e econômica de populações consideradas hostis.
Conforme nos ensina João Quartim de Moraes em seu recente artigo “Guernica e Gaza”, publicado no site A Terra é Redonda, esse paradigma foi inaugurado de forma emblemática em Guernica, cidade basca bombardeada em 1937 durante a guerra civil espanhola, e se perpetua, com novas tecnologias e justificativas ideológicas, nas guerras contemporâneas.
Em ambos os casos, observa-se não apenas a violência direta de regimes autoritários, mas a atuação – explícita ou velada – de potências globais, em especial os Estados Unidos, cujo complexo industrial-militar exerce papel central na política externa norte-americana e na sustentação de aliados estratégicos.
E isso apesar das frequentes e recorrentes promessas de campanha de candidatos de oposição à presidência dos EUA de cercearem o poder do complexo industrial-militar e se apresentarem como “pacificadores” das guerras imperialistas ao redor do mundo.
Como bem lembrado por Quartim de Morais, em 26 de abril de 1937, a cidade de Guernica foi alvo de um intenso bombardeio aéreo conduzido pela Legião Condor, unidade alemã enviada por Adolf Hitler em apoio ao general Francisco Franco.
Esse episódio marcou uma inflexão na história da guerra: não mais a destruição de alvos militares ou infraestruturas estratégicas, mas o terror deliberado como instrumento de dominação.
O ataque matou centenas de pessoas e destruiu a cidade quase por completo. A repercussão internacional foi significativa, especialmente após a obra de Pablo Picasso eternizar o horror no célebre quadro Guernica.
A experiência de Guernica foi amplificada durante a Segunda Guerra Mundial. As campanhas de bombardeios aéreos, como as que destruíram Dresden, Hiroshima e Nagasaki, consolidaram a doutrina da “guerra total”, na qual a distinção entre combatentes e civis é deliberadamente dissolvida.
Com o fim da guerra, os EUA emergiram como a potência hegemônica global, detentores do monopólio da força nuclear e responsáveis por um crescente aparato de segurança e defesa – o chamado complexo industrial-militar.
O termo, popularizado pelo presidente Dwight D. Eisenhower em seu discurso de despedida, referia-se à aliança entre as Forças Armadas, a indústria bélica e setores políticos interessados na manutenção de um estado de guerra permanente.
Esse complexo passou a influenciar diretamente a formulação da política externa dos EUA, legitimando intervenções militares em nome da segurança nacional, da democracia ou do combate ao “comunismo”.
A Guerra do Vietnã (1955–1975) representou um marco na consolidação dessa lógica. Com o apoio da indústria armamentista e sob o pretexto da contenção do comunismo, os EUA promoveram uma das mais brutais campanhas militares da história recente. O uso de napalm, outras armas químicas e bombardeios massivos a vilarejos camponeses escancararam o descompromisso com normas internacionais de proteção aos civis.
A célebre fotografia da menina Phan Thị Kim Phúc, fugindo com o corpo em chamas após um ataque com napalm, tornou-se símbolo da crueldade do conflito e da vulnerabilidade das populações locais diante de uma máquina de guerra tecnologicamente superior.
O Vietnã não foi um caso isolado, mas expressão sistemática de uma doutrina que conjuga supremacia militar, desumanização do inimigo e indiferença ética e étnica quanto às vítimas civis.
Nas primeiras décadas do século XXI, o cerco à Faixa de Gaza e os reiterados bombardeios israelenses evidenciam a continuidade dessa lógica. A aliança estratégica entre o aparelho de vigilância e bélico norte-americano e Israel, construída desde os anos 1960, consolidou-se como uma das manifestações mais claras da influência do complexo industrial-militar na geopolítica contemporânea.
Os EUA são os principais fornecedores de armas, tecnologias de vigilância e apoio diplomático ao governo israelense, independentemente de sua linha ideológica.
Durante os conflitos em Gaza – como os de 2008-2009, 2014 e 2023 –, denúncias de crimes de guerra, uso desproporcional da força e bloqueio de ajuda humanitária tornaram-se recorrentes.
A destruição de hospitais, escolas, acampamentos de refugiados e a morte de milhares de civis, inclusive crianças, expõem a assimetria brutal entre o aparato bélico israelense e a população palestina.
A retórica da “segurança” e do “combate ao terrorismo” tem servido para legitimar práticas que violam sistematicamente o direito internacional humanitário.
Como demonstra Rashid Khalidi em The Hundred Years’ War on Palestine, os Estados Unidos desempenham um papel estrutural no apoio ao expansionismo israelense, fornecendo não apenas armamento e proteção diplomática, mas também o discurso hegemônico que normaliza a ocupação e silencia os direitos do povo palestino.
Trata-se de um conflito cuja assimetria militar é acompanhada de uma assimetria epistemológica e midiática, sustentada pelo aparato ideológico do Ocidente.
A guerra contemporânea tem sido marcada não apenas pela intensificação do uso de tecnologias militares de alta precisão, mas por uma mutação mais profunda: a automação da letalidade.
A introdução de sistemas de armamento autônomos letais (LAWs) representa não apenas um salto tecnológico, mas uma ruptura ética e política no modo como os conflitos são conduzidos.
Essas armas, operadas por sistemas algorítmicos que tomam decisões de vida ou morte sem qualquer supervisão humana direta, corporificam a lógica mais radical do complexo industrial-militar contemporâneo, agora adaptado a era digital.
O poder letal torna-se não só automatizado, mas desumanizado. Como destacam Virgílio Almeida, Ricardo Fabrino Mendonça e Fernando Filgueiras em artigo recentemente publicado, intitulado “Lethal Autonomous Weapons and the ‘Right for Machine Hesitation” (leia aqui), o elemento central dessa transformação está no fato de que as máquinas não hesitam.
Ao contrário dos humanos, que podem recuar diante da gravidade de um ato, os sistemas autônomos operam com base em respostas reflexas e protocolos otimizados, tornando a morte um evento estatístico, impessoal e distante.
Mais do que armas, esses sistemas representam um novo regime de governança da violência: um deslocamento de responsabilidade moral e legal, um rebaixamento da dignidade humana e a inauguração de uma necropolítica algorítmica.
A própria estrutura normativa dos direitos humanos, erguida após os horrores do século XX, encontra-se sob ameaça: quando máquinas determinam quem vive e quem morre, o conceito de humanidade se torna operacionalmente dispensável.
Nesse contexto, ainda segundo os autores, impõe-se uma crítica ativa à crescente normalização da violência tecnológica, e a defesa de um novo direito – o direito humano à hesitação – como princípio ético mínimo para sustentar qualquer política de segurança num mundo algoritmicamente armado.
A destruição de Guernica em 1937, os ataques com napalm no Vietnã, os bombardeios sistemáticos sobre Gaza e a ascensão das armas autônomas operadas por inteligência artificial compõem um mesmo padrão histórico: a guerra como instrumento político que recai, de modo recorrente, sobre populações civis e transforma a violência em método tecnocrático de gestão da morte.
Embora distantes no tempo e no espaço, esses episódios compartilham três elementos centrais: a desumanização do inimigo, o uso de tecnologias letais em cenários assimétricos e o papel central dos Estados Unidos e de seus aparatos de vigilância e guerra contínuas – ora como protagonistas, ora como financiadores e legitimadores estratégicos.
A atuação do complexo industrial-militar norte-americano revela-se como fator estruturante dessa dinâmica. Ao estabelecer relações de dependência armamentista com regimes aliados, os EUA garantem influência geopolítica e alimentam a continuidade da guerra como negócio.
A retórica da “liberdade”, da “segurança nacional” ou da “democracia” opera como dispositivo legitimador da barbárie, ocultando o caráter profundamente econômico e imperial das intervenções militares.
Guernica tornou-se símbolo da resistência civil frente à violência estatal. Ao prestarem homenagem ao povo palestino em 2023, os habitantes da cidade basca reafirmaram a atualidade desse símbolo.
A preservação da memória das guerras e dos genocídios praticados em nome da “liberdade” e da “democracia” funcionam como elementos indispensáveis para que a denúncia histórica e a solidariedade internacional possam fazer dobrar, aos poucos, as estruturas de poder que naturalizam o morticínio de civis e crianças inocentes em nome sabe-se lá de quais razões.[1]
[1] Este artigo foi motivado pela leitura do artigo de João Quartim de Morais condenando o genocídio praticado pelo governo de Israel, apoiado pelos EUA, a civis e crianças na faixa de Gaza. Procuramos aprofundar alguns aspectos abordados no texto, conectando-os com a questão dos novos elementos utilizados nas guerras modernas pelas tecnologias digitais sob o controle de forças imperialistas e do “Estado oculto” estadunidense.