24 Julho 2025
"Revelando a influência da religião positivista marcante no pensamento brasileiro, o tempo é visto como algo que vai avançando junto com o desenvolvimento racional do humano. O progressismo da história é a secularização do Êxodo bíblico de quem se contenta com o imanente. Apresentam-se tal como Moisés secularizado a admoestar os pobres quando caem na idolatria da alienação".
O artigo é de Wellington Teodoro da Silva.
Wellington Teodoro da Silva é graduado em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (1999), mestre (2002) e doutor (2008) em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2008); pós-doutor em História pela FAFICH / UFMG. Professor do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da PUC Minas.
O documentário “Apocalipse nos Trópicos” pareceu-nos um museu de grandes novidades. Seu valor para pensar a política e a sociedade brasileira atual está mais naquilo que podemos interpretar sobre a mentalidade que orientou a narrativa do que o conteúdo propriamente narrado. Se constitui numa manifestação que revela as ideias sobre religião de amplos segmentos da cultura, política e intelectualidade brasileira. Vemos um senso comum com verniz de razão moderna sobre a religião que é um tema de incrível complexidade e dos mais relevantes da história. Ela recebe o carimbo definitivo de grilhão da inteligência que a impede de emancipar a condição humana.
É assim, salvo algumas concessões, a saber, a Teologia da Libertação e os evangélicos que apoiaram Lula, que entraram no documentário como exceções de modo a ficar forte a ideia de que existem apenas para confirmar a velha regra. Essa ideia de religião como produto e produtora da alienação foi elaborada para caber na compreensão do humano e da história. Religião é pensada segundo o interesse de quem pensa. É como se o físico definisse, ele próprio, a velocidade da luz para caber em sua teoria.
Vale perguntar se Silas Malafaia foi protagonista porque é o tipo ideal de liderança evangélica segundo essa mentalidade. Ele não representa a complexidade dos evangélicos brasileiros. Também não representa os 30 por cento de votos que ele pensa conduzir pelo cabresto. Faltou ir para além desse líder na direção do ambiente complexo dos evangélicos e entender o que orienta seus votos. Dentre as possíveis hipóteses, podemos propor que um dos motivos centrais seja os modos como as questões de identidade, sexualidade e afetividade estejam sendo encaminhadas pelos setores das esquerdas – ou, que, pelo menos, se reconhecem como tal.
Os evangélicos possuem um valor muito precioso que é chamar o outro de irmão. Num mundo marcado pelo paroxismo individualista, formar uma rede comunitária onde o outro é visto e sentido como irmão é subversivo da ordem neoliberal; possui potência revolucionária. O campo político progressista não percebe a subversividade do termo irmão diante do poder de mando dos proprietários do capital. Por não querer saber sobre a religião, perde-se tanto o transcendente quanto uma possível chave para a mudança da sociedade. A inteligência brasileira parece imune à pedagogia da fraternidade no inferno da livre competição. Eles são reputados como alienados que é a grande idolatria do campo político progressista.
Revelando a influência da religião positivista marcante no pensamento brasileiro, o tempo é visto como algo que vai avançando junto com o desenvolvimento racional do humano. O progressismo da história é a secularização do Êxodo bíblico de quem se contenta com o imanente. Apresentam-se tal como Moisés secularizado a admoestar os pobres quando caem na idolatria da alienação.
Valeria perguntar se campo evangélico é essencialmente alienante ou de direita diante de temas econômicos, por exemplo. Não. Eles estão no Movimento dos Trabalhadores sem Terra e foram centrais nas Ligas Camponesas. Num plano histórico mais amplo, vale citar a recepção de Fidel Castro pelos membros da Igreja Batista Absínia no bairro Harlem em Nova Iorque. Ele se hospedou no Hotel Theresa que era referência para os direitos civis e para a comunidade negra norte-americana em 1960 quando fez discurso na ONU. Em 1995, ao retornar a Nova Iorque, discursou nessa Igreja para 1.600 pessoas sendo interrompido várias vezes pelos aplausos.
O documentário termina melancolicamente com a narradora dizendo que acreditava que com o tempo a humanidade não precisaria mais da religião. As revoluções teriam derrubado os reis ungidos por Deus para criar a sociedade laica onde o poder nasceria do povo. No entanto, lamenta, que ultimamente a história parece ir em outra direção. Efetivamente, fala-se muito de religião sem lhe conceder estudo detido e mais demorado. Ela e a Teologia são formuladoras da nossa episteme, segundo o modo como compreendemos Émile Durkheim sobre as noções fundamentais da ciência terem origem religiosa. Além disso, assevera que uma das ideias sobre a religião é que ela opera o sentimento do sagrado que é acrescentado ao real. Portanto, o sentimento do sagrado não nega o real, não possui uma necessária essência alienante, apenas confere um sentido maior, transcendente ao mundo das coisas objetivas.
Vale a muitos ler ou reler Thomas Hobbes e o título escolhido para sua obra: Leviatã, retirado do livro de Jó. Essa escolha, se atentarmos para o que está escrito nesse livro, quando o monstro é descrito, já vale uma excelente reflexão sobre o mais frio dos monstros frios: o Estado Nacional Moderno. Também seria útil pensar sobre a religião civil de Rousseau e os estudos sobre religião civil. O capitalismo também tem sido pesquisado como problema religioso a partir de escritos de Walter Benjamin. O que pensar sobre o messianismo proletário do marxismo do século XX? Também vale a asserção de Marx sobre o fetiche (feitiço) da mercadoria e de que ela é cheia de sutilezas metafísicas e teológicas. As matrizes do pensamento monoteísta estão presentes nos fundamentos de nossa Constituição no conceito de soberania, poder superior que não se relativiza, e no de pessoa humana. Pessoa é conceito teológico formulado, em sua origem, para tratar de Deus. No mundo cristão, ele migra para o humano. Temos, portanto, as pessoas divinas e a pessoa humana.
A ideia do poder nascendo do povo que vemos na narração do documentário também tem matriz teológica porque supõe que o poder deve ter origem em algum lugar que possa, de maneira real, instituí-lo legitima e irresistivelmente. A categoria povo se transforma numa espécie de deus imanente. A nossa constituição encontrou a formulação centrada na palavra emanar: o poder emana do povo. Essa expressão tem grande poder retórico e não é livre da religião por vir do Mana que é o núcleo de uma determinada tradição mágica. Ela não figura como um ato racional de escolha e transmissão de poder, mas um sequestro hermenêutico feito de uma cosmovisão mágica para o texto constitucional. Nossa Constituição está fundamentada em uma teologia política.
A religião tem sido estudada mais detidamente pela universidade brasileira a partir da primeira década do atual século. As Ciências da Religião têm se destacado no cenário acadêmico com aportes relevantes sobre ela e suas diversas relações incluindo a política. O atual momento político pede que esse ambiente de pesquisa seja mais demandado para que as ações sejam melhor orientadas. Temos grandes pesquisadores sobre os evangélicos. Os especialistas devem ser ouvidos para se evitar as generalidades do senso comum.
É necessário seguir falando muito sobre a religião, mas é necessário estudar para saber sobre o que se fala. Já está constrangedor.