21 Julho 2025
No documentário Apocalipse nos Trópicos, a diretora Petra Costa lança luz sobre uma das mudanças mais profundas e silenciosas do panorama político-religioso brasileiro. A substituição progressiva da teologia da libertação por uma teologia de orientação conservadora, importada dos Estados Unidos, que ficou conhecida como teologia do domínio.
O comentário é de Gustavo Tapioca, publicado por Jornal GGN, 20-07-2025.
Gustavo Tapioca é jornalista formado pela UFBa e MA pela Universidade de Wisconsin. Ex-diretor de Redação do Jornal da Bahia. Assessor de Comunicação da Telebrás, Oficial de Comunicação do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e do IICA/OEA. Autor de Meninos do Rio Vermelho, publicado pela Fundação Jorge Amado.
Longe de ser apenas uma transformação interna das igrejas, esse processo representa uma inflexão geopolítica de peso, que marca o abandono de um projeto de evangelho comprometido com a organização popular, em favor de um cristianismo de guerra cultural, moralismo punitivo e busca desenfreada por poder.
Nascida na América Latina no final dos anos 1960, a teologia da libertação foi uma resposta teológica e pastoral à realidade de opressão, miséria e desigualdade que assolava os povos latino-americanos. Inspirada por uma leitura engajada do Evangelho e pelas análises sociais progressistas, essa corrente propôs uma nova forma de vivenciar o cristianismo ao lado dos que lutavam contra os mecanismos estruturais de exclusão.
No Brasil, a teologia da libertação ganhou corpo nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), articuladas dentro da Igreja Católica sob a liderança de figuras como Dom Pedro Casaldáliga, Dom Hélder Câmara, Dom Paulo Evaristo Arns, Frei Betto, Leonardo Boff, entre outros. Essas comunidades criaram redes de solidariedade, organização popular e resistência durante a ditadura militar. Foram uma força viva de educação popular, mobilização social e formação política dos setores marginalizados.
Diferentemente da religiosidade de templo e hierarquia, as CEBs encarnavam um cristianismo comunitário, horizontal, profundamente ligado às lutas concretas do povo. A fé era indissociável da justiça social. O Evangelho não era só promessa de salvação futura, mas exigência de transformação do presente.
O impacto político da teologia da libertação não passou despercebido. Nos bastidores da Guerra Fria, a Igreja latino-americana progressista começou a ser vista por Washington como um obstáculo geopolítico. Sob o governo Reagan, os Estados Unidos passaram a investir pesadamente na contenção dessa teologia, apoiando o avanço de igrejas evangélicas neopentecostais, majoritariamente vindas dos EUA, com uma nova doutrina: a teologia do domínio (ou da prosperidade).
A teologia do domínio se opunha frontalmente à libertação dos pobres. Em vez de denunciar estruturas injustas, ela pregava que a fé leva ao sucesso individual, que a pobreza é sinal de fracasso espiritual e que os “fiéis” devem conquistar todas as esferas do poder — governo, mídia, economia, educação, família e cultura — para “restaurar” a sociedade cristã. Em suma, uma doutrina de dominação política mascarada de espiritualidade.
A teologia do domínio chegou ao Brasil por meio de igrejas como a Universal do Reino de Deus e outras denominações pentecostais e neopentecostais, rapidamente organizadas em redes nacionais com suporte estrangeiro. Ao contrário da organização comunitária da teologia da libertação, as novas igrejas criaram impérios midiáticos, bancadas parlamentares e alianças com o poder econômico e militar.
A partir dos anos 1990, a teologia da libertação começou a perder espaço tanto na Igreja quanto na esfera pública. Enfrentou repressão interna (com a intervenção do Vaticano, sobretudo sob João Paulo II e Bento XVI), abandono institucional, e uma campanha difamatória que a rotulava de “comunista”, “herética” ou “inimiga da fé”.
Ao mesmo tempo, a ascensão das igrejas evangélicas conservadoras conquistou corações, votos e poder político. O moralismo sexual, o anti-intelectualismo, a demonização da esquerda e o culto à obediência foram alçados ao centro do discurso religioso popular. O neopentecostalismo tornou-se um dos principais pilares do bolsonarismo e da extrema direita, fornecendo base ideológica e militância ativa.
Enquanto isso, os ideais da teologia da libertação foram confinados às margens, ainda vivos em algumas pastorais sociais, movimentos de base e iniciativas progressistas dentro e fora da Igreja, mas sem o mesmo protagonismo de décadas anteriores.
O que Petra Costa revela em Apocalipse nos Trópicos é que essa mudança religiosa não é um mero detalhe cultural. Ela está no cerne do projeto de dominação neoliberal e autoritária que se espalhou pelo Brasil e pela América Latina. A derrota da teologia da libertação é, em parte, a derrota de uma utopia democrática, solidária, plural — e a ascensão de uma lógica de poder que mistura mercado, fé e repressão.
Mas a história não está encerrada. Diante de um mundo em colapso social, ambiental e espiritual, a mensagem da teologia da libertação volta a fazer sentido. Em tempos de destruição e apatia, ela nos recorda que a fé pode ser força de esperança ativa, de luta por justiça e de reinvenção da convivência humana. Sua voz persiste, ainda que abafada, como semente em solo seco. E talvez, como ensinam os profetas, o tempo da colheita volte a chegar.