17 Janeiro 2024
"Em 135 anos de República temos uma média de um golpe ou tentativa a cada 8,4 anos! O pessimismo nos levaria a propor que essa é uma necessidade de nossa história. Jamais conseguiremos produzir uma nação democrática com esse arrasto de nosso passado no presente. Por sua vez, o otimismo pode nos fazer compreender que se um país resiste a tantos atentados à sua democracia sem se fragmentar, inclusive territorialmente, é porque temos uma resiliência nacional singular entre as nações do mundo".
O artigo é de Wellington Teodoro da Silva, professor do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, em artigo enviado ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
A tentativa de golpe de Estado acontecida no dia 8 de janeiro de 2023 não foi um raio no céu azul de nossa República. O céu político de nossa nação sempre esteve nublado e sujeito a fortes pancadas. A intentona bolsonarista não conseguiu o objetivo planejado. Entretanto, vale fixar os olhos nesse ocorrido e analisa-lo em sua complexidade fugindo de lugares comuns tão ao gosto da mentalidade de militância lacradora do tempo atual. Esse evento é produto de nossa história imediata e deve ser compreendido dentro do processo que o produziu.
A defesa da ditadura com suas torturas e mortes era rotina no percurso do deputado Jair Bolsonaro que tinha em seu gabinete na Câmara dos Deputados as fotos dos presidentes ditadores do período de 1964 a 1985; a Casa da Democracia permitiu. Dentre seus recorrentes atos antidemocráticos, disse que o erro da ditadura foi torturar e não matar; a Casa da Democracia permitiu. No governo de FHC, afirmou que o Presidente da República deveria ser fuzilado; a Casa da Democracia permitiu. Afirmou ser a favor da tortura; a Casa da Democracia permitiu. Votou a favor do impedimento de Dilma Rousseff fazendo homenagem ao coronel Brilhante Ustra, chefe do DOI-CODI. Segundo a Comissão Nacional da Verdade, sob o comando desse militar, nesse órgão foram mortos e desaparecidos pelo menos 50 pessoas além de um sem número de torturados; a Casa da Democracia permitiu. Eleito presidente da República, Jair Bolsonaro agiu para corroer a democracia a partir de dentro do poder executivo. É um estrondoso absurdo que as instituições republicanas acolham alguém que combate a democracia; apoie ditadores e ditaduras, além de defender a tortura e o assassinato político.
O 8 de janeiro é produto desse processo recente. Contudo, ele não é o fundador dessa cultura autoritária, personalista e ditatorial. Trata-se de mais um de seus produtos; mais um fato recorrente em nosso mandonismo. Recuando até o processo de colonização, como fez Oliveira Vianna, chegamos ao estabelecimento de um tipo diferente de povoamento. Nossa colonização foi feita a partir de clãs familiares isolados onde o chefe da família exercia mando pessoal. Eram donos das coisas e das gentes. A colônia repelia a noção de comunidade costumeira nos povoamentos da Europa; América do Norte e na América Espanhola. Talvez ainda estejamos pagando por esse pecado original de nossa nação.
Não experimentamos um momento fundante capaz de cavar sulcos profundos no nosso espírito de modos a formar uma subjetividade comum e pedagógica para a convivência democrática. Os engenhos e fazendas de café no Brasil eram autarquias onde cada família era uma unidade autônoma de individualismo familiar de tipo senhorial. Nossas matrizes, possuem raízes no individualismo de pessoas ou unidades de produção isoladas em clãs.
Oliveira Vianna também afirma que nosso período imperial foi destituído do fértil húmus da comunidade nacional; não conheceu o sentimento comunitário. Nosso próprio Estado Nacional se organizou de modo caricato por não ter lastro em um espírito de nação em um território imenso com ocupações dispersas. Ele não foi precedido pela experiência da cultura nacional formuladora de uma subjetividade comum. Ao contrário, ele tentou criar a mentalidade nacional reproduzindo experiências europeias elaboradas por um percurso histórico distinto do nosso. A tentativa de reprodução do modelo europeu foi nossa trágica caricatura.
Após o golpe que instaurou a República, mudamos nossa caricatura para o federalismo norte americano. Nesse atual percurso político, inaugurado por um golpe, seguimos de golpe em golpe e suas tentativas até o tempo presente. Eles são nossa maldita recorrência e isso é uma realidade que temos que enfrentar e compreender para, enfim, superar.
Produzimos em nossa nação pelo menos 16 atos, vitoriosos ou não, realizados ao longo de 135 anos de República para os quais a palavra golpe se acomoda confortavelmente. Entende-se aqui como golpe de Estado tanto o modelo clássico de 1964, onde há clara desobediência constitucional e da legalidade prevista, quanto aqueles que possam manter um processo jurídico e parlamentar vazio de conteúdo e espírito democrático como aconteceu no impedimento de Dilma Rousseff. Houve golpe até mesmo na Ditadura Militar na recusa feita pelos militares de o vice-presidente Pedro Aleixo assumir a presidência por ocasião do adoecimento do ditador Costa e Silva.
A palavra golpe se acomoda bem nos seguintes eventos:
1. a proclamação da república em 1889;
2. a revolução de 1930;
3. o golpe do Estado Novo em 1937;
4. a deposição de Vargas em 1945;
5. a tentativa de golpe impedida pelo suicídio de Vargas em 1954;
6. tentativa de golpe contra posse de Juscelino Kubitschek 1954;
7. “Golpe preventivo” liderado pelo Marechal Lott em 1954 que permitiu a posse de JK em 1955;
8. tentativa de golpe em Jacareacanga em 1956;
9. tentativa de golpe em Aragarças em 1959;
10. o golpe do parlamentarismo em 1961;
11. golpe em 1964;
12. golpe contra Pedro Aleixo por ocasião do adoecimento de Costa e Silva em 1969;
13. operação de Geisel para demitir Silvio Frota que foi impossibilitado de reagir com um golpe dentro da ditadura em 1977;
14. Impeachment de Dilma Rousseff em 2016;
15. prisão e negação de habeas corpus para Lula em 2018;
16. 08 de janeiro de 2023.
A intentona do 8 de janeiro de 2023 não foi um raio em um céu azul. Ela é a continuidade de uma rotina política assentada na mentalidade autoritária e personalista que recusa os movimentos da democracia de ampliar direitos. Desse modo, vale perguntar sobre o que os conservadores querem conservar na nossa política. Nossa tradição política deve ser superada no sentido do rompimento completo e em profundidade do passado autoritário.
Importante dizer que o personalismo não é uma peçonha apenas nos setores das chamadas direitas ou extrema direita. No ambiente das esquerdas ele viceja fortemente. Não podemos cair no truísmo de pensar que no campo político das esquerdas, seja lá o que isso signifique hoje, existem donzelas puras e virgemente encasteladas no alto de uma torre. Efetivamente, que se registre com tintas fortes que não há simetria entre esses dois setores. As direitas são hegemônicas nos processos de golpe de nossa República e revelaram profundo desprezo pela vida humana por meio dos assassínios políticos e torturas. Elas criminalizaram a política e a solidariedade. No entanto, quanto tratamos do problema do personalismo, direitas e esquerdas são os dois extremos da mesma ferradura.
Em 135 anos de República temos uma média de um golpe ou tentativa a cada 8,4 anos! O pessimismo nos levaria a propor que essa é uma necessidade de nossa história. Jamais conseguiremos produzir uma nação democrática com esse arrasto de nosso passado no presente. Por sua vez, o otimismo pode nos fazer compreender que se um país resiste a tantos atentados à sua democracia sem se fragmentar, inclusive territorialmente, é porque temos uma resiliência nacional singular entre as nações do mundo. Resta-nos fazer correções de rota e esperar que a democracia cumpra seu trabalho pedagógico. Em qual desses dois lugares colocaremos nosso espírito e inteligência? Convenhamos que os dois são razoáveis. Devemos promover o encontro dialético de ambos, pessimismo e otimismo, de modos a produzir uma síntese, um terceiro ato, consciente de nossas feridas e de suas curas. A partir de nossas tragédias, por causa delas e nelas, temos condição de ser a Nova Roma formulada por Darcy Ribeiro; homem que se orgulhou de suas derrotas.
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8 de janeiro: um raio num céu azul? Artigo de Wellington Teodoro da Silva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU