09 Julho 2025
Setores econômicos defendem a dragagem como ação preventiva contra novas inundações, mas comunidade científica afirma que medida não é eficaz e pode trazer uma série de impactos negativos
A reportagem é de Tiago Medina, publicada por Matinal, 08-07-2025.
O governo do Rio Grande do Sul vai gastar R$ 10 milhões em um levantamento batimétrico e topográfico para conhecer a situação do relevo do leito de grandes rios do estado. Parte do Eixo 2 do Programa Desassorear, a iniciativa deve guiar a futura dragagem desses rios, uma medida defendida por entidades da indústria, comércio e agricultura e prevista no plano anunciado pelo governador Eduardo Leite (PSD). Cientistas, no entanto, alertam que o desassoreamento de grandes rios não terá impactos contra novas inundações e pode agravar as cheias em Porto Alegre.
“A gente poderia alcançar uma situação de uma cheia de 3 metros virando uma cheia de 3,5 metros na capital”, afirmou Fernando Mainardi Fan, professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS. Autor de um artigo sobre possíveis consequências de mudanças nos rios em busca de soluções rápidas, ele é um dos pesquisadores que se manifestaram nos últimos dias sobre o plano de desassoreamento, recomendando cautela e mais estudos. “Não está se resolvendo o problema, apenas empurrando rio abaixo,” disse em entrevista à Matinal.
Além do IPH, o Programa de Gestão Ambiental Portuária do Porto de Porto Alegre e o próprio Comitê Científico do Governo do Estado indicam que o investimento pode ser dinheiro jogado fora, porque as dragagens para desassoreamento não constituem soluções únicas e suficientes para evitar que volumes extremos de precipitação gerem inundações e enxurradas. “Não há garantia de efetividade da dragagem na redução dos impactos dos eventos climáticos extremos”, conclui a prévia de uma nota técnica do comitê, à qual a Matinal teve acesso. Conforme a Secretaria de Inovação, Ciência e Tecnologia, o documento oficial deve ser divulgado no próximo fim desta semana.
O governo estadual dividiu o Programa de Desassoreamento do Rio Grande do Sul – Desassorear RS – em dois eixos. O eixo 1, para recursos hídricos de pequeno porte, já está em curso, com R$ 54 milhões gastos até o momento para desassoreamento e limpeza de arroios, canais de drenagem e sistemas pluviais de municípios afetados pelas cheias.
O eixo 2, para grandes rios, continua sendo formulado, com foco em quatro grupos: a bacia do Taquari-Antas, o rio Jacuí, o Guaíba e o bloco metropolitano formado pelos rios Caí, Sinos e Gravataí. Para cada um deles, o Piratini gastará cerca de R$ 2,5 milhões em estudos prestes a serem iniciados, com duração de seis meses.
Após a conclusão dos levantamentos batimétrico e topográfico, segundo a Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema), outras empresas serão contratadas para realizar a análise dos dados e apontar se há ou não necessidade de desassoreamento. Ou seja, qualquer trabalho nos rios do eixo 2 será realizado apenas a partir de 2026.
De acordo com o governo do estado, dragas estão em operação no Guaíba atualmente para garantir a profundidade do canal e permitir a navegabilidade. Os levantamentos que serão realizados, porém, vão avaliar a possibilidade de desassorear todo o leito do Guaíba, não apenas os locais onde há navegação.
As federações estaduais de indústria (Fiergs), comércio e serviços (Fecomércio-RS) e da agricultura (Farsul) cobram pressa do governo Leite. Elas apresentaram no dia 27 de junho, de forma conjunta, um manifesto defendendo a “adoção imediata de uma política estadual de desassoreamento sistemático e permanente dos rios e canais”. Também cobraram a construção e manutenção contínua de sistemas de proteção contra cheias. O material considera o desassoreamento “parte essencial de qualquer estratégia séria e integrada de adaptação e prevenção”.
As federações cobram ainda a inclusão do desassoreamento como política pública permanente e “medidas administrativas que acelerem todas as etapas burocráticas, para que as obras comecem sem mais delongas”. Nesta quarta, o assunto deve ser uma das pautas do evento Tá na Mesa, realizado pela Federasul, que terá como tema “Empecilhos às obras de proteção a enchentes”.
Na última quinta, por meio de uma nota técnica, pesquisadores do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS e do Programa de Gestão Ambiental Portuária do Porto de Porto Alegre desaconselham ações imediatas de desassoreamento. A comunidade científica diz ser necessária a realização de estudos complementares para uma avaliação mais completa das mudanças nos leitos.
O estudo sustenta que a atual enchente do Guaíba teve patamares semelhantes à de 2023 e que não há evidências de que um assoreamento generalizado em rios como Jacuí e Taquari tenham provocado elevação adicional ao nível da cheia. “Os valores médios de chuva em 2025 ficaram em torno de 252 mm, com picos próximos de 400 mm. Esses volumes elevaram o nível do Guaíba até 3,01 metros no Cais Mauá (armazém C6), em 25 de junho. Esses valores são parecidos com os de setembro de 2023, quando a média de chuva foi de 262 mm, com picos de 400 mm, e o Guaíba atingiu 3,18 metros no mesmo local”, apontam os cientistas.
“A chuva de 2025 não foi muito inferior à de outros anos recentes e os níveis elevados no Guaíba não podem ser associados ao efeito de assoreamento. As chuvas médias e os níveis observados são compatíveis com o comportamento histórico das cheias na bacia do Guaíba”, conclui a nota técnica, que foi detalhada ao Comitê Científico de Adaptação e Resiliência Climática do Plano Rio Grande em uma reunião na última quinta.
Fernando Mainardi Fan elencou três riscos que um procedimento deste porte pode gerar no caso da falta de estudos: o solapamento de margens; a aceleração do fluxo da água; e uma falsa sensação de segurança da população. No cenário de aceleração da água, caso trabalhos de dragagens fossem feitos em afluentes do Guaíba, as cheias em Porto Alegre seriam ainda maiores, segundo ele.
Fan também pontuou que os custos de trabalhos deste tipo são elevados “Se olhar o valor que o governo já aportou é possível fazer um cálculo que a retirada de cada metro cúbico custe entre R$ 40 e R$ 45. E isso considerando que o sedimento não é nem removido do rio, apenas deixado de lado. Uma dragagem que removeria o volume de dentro do rio, precisaria ter um gasto ainda maior de transporte deste sedimento para outro lugar”, afirmou. “Esse custo é um valor bastante alto.”
Ao mesmo tempo, gastos com a dragagem podem ser cíclicos, à medida que pode haver a necessidade de que seja refeita. Por conta disso, segundo ele, especialistas em hidrologia não costumam sugerir ações deste porte. “É algo com pouco impacto”, disse. “Se eu pegar esse dinheiro e fizer um dique, o benefício pode ser maior. Tem que comparar a solução da dragagem com outras soluções”, recomendou.
O pesquisador ainda acrescentou a questão ambiental de um trabalho deste porte: “Alteraria os habitats que estão dentro do rio. Com certeza haveria um impacto muito grande no meio aquático”, comentou, antes de concluir: “As coisas devem ser feitas com projeto, senão vamos acabar tomando decisões ruins, que protegem menos”.
Na semana passada, a Matinal teve acesso a uma primeira versão de nota técnica do Comitê Científico de Adaptação e Resiliência Climática, ligado ao governo do estado, sobre a estratégia de dragagem. O documento aborda o caso do Guaíba, considerado pelo grupo “um corpo hídrico raso e extenso”. Em razão disso, o custo para ações efetivas seria alto, além de demandar trabalhos contínuos para se alcançar resultado, em razão das influências dos afluentes: “Para se obter reduções mínimas no nível d’água por dragagem extensiva, seriam necessários volumes extremamente elevados. Por exemplo, reduzir em apenas 10 cm o nível implicaria na remoção de cerca de 50 milhões de metros cúbicos de sedimentos, demandando maquinário, tempo e custos enormes, resultando em um rebaixamento ínfimo comparado às elevações observadas nas cheias”, explica o texto, que ressalta as chances de um potencial estrago do trabalho a depender dos rios que fazem conexão com o Guaíba: “Adicionalmente, o Lago Guaíba recebe altas cargas sedimentares de seus afluentes, o que levaria a um rápido reassoreamento, exigindo intervenções constantes”.
O texto ainda é debatido internamente no comitê.