05 Julho 2025
Uma pesquisa calcula que a decisão de Trump de desmantelar a ajuda humanitária pode custar a vida de 14 milhões de pessoas. O relatório, que contou com a participação do Instituto de Saúde Global de Barcelona (ISGlobal), alerta para o impacto que os cortes na USAID podem ter nos programas de saúde global até 2030.
A reportagem é de Soraya Aybar Laafou, publicada por El Salto, 02-07-2025.
Uma decisão política tomada a mais de 10 mil quilômetros de distância pode custar a vida de mais de 14 milhões de pessoas. É o que alerta um novo estudo publicado na revista The Lancet, que calcula o impacto potencial do corte de 83% nos programas globais de saúde dos Estados Unidos. A maior parte desse financiamento é canalizada através da USAID, a agência de cooperação internacional norte-americana, cujo futuro está por um fio após as tentativas de desmantelamento por parte da Administração de Donald Trump.
Segundo as projeções do estudo – no qual participaram o Instituto de Saúde Global de Barcelona (ISGlobal), juntamente com a Universidade Federal da Bahia, a Universidade da Califórnia em Los Angeles e o Centro de Pesquisa em Saúde de Manhiça, entre outros – se esses cortes forem mantidos até 2030, ocorrerão 14 milhões de mortes adicionais em países de baixa e média renda, incluindo mais de 4,5 milhões de mortes infantis. O relatório insiste que a grande maioria dessas perdas seria completamente evitável.
"Não se trata de uma decisão técnica nem orçamentária: é puramente ideológica", afirma Gonzalo Fanjul, pesquisador especializado em saúde global e políticas de cooperação e diretor de análise e desenvolvimento no ISGlobal. "Não há evidências que demonstrem que a ajuda tenha sido ineficaz ou corrupta. Cortar a cooperação torna-se um objetivo fácil para administrações com uma agenda nacionalista e insolidária", explica ao elDiario.es.
Entre 2001 e 2021, a ajuda internacional em saúde canalizada através da USAID contribuiu para evitar 91 milhões de mortes, das quais quase 30 milhões foram crianças menores de cinco anos. Essas conquistas incluem avanços cruciais na luta contra o HIV, malária, tuberculose, doenças tropicais negligenciadas e na saúde materna e infantil. O estudo demonstra que a cooperação americana tem sido altamente eficaz. Reduziu as mortes por HIV em 74%, por malária em 53% e por doenças tropicais negligenciadas em 51%.
Além disso, o relatório aponta que a África Subsaariana seria a região mais atingida pela retirada dos fundos. Alguns países como Malauí, Moçambique, Etiópia, Uganda ou Zâmbia dependem em grande parte do financiamento externo para sustentar seus sistemas de saúde. Alguns programas-chave, como o fornecimento de vacinas infantis, a distribuição de mosquiteiros, o acesso a contraceptivos e a atenção a gestações e partos, poderiam ser paralisados.
"Isso vai gerar um terremoto absoluto para todo o sistema de assistência em saúde. Não estamos falando apenas de doenças específicas, mas do colapso de infraestruturas críticas, do desmantelamento de sistemas que levaram décadas para serem construídos", adverte Fanjul. "Três décadas de progresso podem ir por água abaixo em questão de poucos anos".
A malária é um caso pragmático. Em 2025, a Iniciativa Presidencial contra a Malária (PMI) conseguiu evitar 13 milhões de infecções e mais de 100 mil mortes em países africanos. Esse programa está entre os que desapareceriam quase por completo se a absorção da USAID pelo Departamento de Estado for confirmada.
Na África do Sul, o país com a maior taxa de prevalência de HIV no mundo, os cortes da USAID já estão tendo efeitos devastadores: cerca de 89% dos contratos vinculados à luta contra a doença foram cancelados, afetando serviços de diagnóstico, tratamento e prevenção. O fechamento de clínicas comunitárias e a suspensão de programas-chave como o Plano de Emergência do presidente dos Estados Unidos para o Alívio da AIDS (PEPFAR) poderiam provocar até 65 mil mortes adicionais e mais de 150 mil novas infecções antes de 2028, segundo estimativas do próprio estudo. Além disso, 39 centros de pesquisa paralisaram ensaios clínicos cruciais por falta de fundos.
A proposta de corte vem do Congresso americano e tem sido impulsionada principalmente por setores conservadores alinhados com a agenda do presidente Donald Trump. Em março de 2025, o secretário de Estado, Marco Rubio, defendeu publicamente o fechamento de programas que "não se alinham com os interesses estratégicos dos Estados Unidos". No entanto, o relatório do The Lancet e a comunidade científica internacional coincidem que o impacto global é devastador e desproporcional.
"Estamos diante de um retrocesso histórico na cooperação internacional", lamenta Fanjul. "É o fim de uma etapa iniciada após a Segunda Guerra Mundial, quando os países ricos estabeleceram uma arquitetura de solidariedade que, com todos os seus defeitos, salvou milhões de vidas. O que está sendo feito agora não é apenas dar um passo atrás: é destruir os fundamentos do sistema como o conhecíamos", insiste.
O relatório aponta que um investimento médio de 64 dólares anuais por cidadão americano foi suficiente para sustentar esses programas e alcançar os avanços. Um investimento mínimo evitou milhões de mortes e sua retirada causará um dano irreversível: "Estamos validando debates sobre 5% do PIB para defesa sem ter resolvido questões básicas sobre a saúde global. É uma clara amostra de prioridades desalinhadas com os direitos humanos", denuncia Fanjul.
Diante desse cenário, a grande pergunta é se existe algum ator capaz de compensar o colapso financeiro que os cortes da USAID provocarão. Embora países como a Espanha tenham anunciado um aumento em sua cooperação internacional, seu volume de ajuda ainda está muito aquém do que Estados Unidos, Reino Unido ou França cortaram. "Dentro da escassa margem fiscal, mesmo no melhor dos casos, a ajuda espanhola ainda está muito abaixo do que Reino Unido, Alemanha ou França investem", adverte Fanjul.
A chave, segundo o pesquisador, está em uma redefinição urgente e profunda do sistema multilateral de ajuda, especialmente em saúde: reduzir a intermediação, estabelecer mecanismos mais ágeis de financiamento direto e apostar em modelos de cooperação centrados em resultados e controle local. "É preciso repensar a arquitetura, não destruí-la. É hora de definir um novo marco de cooperação mais eficaz, mais transparente e justo. Mas também é preciso traçar linhas vermelhas, denunciar e exigir responsabilidade de quem toma decisões que custam vidas", conclui.