Tarde demais para Deus? Artigo de José Bautista

Foto: Marc-Olivier Jodoin/Unsplash

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02 Julho 2025

  • Esta reflexão visa abrir uma janela, deixar a luz entrar e permitir que aqueles que acompanham as vocações ouçam com novos ouvidos.

  • Deus continua chamando. Às vezes, Ele faz isso à tarde. Não porque esteja atrasado, mas porque o coração se abre nesse momento.

O artigo é de José Bautista, publicado por Religión Digital, 29-06-2025.

José Bautista é filósofo e teólogo leigo. Sua reflexão nasce da intersecção entre a experiência pessoal e uma perspectiva contemplativa sobre a vocação, o tempo e o chamado de Deus. Da fronteira entre o vivido e o sonhado, ele escreve para demonstrar que a graça nunca chega tarde.

Eis o artigo.

Ele também vós para a minha vinha” (Mt 20,4), Quando Deus chama, Ele o faz com delicadeza. E o faz a qualquer hora do dia.

Introdução

Algumas vozes não se apagam com o tempo. Pelo contrário, tornam-se mais claras. Este é o chamado de Deus: ele não conhece pressa, nem responde a horários. Ele vem quando quer, para quem quer e no momento exato em que a alma está pronta para ouvir.

Esta reflexão brota de dentro, não da análise ou da teoria. É o eco sereno de uma experiência pessoal: a de alguém que caminhou muito, amou, perdeu, procurou... e, em meio ao silêncio, sentiu uma voz que não se impõe, mas insiste com amor.

E, no entanto, quando se bate em algumas portas dentro da Igreja, descobre-se que há limites que não se encontram no Evangelho: a idade. Alguns caminhos são cautelosamente fechados, não por falta de fé, mas por estruturas projetadas para outros tempos.

Este texto não pretende ser uma reclamação, mas sim uma oração. Um convite à escuta. Um sussurro que pede para ser acolhido no discernimento eclesial.

1. A voz de Deus não tem idade

A Bíblia está repleta de histórias em que a vocação surge na maturidade. Abraão recebe a promessa quando já não espera mais filhos. Moisés é enviado para libertar seu povo após anos no deserto. Pedro e André não eram adolescentes quando deixaram suas redes para seguir Jesus.

Na história da Igreja, acontece o mesmo: Santo Inácio de Loyola, ferido em batalha e com o coração partido, ouve o chamado aos trinta anos. Camilo de Lellis encontra Deus após uma juventude errante. Santa Ângela de Mérici funda uma comunidade em seus últimos anos. A vocação não é um privilégio da juventude. É um dom de Deus.

O Concílio Vaticano II, em Optatam Totius, afirma que a formação deve adaptar-se aos homens e aos tempos. E a Pastores Dabo Vobis (João Paulo II) nos lembra que a vocação exige acompanhamento em todas as fases da vida.

2. Limites nem sempre visíveis

Com compreensão e respeito, é justo reconhecer que muitas instituições estabeleceram critérios de idade com boas intenções: para garantir a duração do serviço, facilitar o treinamento e prover saúde física ou comunitária.

No entanto, esses filtros práticos, se não forem acompanhados por um profundo discernimento espiritual, podem bloquear o caminho para os verdadeiros chamados. A lógica administrativa, por mais compreensível que seja, jamais deve abafar a lógica da graça.

Vita Consecrata (1996) nos convida a acolher as vocações com fé e abertura. Porque a Igreja não é uma empresa que recruta profissionais. Ela é mãe, e mães não perguntam a idade de um coração que chega em busca de um lar.

3. O que eu experimentei

Eu poderia citar as experiências de outros. Mas esta é uma realidade que não me contaram: eu a vivi. O chamado não veio cedo. Veio na encruzilhada, em oração silenciosa, em meio a feridas que se transformaram em luz.

E com esse "sim" que brota da alma, bati em portas com esperança. Algumas se fecharam educadamente, mas com firmeza. Não por causa da minha fé, não por causa do meu desejo, mas por causa da minha idade. E eu entendo. Mas também compartilho, não para repreender, mas para plantar uma pergunta: e se Deus bater à noite?

4. Vocações adultas: um sinal dos nossos tempos

De acordo com o Centro de Pesquisa Aplicada no Apostolado (Cara), mais de 26% dos seminaristas nos EUA começaram sua jornada vocacional após os 30 anos. Comunidades como os beneditinos de Núrsia e os dominicanos na França têm acolhido vocações adultas com cada vez mais abertura.

São homens e mulheres que não vêm do entusiasmo juvenil, mas do deserto e do fogo. Vocações temperadas pela vida, que descobriram Deus como um destino inesperado. Não é este um sinal dos tempos?

5. Objeções compreensíveis, respostas possíveis

E se não se adaptarem à vida comunitária? A formação serve para o discernimento. A maturidade muitas vezes promove a convivência, a humildade e a escuta. E se o seu tempo de serviço for curto? Fidelidade não se mede em anos. Uma alma acesa por um ano pode acender muitas outras para sempre. E se uma vocação nasce em meio a uma crise? Deus também fala através da dor. O importante é discernir, não descartar.

6. Francisco e o chamado que nunca envelhece

O Papa Francisco insiste que “a vocação é uma jornada que dura a vida toda”. Em mensagens vocacionais recentes, ele afirmou: “Todos somos chamados. Ninguém é jovem ou velho demais para Deus”.

E pediu à Igreja que não tenha medo de chamados que chegam tarde demais. Que não faça ouvidos moucos ao Espírito por medo ou hábito. Que a acolha como mãe e como lar.

7. Caminhos possíveis

- Itinerários pastorais para vocações adultas. - Comunidades abertas ao discernimento sem filtros cronológicos. - Espaços para consagração leiga, oblaturas ou programas terciários. - Revisar caridosamente os critérios de admissão, colocando a verdade do chamado no centro.

Conclusão

Esta reflexão não pretende mudar regras ou propor soluções mágicas. Visa simplesmente abrir uma janela. Deixar a luz entrar. E permitir que aqueles que acompanham as vocações ouçam com novos ouvidos. Deus continua chamando. Às vezes, Ele faz isso à tarde. Não porque esteja atrasado, mas porque nossos corações se abrem nesse momento.

“Não é tarde demais quando Deus chama; é tarde demais quando paramos de ouvir”.

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