A causa indígena tornou-se objeto de disputas e negociações, inclusive por dentro do governo.
O artigo é de Roberto Liebgott e Ivan Cesar Cima, integrantes do Conselho Indigenista Missionário – Cimi Sul – Equipes Porto Alegre e Norte RS, publicado por Sul21, 05-06-2025.
Lá atrás, no raiar das luzes de Lula III, em 1º de janeiro de 2023, depois de termos passado pelos maus governos de Temer e Bolsonaro, declaradamente anti-indígenas e cultuadores das teses integracionistas, se imaginava que teríamos tempos novos, com horizontes floridos e repletos de belas alegorias, onde as políticas públicas para os mais pobres seriam prioridade, não pela picanha no churrasco e tampouco pela cervejinha no final de semana, mas por uma opção pelas garantias de direitos e por justiça, acima de tudo.
Depois da posse, daquele simbolismo encantador, onde as mãos foram estendidas aos mais fragilizados da sociedade, pouco se pode notar para além de alguma assistência paliativa e palavras que viraram discursos de boas intenções. A politicagem – descarada e mal educada – tornou-se cotidiana e, outra vez, relativizou-se – nos campos e nas cidades – a vulnerabilização de milhões de homens, mulheres e crianças.
No que se refere à política indigenista, houve a convocação de lideranças indígenas para comporem cargos em ministérios, secretarias, gabinetes e nas coordenações da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e na Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).
Adornos coloridos e cocares exuberantes passaram a dar tonalidades aos ambientes. Roupas e muitas pinturas – como se a estética fosse política pública – chamavam a atenção durante os eventos, reuniões, entrevistas e, nas redes sociais, tornavam-se “stories”, projetando pessoas e algumas pautas corajosas, mas que, na vida real e sem artificialidades, eram inibidas e represadas.
As estruturas para a execução da política indigenista foram montadas e ajustadas para funcionarem nos andares de cima da Esplanada dos Ministérios. Enquanto isso, lá nas bases, percebia-se, num primeiro momento, uma enorme euforia e encantamento, porque os sinais eram de que a causa indígena havia conquistado os corações e as mentes daqueles e daquelas que governariam o país. Todavia, depois, com o passar dos meses e dos anos, o encanto cedeu lugar ao espanto, porque os discursos se dissiparam com os ventos sombrios de um sistema corroído pelos interesses das corporações econômicas, pelos privilégios, vaidades e manutenção das oligarquias no comando do país.
Esse cenário mostrou-se particularmente perverso: a causa indígena tornou-se objeto de disputas e negociações, inclusive por dentro do governo, marginalizando os próprios indígenas que o compunham. As lideranças foram sendo postas à margem, afastadas dos debates, porque suas presenças só eram suportadas como adornos ou para resolverem pendências nas áreas onde a exploração dos recursos naturais gera tensões e graves conflitos.
Os procedimentos demarcatórios das terras foram minimizados. Nesse contexto, abriram-se, de modo mais incisivo, os caminhos para que os legisladores, de forma expressa, consolidassem uma lei que restringisse ao máximo o alcance dos direitos constitucionais dos povos indígenas à terra. A introdução dessa ferramenta jurídica na legislação bloqueia o dever do governo federal em demarcar as terras.
E, finalmente, no mês de dezembro de 2023, quando – apesar de o Supremo Tribunal Federal (STF) ter caracterizado a inconstitucionalidade da tese do marco temporal e a manutenção dos direitos originários dos povos aos seus territórios – o Congresso Nacional aprovou a Lei 14.701, reintroduzindo o marco temporal nos procedimentos de demarcação de terras e pondo limites ao usufruto das áreas ocupadas pelos povos em todo o país. Houve, desde então, a estagnação das demarcações e o aumento sistemático dos conflitos nos territórios, especialmente em função das invasões possessórias e dos ataques aos modos de vida dos povos. A paralisação das demarcações também vincula-se ao fato de o ministro do STF Gilmar Mendes ter submetido a discussão da inconstitucionalidade da lei 14.701/23 a uma interminável câmara de conciliação, onde prevalecem os interesses anti-indígenas.
No âmbito do Poder Legislativo, não se observa do governo Lula empenho em barrar essa e outras proposições legislativas. Os direitos indígenas e quilombolas são apenas utilizados nas negociações políticas. As lideranças que representam o governo nas casas – Senado e Câmara – dão de ombros em votações importantes, como foi o caso da votação do PDL 717/2024, que desmonta o rito demarcatório de terras, presente no Decreto 1775/1996, assim como na votação do PL 2159/2024, conhecido como PL da devastação. Já em pautas de interesse do governo federal, há empenho político e liberação de emendas orçamentárias que garantam que sejam aprovadas.
No âmbito das políticas públicas, a desgovernança assumiu contornos dolorosos. A educação escolar indígena, campo fértil para desenvolver uma política que respeitasse as formas de vida e as culturas dos povos, ficou submetida aos interesses de governos estaduais, que se negam a implementar ações voltadas ao atendimento das especificidades étnicas e culturais, porque, na prática, eles aderem às perspectivas assimilacionistas e contrárias aos direitos indígenas no país. O sucateamento da educação escolar indígena é doloroso. Escolas deterioradas ou barracos improvisados onde não há sequer água para os alunos lavarem as mãos.
A realidade, no que tange à política de atendimento à saúde indígena, é ainda mais grave. Segundo um procurador da República em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, há, na saúde indígena, o absoluto desgoverno, porque já não se sabe mais o que fazer com o objetivo de pôr a Sesai – através de seus Distritos – a executar adequadamente as ações e serviços em saúde. Segundo este mesmo procurador, nada mais adianta, nem a judicialização, porque a protelação torna-se infinita, enquanto as comunidades ficam submetidas ao descaso por falta de água, transporte, medicamentos e assistência básica, feita através das equipes que, embora dedicadas, não dão conta de prestar serviços adequados, diante do desgoverno na Sesai. A piora na gestão da saúde indígena foi substancialmente agravada depois da intromissão – autorizada por decreto presidencial – da Agência Brasileira de Apoio à Gestão do Sistema Único de Saúde (AgSUS).
A política de saúde merece um capítulo especial nessa análise, porque o desmantelamento não tem limites e atinge a todos os povos, em todas as regiões do Brasil. No Tocantins, a Defensoria Pública da União (DPU) não cansa de acionar a Sesai, cobrando ações e presença nas comunidades. Há uma dura e cruel realidade de desassistência, especialmente na Ilha do Bananal, onde a presença das equipes de saúde, nas aldeias, é esporádica e muitas delas não contam sequer com médicos, porque não há profissionais em número suficiente para atender a todos os territórios.
Assim ocorre no Amazonas, em Roraima, no Pará, no Maranhão, na Bahia e em todos os demais estados. Ou seja, o desgoverno é uma realidade impactante, porque falta tudo: equipes com profissionais preparados – inclusive em quantidade de pessoas suficientes –, combustível, transporte, medicamentos e, o mais elementar, assistência básica, primária, pois sua ausência, associada à falta de água potável e saneamento básico, a vida e a morte embalam-se cotidianamente.
Além da má gestão e da terceirização mal executada há, na política de saúde, a politicagem como um negócio. Negociam-se cargos de chefias com aliados do governo, sendo muitos deles de partidos que, até ontem, estavam auxiliando nas ações genocidas de Bolsonaro. E a AgSUS, no governo Lula, foi trazida como mais uma ferramenta das negociatas, tornando-se uma cunha cravada na política, já que ela se presta a estabelecer relações de parcerias, convênios e também faz a gestão. Ou seja, criou-se uma espécie de aberração, ou anomalia administrativa na execução dos serviços em saúde para os povos indígenas no Brasil.
Nesse contexto de disputas, politicagens, parcerias e gestão compartilhada entre a Sesai e a AgSUS, os povos indígenas não sabem mais quem é quem, quem responde pelo quê e quem vai se responsabilizar pela política.
O Controle Social, que tinha papel relevante na fiscalização da política, perde força em meio ao desgoverno, tornando-se um espaço esvaziado, mas que acaba sendo ocupado pelos apadrinhados do sistema em curso. São aqueles que, apesar das dores e do caos, defendem e protegem os que estão nas cúpulas desse ambiente de profunda desgovernabilidade.
Neste cenário de desgoverno nas políticas de assistência e de domínio dos setores anti-indígenas que atuam para desfazer direitos constitucionais no Legislativo, Judiciário e Executivo, a pergunta inevitável é: até quando o silêncio vai perdurar diante da dor, do sofrimento e das mortes injustas?