O Brasil da escala 6x1 e a naturalidade da exaustão. Algumas análises

Entre sobrecarga física, colapso emocional e impacto ambiental, especialistas, trabalhadores e dados revelam: o país adoece trabalhando

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Por: Edição: Letícia Fagundes | 02 Junho 2025

Seis dias de trabalho para um de descanso. Esse é o modelo que rege a vida da maioria dos trabalhadores brasileiros há décadas e que, segundo especialistas de diferentes áreas ouvidos pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, tem custado caro à saúde, à qualidade de vida, à sustentabilidade ambiental e ao futuro do país.

A jornada 6x1, muitas vezes romantizada como “trabalho duro”, é na prática o retrato de um sistema exaustivo e disciplinador, marcado por baixos salários, longas horas e escassas perspectivas de ascensão. De acordo com o professor de geografia Tadeu Alencar Arrais, da Universidade Federal de Goiás – UFG, trata-se de um “combo que estrutura o cotidiano da classe trabalhadora brasileira” e que precisa ser urgentemente enfrentado. “A escala 6x1 não atinge só o trabalhador, ela impacta famílias inteiras”, afirma. Dados do Observatório do Estado Social revelam que 67% dos trabalhadores com essa carga horária não vislumbram nenhuma possibilidade de progresso profissional.

A exaustão não é apenas social: ela também é ambiental. Como demonstra o engenheiro Vinícius Oliveira da Silva, da Universidade de São Paulo – USP, a rotina massiva de trabalho está diretamente ligada ao aumento do consumo de energia e, portanto, à intensificação do uso de termelétricas fósseis. “Quando o sistema entra em pico, é acionado com carvão e gás natural. Isso agrava ainda mais a crise climática”, explica. Para ele, a redução da jornada para um modelo 4x3 (quatro dias de trabalho, três de folga) pode ser uma ferramenta poderosa para desacelerar o ritmo de emissão de poluentes, aliviar a pressão sobre os recursos hídricos e reduzir a necessidade de expansão do sistema energético.

Do ponto de vista da saúde, os números são igualmente alarmantes. O psicólogo Carlos M. Rodrigues, da UnB, aponta que o Brasil lidera o ranking de afastamentos por transtornos mentais relacionados ao trabalho. Segundo ele, somando a jornada formal, os deslocamentos e o trabalho doméstico, a carga semanal dos brasileiros ultrapassa 100 horas chegando a 116 no caso das mulheres. “Estamos comprometendo o sono, as relações sociais e o bem-estar de toda uma geração”.

Portanto, a ideia de uma jornada 4x3 não é nova, mas ganha força diante de uma conjuntura marcada por adoecimentos em massa, colapso ambiental e desigualdade estrutural. Os especialistas ouvidos convergem em um ponto central: discutir a redução da jornada de trabalho é discutir um novo modelo de país atento à saúde da atual e das futuras gerações. Não se trata apenas de mexer em números, mas de reimaginar a vida. Como lembra Arrais, “ou mudamos agora, ou corremos o risco de condenar a juventude ao mesmo ciclo de exaustão e invisibilidade”.

Prof. Carlos Rodrigues | Foto: Arquivo Pessoal

Carlos M. Rodrigues possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU, mestrado e doutorado em Psicologia Social do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília – UnB. Leciona Psicologia no Centro Universitário de Brasília. Também é orientador, colaborador e pesquisador junto ao PPG em Psicologia Clínica e Cultura da UnB.

Prof. Tadeu Arrais | Foto: Arquivo Pessoal

Tadeu Alencar Arrais possui graduação e mestrado em Geografia pela UFG, doutorado em Geografia pela Universidade Federal Fluminense – UFF e pós-doutorado pela Universidade Federal do Ceará – UFC. É professor titular da UFG, coordenador do Observatório do Estado Social Brasileiro e do canal de divulgação científica “Porque o Estado Importa”. Integra o corpo docente do PPG em Desenvolvimento Regional da UFG.

Prof. Vinicius Oliveira | Foto: Arquivo Pessoal

Vinícius Oliveira da Silva possui graduação em Engenharia Mecânica pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” e mestrado em Engenharia Elétrica pela USP. É pesquisador e professor do Departamento de Engenharia de Energia e Automação Elétrica. Tem experiência na área de Engenharia Elétrica com ênfase em geração de energia elétrica.

Confira as entrevistas.

Trabalho e adoecimento: a perspectiva da psicologia

O psicólogo e professor Carlos M. Rodrigues destacou que o Brasil atingiu nas últimas décadas um patamar alarmante de afastamentos por transtornos mentais. Com base em dados nacionais, ele mostrou que a carga de trabalho dos brasileiros ultrapassa 100 horas semanais e mulheres 116, considerando jornada formal, deslocamentos e trabalho doméstico.

O resultado é uma epidemia silenciosa de estresse, insônia, burnout e afastamentos por transtornos mentais, que já superam as doenças físicas como a principal causa de licença no país. Rodrigues defende que a jornada 4x3 pode ser positiva, mas apenas se vier acompanhada de uma gestão humanizada. Sem isso, o risco é condensar a mesma sobrecarga em menos dias. Não se trata apenas de trabalhar menos, mas de repensar o trabalho. Para ele, a mudança para a jornada 4x3 só terá sentido se vier acompanhada de uma gestão humanizada.

IHU – Como os modelos atuais de jornada de trabalho, como o 6x1, afetam a saúde mental dos trabalhadores no Brasil?

Carlos M. Rodrigues – A questão do debate da escala, 6x1 ou 4x3, vai além da economia; ela envolve também saúde mental, bem-estar e qualidade de vida. Nosso debate foca principalmente nos aspectos psicossociais de saúde mental e ocupacional. O Brasil atingiu o patamar de maior quantidade de afastamentos por transtornos mentais nos últimos anos, nas últimas décadas. São afastamentos tanto no serviço público quanto na iniciativa privada, que é uma questão complexa.

IHU – Quais os fatores psicossociais mais presentes no ambiente de trabalho e como eles influenciam o adoecimento?

Carlos M. Rodrigues – Fatores psicossociais são elementos derivados da organização do ambiente laboral e da forma como as pessoas se relacionam com ele. Eles podem ser de risco, aumentando a chance de adoecimento, ou protetivos, contribuindo para a saúde no trabalho. Entre os fatores de risco estão a carga excessiva, o assédio moral, ritmos intensos e a falta de autonomia. Já os fatores de proteção incluem autonomia, apoio social e cooperação entre colegas.

Esses elementos coexistem no ambiente de trabalho e influenciam diretamente o risco ou a prevenção de adoecimentos. Um referencial teórico importante é o modelo de demanda-controle, de Karasek. Este modelo demonstra que quanto maior o controle sobre as atividades, menor o potencial de estresse e maior a produtividade. Quando esse controle é limitado, o trabalho tende a ser mais adoecedor.

A jornada de trabalho também pode ser um fator crítico, especialmente quando não permite um tempo adequado de recuperação entre um turno e outro, ou quando impede a realização de outras atividades essenciais fora do trabalho, como descanso, lazer, vida social, autocuidado e desenvolvimento pessoal.

É importante considerar que saúde mental não depende apenas do tempo de descanso, mas também de momentos restauradores que envolvem convívio familiar, lazer e outras vivências que reconstroem a energia e o bem-estar.

No modelo 6x1, de 44 horas semanais, observam-se altos índices de fadiga, burnout (hoje reconhecido pela CID-11 como transtorno mental relacionado ao trabalho), insônia e uso de substâncias. Os impactos vão além do indivíduo, afetando também o campo social, com prejuízos nas relações familiares, aumento do absenteísmo (faltas frequentes) e do presenteísmo, quando o trabalhador está fisicamente presente, mas emocionalmente e cognitivamente ausente.

Quanto mais repetitiva a atividade e maior a exposição a fatores de risco, mais graves tendem a ser os efeitos sobre a saúde.

IHU – Você mencionou que a carga horária real dos trabalhadores brasileiros ultrapassa as 100 horas semanais. Como isso se estrutura e quais são os impactos dessa sobrecarga?

Carlos M. Rodrigues – A carga total de trabalho vai muito além das 44 horas formais semanais. Segundo o IBGE, o trabalhador brasileiro gasta em média 6,4 horas semanais com deslocamentos, número que pode chegar a 10 horas nas capitais como Rio de Janeiro e São Paulo.

Além disso, a média de sono noturno varia entre 4 e 6,4 horas, o que é insuficiente para a recuperação física e mental. Ao chegar em casa, o tempo destinado ao trabalho doméstico representa mais um peso: são cerca de 11,7 horas semanais para os homens e 21,3 horas para as mulheres.

Somando jornada formal, deslocamento e atividades domésticas, a carga total semanal atinge cerca de 106 horas para os homens e 116 para as mulheres. Esse excesso compromete o descanso, a saúde e a segurança já que o tempo maior de transporte também aumenta o risco de acidentes e o convívio familiar e social. Para efeito de comparação, esse volume representa cerca de 5.500 horas por ano, o equivalente ao tempo necessário para concluir um curso de graduação a cada trabalhador.

A discussão sobre a redução da jornada, como no modelo 4x3, não é nova; ela remonta à década de 1980. Mais do que diminuir dias de trabalho, trata-se de reorganizar o tempo de vida: criar espaço para o autocuidado, atividades culturais, lazer, relações afetivas e recuperação psíquica. A redução de jornada pode trazer benefícios, mas não é automática: sem uma gestão adequada, há o risco de apenas concentrar a sobrecarga em menos dias. Por isso, a mudança precisa ser acompanhada de políticas que garantam bem-estar e equilíbrio entre vida profissional e pessoal.

IHU – A redução da jornada de trabalho para um modelo como o 4x3 seria suficiente para melhorar o bem-estar dos trabalhadores?

Carlos M. Rodrigues – Temos um problema que precisa ser pensado: reduzir a escala sem mudar as condições de trabalho pode significar concentrar, em quatro dias, a mesma carga, ou até maior, do que aquela distribuída em seis. Então é necessário que tenha algum tipo de gestão nisso também, para que não se torne fazer em quatro o que se faz em seis, com risco maior para o trabalhador.

Um estudo na Europa com 141 organizações que reduziram a jornada de trabalho sem reduzir salários mostrou resultados positivos. Após seis meses da implementação da escala 4x3, houve uma redução do burnout e da fadiga.

Importa lembrar que o adoecimento gera custos tanto para as organizações quanto para o Estado. Quanto menos o trabalhador adoece, menores são os gastos com o sistema de saúde e menores os prejuízos humanos e econômicos. Cada afastamento representa um custo elevado para empresas e governos.

A satisfação no trabalho está relacionada a efeitos positivos, como melhor desempenho e maior dedicação às atividades, além da redução da rotatividade. Com isso, as empresas gastam menos com reposição de pessoal e promovem a melhora da saúde mental e física dos colaboradores. Além disso, os trabalhadores terão mais tempo para realizar atividades físicas, o que também contribui para a redução do adoecimento.

IHU – A mudança da escala 6x1 para 4x3 traria benefícios concretos para trabalhadores e empresas? Quais são os desafios dessa transição e por que ela precisa vir acompanhada de uma gestão humanizada?

Carlos M. Rodrigues Há um aumento da percepção de capacidade de trabalho, melhora no sono e redução significativa da fadiga. Todos esses fatores trazem benefícios tanto para as empresas quanto para os trabalhadores. Existem, sim, desafios e contradições na transição da escala 6x1 para 4x3. Já temos profissões que seguem a lógica do 5x2, por características próprias e outras que já operam no 4x3. Em algumas áreas, como a da saúde, essa mudança de escala não se aplica da mesma forma.

Também há o risco de estabelecer um ritmo de trabalho muito mais intenso em menos tempo. Isso precisa ser cuidadosamente planejado. Os impactos ecológicos e humanos variam conforme o setor e devem ser considerados caso a caso. É fundamental que todos os agentes envolvidos participem das mudanças para melhorar o ambiente de trabalho.

É inegável que os transtornos mentais estão afastando mais pessoas do trabalho do que as doenças osteomusculares. É uma questão séria que precisa ser enfrentada. A redução da jornada deve vir acompanhada de uma gestão humanizada, articulada com outras ações em prol da saúde mental.

Reduzir a jornada sem mudar a forma de gestão não necessariamente trará benefícios. A reorganização do trabalho é essencial. É necessário que empresas e entidades governamentais estejam atentas a essa reestruturação. É preciso repensar o trabalho: otimizar recursos, usar tecnologias para diminuir o tempo gasto em tarefas repetitivas. Ou seja, é uma mudança profunda na lógica de organização do trabalho.

No início, sempre há resistência. Qualquer mudança provoca reações nos dois extremos. Mas, mesmo assim, algumas transformações acabam sendo implementadas. Existe também um fator geracional. Muitos trabalhadores já não aceitam escalas exaustivas e trabalhos sem sentido. Isso pode até parecer uma mudança de geração, mas, no fundo, exige que as empresas se adaptem a uma nova realidade.

IHU – São 3,4 milhões de concessões de auxílio por incapacidade vinculadas ao sistema previdenciário, por isso a importância da Carteira de Trabalho e Previdência Social. Temos ainda mais de 246 mil ocorrências de acidentes de trabalho, que nem sempre resultam em afastamento. Já foi feito algum estudo, mesmo econométrico, sobre o significado desse dado caso pensássemos numa redução de jornada de quatro horas? Essa redução já não está acontecendo de forma velada, por causa do adoecimento no trabalho?

Carlos M. Rodrigues Na realidade, perdemos muito mais. Vamos pegar um setor muito afetado: o telemarketing. O telemarketing, por lei, tem jornada de 6 horas diárias. Mas o que acontece? A maioria dos trabalhadores é mulher, e as grandes empresas saíram dos centros urbanos e foram para o interior, principalmente em cidades com pouca representação sindical.

Tivemos casos em que, de cada 10 contratados, apenas 4 estavam de fato trabalhando, os outros estavam afastados por infecção urinária ou condições relacionadas. Isso porque o tempo no banheiro era cronometrado e descontado do salário. Muitas trabalhavam de fralda geriátrica para evitar punições. Então, não adianta só discutir dias a menos. Grande parte dos afastamentos é por causas evitáveis.

Fizemos um trabalho com policiais militares e professores universitários. A maioria tem problemas osteomusculares agravados pela dificuldade em se ausentar. Se faltam, precisam repor. Em média, um terço dos trabalhadores está afastado.

Fizemos um estudo com 20 anos de dados de afastamento por estresse, violência e condições de trabalho. Cruzamos com o índice de Gini, taxa de desemprego e renda. Quando a renda sobe e o Gini cai, diminuem os casos de violência no trabalho.

Temos também um contingente de trabalhadores envelhecidos. Muitos continuam na ativa formal ou informalmente porque a aposentadoria não cobre os custos. Essa população tem quatro vezes mais chance de sofrer acidente de trajeto, por questões como desequilíbrio e as condições das cidades.

Com três dias a menos de trabalho, haveria mais tempo para ir ao médico, fazer atividade física. Obesidade é um problema comum. Participei de um evento com pessoal da nutrição, e falamos sobre isto: quem faz jornada 6x1 não consegue preparar alimentação saudável. Que horas vai fazer marmita todo dia?

Isso leva a outras questões: trânsito com alta taxa de veículos nas ruas, porque todo mundo trabalha de segunda a sábado. Essa discussão que você traz é válida – esse “terrorismo” de que o país vai quebrar com a redução da jornada é o mesmo que ouvimos sobre o 13º, férias etc.

A realidade fora do Brasil mostra que, com menos tempo de trabalho, o trabalhador melhora sua qualidade de vida, física e mental. Ele produz mais. A gente já perde muito: é um custo alto para empresa, trabalhador e Estado. Estamos levantando dados sobre os gastos do INSS com afastamentos por saúde mental. Os valores são estarrecedores, quase no mesmo patamar do gasto com aposentadorias.

Quanto à questão da matriz energética, é importante lembrar que estamos em matriz fóssil também por causa do transporte. Acidente de trajeto é comum. E nas grandes cidades, há ainda o risco da violência urbana. Perdemos força de trabalho por adoecimento, por falta de tempo para cuidados básicos. Se fizéssemos uma pesquisa sobre o impacto da jornada 6x1 na saúde mental das crianças, veríamos dados interessantes. Talvez até o índice de ocupação das creches públicas caísse. O viés da discussão é sempre: “Vai quebrar o país”. Nenhuma empresa quebrou quando criaram o 13º ou as férias. O problema é que a margem de lucro é tão alta que qualquer redução mínima gera alvoroço.

Precarização e exclusão: o alerta da geografia social

O professor de geografia da UFG, Tadeu Alencar Arrais, destaca o caráter estrutural da escala 6x1 no Brasil, apontando que ela combina baixos salários, longas jornadas e mecanismos disciplinares que contribuem para o adoecimento físico e mental dos trabalhadores.

Segundo ele, 67% dos entrevistados em pesquisas recentes afirmam não enxergar nenhuma perspectiva de ascensão profissional. Para além do indivíduo, a escala impacta toda a estrutura familiar. Um exemplo citado por Arrais é o de um jovem de Salvador que relatou ter conhecido a escala pelo vazio deixado pela ausência constante dos pais.

Na visão do professor, discutir a redução da jornada de trabalho é também enfrentar uma questão de justiça social e redistribuição do tempo, sobretudo para as mulheres, que acumulam as maiores cargas de trabalho não remunerado no país.

IHU – Como a escala 6x1 impacta não só o trabalhador, mas também as relações familiares e sociais ao longo das gerações?

Tadeu Alencar Arrais – De certo modo, todos nós somos filhos da escala 6x1. Os dados do emprego formal mostram que aproximadamente 34 milhões de brasileiros trabalham com carga horária acima de 40 horas semanais. A escala 6x1 é tão dramática que não atinge apenas o trabalhador, mas também os núcleos familiares. Como disse um operador de call center de Salvador: “Eu conheci a escala 6 por 1 a partir da ausência dos meus pais”.

Eu também conheci essa escala a partir da ausência dos meus pais. Estamos falando de uma jornada e de um regime de trabalho em que mais da metade da população brasileira está envolvida diretamente e não só nas cidades. É importante destacar que isso também acontece no campo. Os dados da RAIS indicam mais de 1,6 milhão de pessoas trabalhando acima de 40 horas no meio rural, incluindo tratoristas, motoristas e uma infinidade de ocupações.

A escala 6x1, mais conhecida como oito horas de segunda a sexta, com complementação no sábado, tem variações desde a reforma trabalhista, mas continua sendo a forma de organização do trabalho mais generalizada no território brasileiro.

IHU – O que a pesquisa do Observatório revelou sobre a estrutura da escala 6x1?

Tadeu Alencar Arrais – O Observatório do Estado Social conduziu uma pesquisa e a gente partiu de alguns princípios. O primeiro é que a escala 6x1 é um combo. Se nós não começarmos a pensar nisso, poderemos suavizar ou criar eufemismos para justificar a existência dessa escala. Ela é um combo geralmente composto por baixos salários, elevada carga horária e sistemas disciplinares que geram adoecimento e controle da rotina laboral. Quando nós começamos a conduzir essa pesquisa, além de entender a jornada 6x1 a partir desse tripé, nós começamos a entender que o trabalho está além do ambiente laboral. Muito embora a reforma trabalhista, por exemplo, tenha excluído os trechos de trajeto do que a gente chama de carga horária diária.

Nós consideramos que esse trabalhador, quando chega num hipermercado, numa operadora de call center, em lugares com mais expressão numérica da escala 6x1, ele não se explica só naquele ambiente; ele se explica por sua família, ele se explica pelas condições de moradia, pelas condições de deslocamento, pelo sexo, pelo gênero. E é tudo isso que tentamos captar na pesquisa.

É uma pesquisa que tem 26 questões, e nessa primeira rodada 3.775 trabalhadores responderam 26 questões. Como a pesquisa ainda está rodando, hoje nós temos em torno de 4.200 trabalhadores que responderam 26 questões. Ou seja, temos um banco de dados com 110 mil questões para que possamos tabular de diferentes maneiras, por exemplo, dados a partir de cidades, a partir de ocupações ou a partir do gênero. Temos uma infinidade de dados possíveis de elaboração para essa pesquisa.

Não nos interessa apenas perguntar se o trabalhador é favorável ou não à permanência da escala 6x1. O que procuramos entender é quais foram as condições que levaram esse trabalhador depois de qualificado, adjetivado, a responder se ele é favorável ou não à escala 6x1.

IHU – Como os deslocamentos impactam a saúde e o cotidiano dos trabalhadores?

Tadeu Alencar Arrais – Na pesquisa, vamos encontrar por município, por função, deslocamento. O deslocamento por tempo, deslocamento por meio de transporte e deslocamento por quilometragem.

Uma porção significativa, por exemplo, dos trabalhadores, daqueles que trabalham em Brasília, se deslocam diariamente mais de 20 km. Em Fortaleza, mais de 25 km, em Goiânia até 15 km, só no trajeto de ida. Quando se multiplica isso por dois, nós temos uma porção significativa dos trabalhadores brasileiros, especialmente nas metrópoles, que se deslocam mais de 40, 50 km diariamente.

Se cruzarmos esse dado e fizermos o filtro para aqueles que estudam, poderemos acrescentar um pouco mais. Basicamente temos uma porção de trabalhadores, na pesquisa indica mais de 20%, que se deslocam diariamente, somando o retorno e aqueles que estudam mais de 70, 80 km diariamente e nesses casos, em transporte coletivo, o que predomina, por exemplo, em Fortaleza, em Salvador e no Rio de Janeiro. Então imagina nesse contexto qual é a situação que esse trabalhador chega nas atividades para exercer suas atividades laborais.

Essa pesquisa tem três etapas. A primeira etapa foi um e-book que nós produzimos chamado “roubo de tempo”. A segunda etapa é esse painel que ainda está aberto, ele será atualizado duas vezes ou três vezes. E a terceira etapa é um atlas da escala 6x1 no Brasil na escala municipal e regional. Esse atlas já está sendo editado por uma editora do Rio de Janeiro. Ele possivelmente será lançado em maio ou junho. São essas três ações que o Sindicato, o Observatório do Estado Social e os parceiros tentaram construir.

IHU – Quem são os mais vulneráveis dentro do regime 6x1?

Tadeu Alencar Arrais – Importa observar quais as funções ou ocupações com maior predominância e aquelas que têm maiores níveis de deslocamento, como operadores de caixa, de telemarketing e vendedoras, principalmente mulheres. A partir disso, ao selecionar o sexo, se estudou, se tem filhos, começamos a entender o drama desses trabalhadores.

Os dados da década de 2000 apontavam que a porta de entrada para o trabalho precário dos jovens era o telemarketing. Atualmente, isso mudou um pouco por conta do avanço das tecnologias de comunicação. Porém, o operador de caixa, os estoquistas, repositores, fiscais de caixa, toda uma estrutura hierárquica no setor de varejo, onde predomina a escala 6x1, concentram as maiores ocorrências relacionadas a atestados e verbalizações de agressões.

O setor atacadista é o que apresenta maior número de ocorrências. Isso se refletiu em uma das perguntas da pesquisa: “Houve ocorrência no último mês de atestados de até 3 dias, acima de 3 dias ou para acompanhamento de filhos?” O retorno foi que 23% dos quase 4 mil trabalhadores apontaram algum desses tipos de anotação, e quase mil relataram atrasos.

As ocupações e setores com maior número de atrasos e atestados estão ligados ao comércio e aos serviços. Esse dado é relevante porque coincide com os dados de acidentes de trabalho, sejam de trajeto ou não e com os afastamentos registrados pelo INSS.

A situação se agrava entre pessoas pardas ou negras, que enfrentam maiores deslocamentos e recebem os menores salários. Quando são mulheres e precisam manter a casa sozinhas com filhos, a realidade é ainda mais dura, como diz aquela música: “Mama África, minha mãe é mãe solteira, tem que fazer uma mamadeira todo dia, além de trabalhar como empacotadeira nas Casas Bahia”.

Os salários também foram o foco da pesquisa: 67% declararam receber até um salário mínimo e meio. Após o lançamento da pesquisa, recebemos muitos e-mails e mensagens com fotos e relatos angustiantes, embora nem todos os dados pudessem ser utilizados.

Esses 67% também disseram não enxergar perspectiva de progresso vertical. Quando cruzamos os dados com categorias como operadoras de caixa, faxineiras, frentistas, principalmente mulheres expostas a produtos químicos, como em postos de gasolina, a falta de mobilidade profissional fica ainda mais evidente.

Quais foram aquelas promessas da democracia salarial, do fordismo? Elas já não existem mais para esses jovens. Não é à toa que o varejo está colapsando diante dos nossos olhos. A interpretação que fazemos é que os movimentos progressistas e parte da esquerda no governo ainda têm muita reticência em enfrentar esse tema. Por outro lado, o que se poderia chamar de direita ou extrema-direita permanece tímida na negação da pauta, porque é um tema muito sensível.

IHU – Por que o discurso contra a redução da jornada é considerado alarmista?

Tadeu Alencar Arrais – O investimento que tem sido feito pelas entidades empresariais e pela grande mídia é de muito terrorismo. Assim se produz uma sociedade aterrorizada. Lançaram em uma manchete um estudo da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais onde o PIB cairá a 16%. Não estamos tratando nem das 8 horas, nós estamos tratando de redução de 4, cairá 16%. Isso é contraintuitivo.

Quando você abre o estudo que motivou uma série de manchetes, trata-se de um PowerPoint de 24 páginas com poucas letras, poucos cálculos ou na verdade nenhum cálculo, são uma ou duas tabelas, uma série de fantasmas e termina dizendo: “a partir de um modelo econômico”, mas que não é explicado. É um modelo conhecido, onde os brasileiros teriam a redução de 18 milhões de empregos em um cenário e 16 milhões de empregos em outro.

Se alguém observa isso e fala: “O Brasil vai quebrar porque são 18 milhões de empregos”. Porém são 18 milhões se referindo ao comércio, à indústria, à agricultura. Temos que nos lembrar dos 45 milhões de empregos formais. Se você retirar somente o emprego público, dá um total de 10 milhões. Geram o terrorismo nas pessoas afirmando que o Brasil terá menos 16% de PIB, que todas as empresas vão falir, sendo esse um discurso que o Grande Varejo faz.

As 300 maiores empresas do varejo no Brasil tiveram um faturamento de 1,2 trilhão de reais em 2023 e empregaram 800 mil pessoas. São essas empresas que tiveram benefícios fiscais do Cofins. Foram grandes grupos, não foi o dono da ferragem que tem dois funcionários. Por outro lado, as empresas brasileiras acima de 200 funcionários têm mais de 20% do total de emprego gerado nesse país e representam 0,09%, ou seja, temos 0,09 que representam 20%. Constroem um discurso de que a economia vai falir, é uma expectativa de discurso aterrorizante e todo mundo começa a cair nisso.

O Observatório do Estado Social, Sindicato dos Comerciários do Rio de Janeiro, Sindicato dos Professores da UFG, o programa MEI Brasil, mais um conjunto de pesquisadores estão refletindo sobre essa realidade a partir dessa pesquisa. Acreditam que a redução da jornada de trabalho já passou da hora de reduzir. Nós não podemos esperar mais 50 anos sob o risco de condenar essa juventude. Os alunos frequentam universidades federais, universidades privadas, sob o risco de condená-los, de condenar o futuro e a saúde. Comprometer a saúde de uma parte significativa dos brasileiros.

IHU – Embora o setor elétrico emita bastante, o transporte é o maior emissor de gases de efeito estufa entre os setores produtivos. No Brasil, o principal emissor é o desmatamento, mas entre os setores produtivos o transporte responde por cerca de 50%, seguido pela indústria e pelo setor elétrico. Dentro da proposta da jornada 4x3, como se pensa esse arranjo? Seriam quatro dias de trabalho com três de folga? Ou uma redução da carga horária distribuída em cinco dias? Ou, ainda, manter os seis dias com menos horas por dia? Como os sindicatos estão enxergando essas possibilidades de escala ao longo da semana também em termos de horas?

Tadeu Alencar Arrais – Se estivéssemos em outro país, talvez não tivéssemos acesso a tantos dados secundários. Temos informações detalhadas sobre emprego por ocupação, faixa etária, salário, número de empresas, acidentes de trabalho (inclusive se foram no trajeto, com ou sem notificação), município e setor.

Por exemplo, o comércio é o setor com maior volume de acidentes, também por ser um dos que mais emprega. Temos muitos dados, e os sindicatos têm colaborado com isso. O sindicato do Rio, por exemplo, tem um sistema próprio de notificação de assédio e denúncias, com milhares de registros, algo que merece ser estudado academicamente.

Quanto à jornada 4x3, todo debate sobre a redução de carga horária no Brasil foi sempre acompanhado de algum tipo de “terrorismo” econômico. Antes da Constituição de 1988, por exemplo, os bancários já trabalhavam menos que 40 horas. Quando se propôs essa mudança, diziam que o sistema financeiro iria quebrar.

Hoje temos duas propostas em pauta: a escala 4x3 e a 5x2. Esse embate está sendo travado em várias frentes. No Congresso, eu e o grupo do Observatório defendemos a 4x3. Acreditamos que se perdermos esse momento, talvez só voltaremos a discutir isso daqui a trinta anos. Inicialmente, o governo resistiu ao debate. Depois, passou a considerar a 5x2, mas na prática, isso mudaria um pouco. Call centers e outros segmentos já não operam mais no formato padrão, pois têm escalas rotativas.

O problema da jornada 6x1 é exatamente esse: a rotação. Tenho relatos de operadores de caixa que folgam apenas um domingo a cada 20 dias, ou nem isso. É uma situação muito grave. A discussão está no Congresso e precisará ser enfrentada. Acredito que a redução de jornada virá aos poucos. No Brasil, mudanças drásticas não são comuns. Pense na abolição da escravidão: diziam que uma mudança abrupta quebraria o país. Sempre usamos esse tipo de argumento.

Hoje, temos quatro projetos em tramitação: um da deputada Érika, um do senador Paim, um do senador Cleitinho e outro de direita. Estão em diferentes estágios. Neste semestre, precisamos prestar atenção nessa pauta.

Porque essa mudança impacta o setor energético, a qualidade de vida e o bem-estar. É contraintuitivo pensar que a redução de jornada diminuiria empregos. Se a atividade econômica é contínua, ela exige contratações.

O momento é oportuno, mas essa mudança precisa ser debatida junto com outras questões, como a não redução de salário. Uma microempresa encara isso de forma diferente de uma grande. E quem está por trás do lobby contra essa mudança são as grandes empresas. Se você olhar no portal da transparência, verá que foram R$ 72 bilhões em renúncias fiscais. Só a desoneração da folha representou R$ 42 bilhões e não foi o pequeno comerciante que pegou isso. Foi o setor elétrico, os grandes atacadistas.

Precisamos ter coragem para debater o tema. Quando comecei, a primeira coisa que perguntei foi: “Você trabalha em regime 6x1?” E perguntei aos sindicatos: “Vocês adotam essa escala?” Porque, se adotam, não posso firmar parceria com eles. Mas muitos jovens acabam trabalhando 6x1 por terem várias jornadas ou fazerem bicos em diferentes lugares. A jornada 6x1 não é exclusividade do emprego formal. Ela também está muito presente na informalidade.

Consumo, energia e meio ambiente: o olhar da engenharia

O engenheiro e professor da USP Vinícius Oliveira da Silva destaca uma relação pouco explorada entre a jornada intensa de trabalho e o impacto ambiental. Segundo ele, o aumento da demanda energética nos horários de pico, impulsionada pela rotina exaustiva, leva à ativação de termelétricas a carvão e gás, apesar de o Brasil ter 93% da matriz elétrica proveniente de fontes renováveis. Essa situação representa um retrocesso ambiental significativo.

Nesse cenário, a redução da jornada de trabalho surge como uma oportunidade para aliviar a pressão sobre o sistema elétrico e o meio ambiente. Menos horas trabalhadas significam mais tempo para deslocamentos sustentáveis, lazer e autocuidado, fatores que contribuem para diminuir o impacto ecológico.

IHU – Como a complexa estrutura do sistema elétrico brasileiro e sua distribuição geográfica influenciam a gestão da geração e transmissão de energia, especialmente considerando as regiões isoladas e as áreas sem acesso formal à energia elétrica?

Vinícius Oliveira da Silva – Eu trago aqui também o meu lugar de fala. Não sou especialista em trabalho, embora seja um trabalhador assalariado CLT. Meu escopo de atuação é o setor de energia, especialmente o setor elétrico e trabalho muito com elaboração de políticas públicas dentro do setor. Pensando nisso e no contexto deste encontro, minha participação está vinculada a uma matéria que saiu na Agência Pública, que discute se a redução da escala de trabalho de 6x1 para 4x3 pode ter algum impacto no meio ambiente.

A partir dessa matéria, em diálogo com o jornalista, testamos alguns cenários. Um desses cenários é o que explico aqui. Antes de falar sobre os impactos e possibilidades, é importante entender um pouco do contexto do setor elétrico brasileiro.

Esse é um mapa geral do Brasil. Quando falamos do setor elétrico brasileiro, podemos dividi-lo em três partes. A primeira é o sistema interligado. Por exemplo, se eu estiver gerando energia eólica no Nordeste, posso transmiti-la para o Sudeste. Se for energia hidráulica no Sul, também posso enviar ao Nordeste em momentos de baixa produção eólica. É um sistema muito conectado e gigantesco.

Nosso sistema é maior que as dimensões entre Nova York e Seattle, ou entre Singapura e Mumbai, ou ainda entre Lisboa e Moscou, uma região muito grande. Além disso, há regiões com pontos vermelhos no mapa, cerca de 200 sistemas isolados, compostos por pequenas usinas e linhas de distribuição. Como se cada cidade da região Norte tivesse seu próprio sistema.

Também existe uma área em amarelo, onde não há acesso público à energia elétrica. Nessas regiões, as pessoas vivem com geradores ou pagam por rateios comunitários. Cito isso porque, para esse sistema funcionar, diversas fontes precisam operar ao mesmo tempo no Brasil.

IHU – Como a evolução da matriz energética brasileira entre 2000 e 2021 reflete as transformações econômicas, tecnológicas e ambientais do país? Quais desafios essa diversificação apresenta para a segurança energética?

Vinícius Oliveira da Silva Em 2000, a matriz era predominantemente hidráulica naquela grande faixa azul no gráfico. Em 2021, essa participação caiu para 56%. A energia eólica e a energia solar, antes inexistentes, passaram a ter papel relevante, com 13% da matriz.

À medida que a economia cresce, mais pessoas têm acesso à energia, a renda aumenta, o consumo também. Para suprir essa demanda, é necessário buscar novas formas de geração. Algumas podem ser renováveis, mas outras são fósseis. O gás natural, por exemplo, que era 1% em 2000, passou para 12% em 2021.

O Brasil é um verdadeiro oásis em termos de renovabilidade. Em 2024, 93% da eletricidade foi gerada por fontes renováveis. A matriz está se diversificando, com a hídrica perdendo espaço, embora ainda seja o coração do sistema. Ela garante energia no momento que ligamos um aparelho, enquanto solar e eólica só funcionam se houver sol ou vento.

Se não houver sol ou vento, pode haver apagões. Por isso, recorremos às térmicas, geralmente movidas a gás natural e carvão, que são poluentes e grandes emissores de gases de efeito estufa, os principais causadores da crise climática.

IHU – Quais os principais impactos ambientais e sociais decorrentes da operação das usinas hidrelétricas e térmicas no Brasil, especialmente em períodos de seca prolongada e alta demanda energética?

Vinícius Oliveira da Silva Em 2023, por exemplo, houve secas extremas na Amazônia. Rios secaram e comunidades ribeirinhas ficaram sem acesso a alimentos e água potável, já que não havia navegabilidade para o transporte de suprimentos.

A geração de energia varia ao longo do tempo. Em determinadas épocas do ano, como setembro e fim do ano, o consumo aumenta por causa da economia e do clima. No fim do ano, o consumo cai devido às férias escolares e à diminuição das atividades econômicas.

Semanalmente, o consumo é menor nos fins de semana. Segunda-feira ele aumenta, terça e quarta atingem o pico, e sexta-feira começa a cair. Domingo é o dia de menor consumo, já que há menos empresas e serviços funcionando. No decorrer do dia, o consumo cresce até atingir o pico entre 17h e 18h, quando as pessoas chegam em casa, acendem luzes, usam eletrodomésticos. Nesses momentos, são acionadas as térmicas, que emitem muitos gases poluentes.

IHU – Considerando o cenário brasileiro de alta informalidade e diversidade setorial, como a implementação da jornada 4x3 poderia alterar os padrões de consumo energético e quais seriam os impactos diretos na redução da emissão de poluentes atmosféricos e na preservação dos recursos hídricos?

Vinícius Oliveira da Silva Nesse horário, há mais uso de fontes fósseis, com aumento no acionamento de térmicas. Em um cenário de adoção da jornada 4x3, considerando o alto índice de informalidade no mercado de trabalho brasileiro, pode haver desigualdade na aplicação. No entanto, para parte da população formalizada, haveria dias com menos pessoas trabalhando, mais atividades de lazer e cuidado pessoal.

Isso pode alterar o padrão de consumo de energia, fazendo com que os picos ocorram antes e reduzindo o consumo em sextas e sábados. Com isso, precisaríamos de menos térmicas em operação e, consequentemente, menos uso de carvão, que é uma das fontes mais poluentes.

Usinas a carvão não só emitem gases de efeito estufa, mas também poluentes atmosféricos que afetam a saúde da população, mesmo com filtros. Além disso, essas usinas consomem muita água para resfriamento e operação, o que pressiona os recursos hídricos, especialmente em tempos de seca.

IHU – Quais os benefícios ambientais e socioeconômicos esperados com a redução do acionamento de térmicas fósseis decorrente da adoção da jornada 4x3, e como isso pode contribuir para a mitigação da crise climática e para a melhoria da qualidade de vida das populações afetadas?

Vinícius Oliveira da Silva Num cenário onde a escala 4x3 é adotada amplamente, com menos empresas funcionando simultaneamente, haveria menor demanda energética e menor necessidade de acionamento de térmicas.

Ao reduzir o uso de usinas hidráulicas, poderíamos preservar mais água nos reservatórios, útil em períodos de seca prolongada. Isso evitaria a necessidade de expansão do setor energético com novas usinas e reduziria os impactos socioambientais.

A construção de novas usinas causa desmatamentos, alagamentos, deslocamentos populacionais, entre outros impactos. O uso contínuo de térmicas a gás requer extração de combustíveis fósseis, o que também traz impactos ambientais.

Portanto, num cenário de jornada 4x3 real, com três dias livres por semana, haveria impacto positivo no setor de energia. Isso se traduz em menor consumo, menor necessidade de geração fóssil, menos expansão de infraestrutura e menor emissão de gases e poluentes.

Os gases de efeito estufa têm um impacto global, enquanto os poluentes atmosféricos como enxofre, NOx e particulados causam impactos locais na saúde, no ar e na vegetação. Os particulados, por exemplo, afetam a fotossíntese ao cobrir folhas, reduzem a produtividade vegetal e alteram o pH da água, prejudicando a vida aquática. Durante secas, o uso adicional de água por térmicas agrava a escassez para consumo humano. Assim, reduzir a geração térmica é fundamental para proteger o abastecimento hídrico.

De forma geral, eu quis provocar esta reflexão: como uma mudança na escala de trabalho pode afetar diretamente o setor de energia elétrica e, por consequência, as emissões de gases, o clima, a saúde e o uso sustentável da água.

IHU – A redução da escala de trabalho para 4x3 é ecologicamente positiva, mas infelizmente essa não é a preocupação da oligarquia empresarial?

Vinícius Oliveira da Silva – Dentro de um cenário em que a escala 4x3 está operando, ela pode sim ter um efeito no mercado de trabalho formal. Imagina CLTs que trabalham numa escala 6x1, saindo das 44 horas semanais para 36 ou 30 horas. Vamos ver como será esse desenho. Pode ser que as pessoas trabalhem cinco dias por semana, com menos horas por dia, ou realmente quatro dias por semana e folguem três.

Nesse contexto, pode haver um efeito de transição ecológica, um impacto positivo com menor necessidade de consumo de energia, possibilitando o uso de fontes renováveis e evitando o uso de fontes térmicas emissoras. Então, ecologicamente, ela pode ser positiva.

Agora, a minha percepção é: estou no setor elétrico há 15 anos, participo dessas discussões o tempo todo. E só por duas vezes fui provocado a ter esse tipo de debate, sobre como a mudança de escala de trabalho de 6x1 para 4x3 pode afetar o setor de energia e o meio ambiente. A primeira foi no contexto daquela matéria da Agência Pública, quando conversei com o jornalista. A segunda é agora.

Nunca participei de discussões assim e estou presente em muitos seminários, debates e eventos, praticamente todas as semanas, com diversos atores do Estado, empresas privadas, academia, terceiro setor e movimentos sociais que lidam com o setor de energia como um todo, seja no sistema interligado, seja nos setores de exclusão.

Desafios e caminhos possíveis

A redução da jornada de trabalho precisa ser pensada de forma sistêmica, respeitando as particularidades de cada setor e envolvendo governo, empresas e trabalhadores. Um dos pontos destacados é que diminuir os dias trabalhados sem ajustar a carga pode acabar concentrando o trabalho, o que compromete os benefícios esperados.

Também há o desafio de superar o discurso alarmista que associa a redução da jornada a riscos econômicos graves. O modelo atual, com jornadas extensas, é considerado insustentável, trazendo consequências como adoecimento, exclusão social e impactos ambientais. Para os especialistas, a adoção da escala 4x3 vai além de uma pauta trabalhista; ela é uma proposta que pode se transformar em um projeto de país, com ganhos sociais e econômicos duradouros.

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