20 Mai 2025
As eleições de domingo abrem uma crise na esquerda, fortalecem a direita e catapultam o Chega num país que se acreditava imune aos partidos de ultradireita.
A opinião é de Rubens Martins, jornalista e professor da UAL, em artigo publicado em El Diario, 19-05-2025.
Portugal é hoje um país onde as pessoas já não acreditam em jornalistas, cientistas ou políticos tradicionais. Um país onde a extrema-direita está no encalço do Partido Socialista, fundador da democracia portuguesa, como a segunda maior força.
As eleições deste domingo fizeram soar o alarme. O primeiro desses avisos é que a capacidade do Chega de explorar eleitoralmente o descontentamento de uma classe média em dificuldades não deve ser subestimada. Em Portugal, o asfixiante de quem viu o seu poder de compra despencar, com os preços dos alimentos a dispararem e a crise imobiliária a agravar-se, expressa-se num voto de protesto que levou a extrema-direita a um patamar nunca antes alcançado em 50 anos de eleições livres.
Ir ao supermercado custa praticamente o mesmo que em Espanha, ir à bomba de gasolina custa muito mais em Portugal do que do outro lado da fronteira e comprar uma botija de gás custa o dobro em Lisboa do que em Madrid. O país está acostumado a olhar para a Espanha com admiração, e agora muitos portugueses podem fazê-lo com inveja. Aqui, o salário mínimo é inferior a 900 euros, e mesmo aqueles que ganham mais do que isso não conseguem pagar a vida confortável que lhes foi prometida, eleição após eleição.
Os jovens se aglomeram nas casas dos pais, incapazes de sonhar com um lugar para morar. Novas moradias são construídas apenas para as classes altas ou investidores estrangeiros, e os centros históricos das cidades se tornaram parques temáticos para turistas, enquanto os portugueses se sentem isolados. O campo está esquecido e abandonado, sem serviços públicos nem transporte. Alguns tiveram que ficar em ambulâncias porque não havia nenhum hospital próximo aberto para recebê-los.
Quem ousa arriscar abrir um negócio entra numa espiral burocrática, a mesma a que tantos imigrantes estão sujeitos, acabando por desistir de um longo processo em que sempre falta mais um papel. Mas a extrema-direita quer nos fazer acreditar que Portugal é um país de "portas abertas", onde qualquer pessoa pode entrar sem grandes dificuldades.
Aqueles que “não fazem nada” (a maneira da extrema direita se referir aos beneficiários do bem-estar social) acreditam que há outra pessoa fazendo muito menos e recebendo muito mais do Estado. Os números contradizem isso, mas o Chega conseguiu transmitir a ideia de que há milhares de pessoas vivendo da assistência social sem contribuir para o Estado.
Não há razões únicas para a ascensão da extrema direita, mas não se pode entender a extrema direita sem entender um país que, na mitologia coletiva, atingiu seu auge em algum momento entre o final dos anos 1990 e o início dos anos 2000 — para um português, em algum momento entre a Expo 98 (em Lisboa) e a final da Eurocopa de 2004, que Portugal perdeu para os gregos — e desde então vem perdendo sua ambição de estar alinhado com a média europeia.
Além disso, há uma desconexão com os políticos tradicionais entre um segmento da população que está cada vez mais alienado da política e viciado nos clichês que vê em vídeos curtos nas redes sociais. Não é coincidência que o líder da extrema-direita portuguesa venha de um popular programa de entrevistas esportivo da TV a cabo, onde os fãs dos três maiores clubes passam horas gritando uns com os outros enquanto discutem sobre arbitragem e os bastidores do futebol, em vez de falar sobre o jogo. O líder do Chega, André Ventura, benfiquista, era imbatível naquele campo.
Lembro-me de muitas noites de eleição. Em 2019, quando André Ventura entrou sozinho no Parlamento, questionamo-nos sobre o que teria acontecido para que isso acontecesse. Em 2022, quando o Chega atingiu 12 assentos, questionámo-nos se a extrema-direita teria chegado ao seu limite. E não foi bem assim. Em 2024, achávamos que seria difícil continuar crescendo, mas chegou a 50 deputados. Agora serão pelo menos 58, havendo a possibilidade de, contando com os votos dos emigrantes — que em Portugal elegem quatro deputados —, chegarem a mais de 60 legisladores, ultrapassando o Partido Socialista, que se manteve nos 58.
Durante anos acreditámos que, em Portugal, éramos imunes à extrema-direita. Os traumas da ditadura justificaram isso. O partido de extrema-direita existente tinha números insignificantes nas pesquisas e foi rapidamente substituído por um partido de um homem só — o Chega — liderado por um homem bem-falante, com uma maquinaria bem lubrificada, mas sem quadros e com frequentes disputas internas. Nada disso abalou a marca de André Ventura. Nem mesmo os casos de alegada prostituição infantil entre militantes do partido ou o caso do deputado eleito pelo círculo eleitoral dos Açores que aproveitou as suas deslocações à Assembleia da República, em Lisboa, para furtar malas nos aeroportos.
Essas eleições fortaleceram a direita e resultaram no menor resultado da história para a esquerda. Não há cenários de governança estáveis, mas a partir de agora a direita pode fazer uma revisão constitucional por conta própria, sem a necessidade dos socialistas. Isso nunca tinha acontecido antes.
O primeiro-ministro de centro-direita Luís Montenegro ganhará mais nove cadeiras (elevando seu total atual para 89), após abrir caminho para eleições com um voto de desconfiança. Os portugueses acreditavam que o fato de a empresa pessoal do primeiro-ministro continuar a receber pagamentos corporativos enquanto Montenegro estava no poder não era motivo suficiente para sancioná-lo. Mas Montenegro está longe da maioria e espera contar com a boa vontade dos socialistas para continuar exercendo o poder executivo.
A esquerda está agora numa crise profunda: os socialistas ficaram sem líder, os comunistas perderam mais um deputado e o Bloco de Esquerda ficou apenas com o seu líder na Assembleia da República. Levará algum tempo para recomeçar, embora a perspectiva de instabilidade possa levar o país de volta a eleições antecipadas em pouco mais de um ano.
Há pouco mais de 50 anos, em 25 de abril de 1975, os portugueses votaram pela primeira vez em democracia. Naquele dia houve uma participação histórica que nunca se repetiu: 92%. Antes dessas eleições, numa das poucas entrevistas concedidas pelo homem forte da Revolução dos Cravos, o Capitão Salgueiro Maia, declarou ao jornal Expresso que "não há limites para as possibilidades de escolha; se o povo quiser ir para o inferno, nós iremos para o inferno". Não se sabe para onde Portugal está indo, mas o país nunca se aventurou em território tão incerto desde que votou pela primeira vez, há meio século.