Papa Francisco propõe uma aproximação com a literatura, e à arte em sentido amplo, como um caminho de resgate à nossa sensibilidade e com isso nossa humanidade
"A arte e a literatura não somente olham para o Infinito, para o Absoluto, elas o transformam em linguagem e fazem mundos. Esta é uma das razões pelas quais a arte, convertida em ativo financeiro ou em objeto de utilidade, reduz sua potencialidade humanista".
O artigo é de Ricardo Machado, jornalista, doutor em Cultura e Significação/PPGCOM-UFRGS e professor da Universidade Federal do Oeste da Bahia – UFOB.
O que teria um Papa a nos dizer sobre arte ou literatura? Tal questão se abre em dois flancos, que se vislumbram melhor quando expressos em outra pergunta: quem é o “nós”? A referência que motiva tais reflexões é a Carta do Santo Padre Francisco sobre o papel da literatura na educação, publicada em julho de 2024.
O texto dirigido a sacerdotes e fiéis é disruptivo em dois sentidos. O primeiro é que ele não é um texto eclesial. Em vez disso, volta-se a todos nós, um público mais amplo e não católico. O segundo sentido explica o primeiro, pois o texto rompe com uma tradição de mais de cinco séculos de um olhar censor da Igreja Católica em relação a obras e autores, incluindo nomes insuspeitos como Descartes ou Kant. O chamado Index foi publicado em 1559 e só deixou de vigorar em 1966.
As entrevistas e reflexões que se desdobram de maneira profunda neste número da IHU On-Line dizem respeito a uma visão laica sobre arte e literatura. Elas nos conectam à pergunta pela arte, quando ela ocorre e como ela ocorre. De certo modo essa é a pergunta por nossa própria humanidade, que nos leva a refletir sobre a condição humana, no sentido profundo, de dar ouvidos e vistas à alteridade, de sair da grandiloquência financista e fascista de nosso tempo e ser capaz de ver o rosto do outro, tal como propôs Lévinas.
Não se trata de pensar que a arte tenha o dever ou a capacidade de, necessariamente, nos salvar de nossa própria miséria. Esta é uma visão falsa e utilitarista. Compreender que a condição de pessoa humana pressupõe sempre um certo deslocamento em direção aos desfavorecidos: como na escolha de Cristo narrada no Evangelho, implica tomar o ponto de vista de quem sofre opressão, exclusão e violência.
É na arte e na literatura que o abismo que habita nossa existência se manifesta de maneira mais clara e límpida, embora, às vezes, dolorosa. A experiência que conhecemos de Jesus Cristo importa mais pelos ecos que encontra no tempo presente, em que milhões de perseguidos e refugiados sentem na pele e na carne a mais dolorosa experiência cristã, que no seu valor metafísico de crença ou não na fé católica.
No texto do Papa Francisco, consta: “Todos devemos estar atentos para nunca perder de vista a ‘carne’ de Jesus Cristo: aquela carne feita de paixões, emoções, sentimentos, histórias concretas, de mãos que tocam e curam, de olhares que libertam e encorajam, de hospitalidade, perdão, indignação, coragem, intrepidez; numa palavra, de amor”.
Para o pontífice, literatura é ouvir a voz de alguém. Que outra manifestação exerce tão bem a locução, mas sobretudo a audição da voz do outro, que nos tira de nosso ensimesmamento radical e nos coloca diante do outro, com suas possibilidades e desconfortos.
A arte e a literatura não somente olham para o Infinito, para o Absoluto, elas o transformam em linguagem e fazem mundos. Esta é uma das razões pelas quais a arte, convertida em ativo financeiro ou em objeto de utilidade, reduz sua potencialidade humanista.
Por outro lado, a arte negocia melhor com a realidade, mesmo quando fabulosa ou fantasiosa, quando formula de maneira trágica ou cômica o excesso de nossa própria existência, revelando-nos uma dimensão de realidade que não é representativa, mas que nos aproxima de forma mais sensível ao real.
“Distância, lentidão e liberdade são características de uma abordagem da realidade que encontra precisamente na literatura uma forma de expressão, não exclusiva, mas privilegiada. A literatura torna-se, então, um ginásio onde se treina o olhar para procurar e explorar a verdade das pessoas e das situações como mistério, carregadas de um excesso de sentido, que só parcialmente pode se manifestar em categorias, esquemas explicativos, dinâmicas lineares de causa-efeito, meio-fim”, pondera o Papa Francisco.
Se a realidade se impõe como impossibilidade de “calçar os sapatos do outro”, a arte e a literatura se abrem como possibilidade de ver com os olhos do outro. O que levaríamos uma vida para aprender, experimentamos em prazeres e dissabores com poucas horas de leitura a um romance. Escaparmos do horror da guerra, por um distanciamento histórico ou geográfico, nos permite, hoje, sentir a dor outro diante do horror do bombardeio à Guernica ou Gaza, cujo abismo entre nós e eles é coberto por obras como o célebre quadro de Pablo Picasso ou um quadrinho de Joe Sacco, como Notas sobre Gaza (2010) ou Palestina (2023).
Essas dimensões artísticas alargam nossa humanidade e nos colocam em contato com o outro. “O poder empático da imaginação é um veículo fundamental para essa capacidade de identificação com o ponto de vista, a condição, o sentimento dos outros, sem a qual não há solidariedade, partilha, compaixão, misericórdia. Ao ler (ou contemplar), descobrimos que o que sentimos não é só nosso, é universal, e, por isso, até a pessoa mais abandonada não se sente sozinha”, propõe Francisco.
Quando o imperativo contemporâneo nos convida a falar sem limites ou medidas, escutar, ter olhos e ouvidos complacentes diante do Outro, torna-se um gesto, ao mesmo tempo, de desobediência e de profunda conexão com a alteridade. É nesse intervalo entre o eu o Outro que arte se revela, mais do que isso nos convida a esta postura e nos desafia a estender nossa humanidade aos limites da fantasia, a mais real das realidades.