Para o professor e pesquisador argentino, repensar o estatuto da arte requer recolocarmos a pergunta sobre o que é arte em dimensão política e tecnológica, reformulando-a em um contexto não utilitarista
O livro de Hernán Borisonik, Persistência da pergunta pela arte (Cultura e Barbárie, 2024), traz uma discussão em tudo pertinente e atual, que são precisamente as mudanças na relação entre arte, política e tecnologia. Nesta entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o autor lança um olhar sobre as questões em torno da arte na atualidade.
“A pergunta pela arte não se esgota em si mesma; ela opera como uma força que rompe e deforma. Então, para encontrar sua multiplicidade, sua forma plural, em vez de ‘o que é’, hoje podemos explorar outras questões, como ‘quando isso acontece’, ‘como se manifesta’, ‘quais fibras mobiliza’, e somente a partir delas podemos apontar para a configuração de uma dimensão que fundamenta e possibilita essas outras questões”, explica Borisonik.
“Se eu tivesse que citar alguns dos temas centrais desenvolvidos no livro, eu diria que ele, sem dúvida, retorna à relação entre arte e design, à pergunta da autonomia e às relações tensas entre arte, mundo e subjetividade”, propõe. “O desejo não é mais apenas uma força motriz de criação ou transgressão, mas também uma produção gerenciada, modelada e otimizada de maneiras muito específicas. Estamos constantemente à beira de sua captura pela lógica da valorização econômica e do controle social. Na medida em que o desejo se torna um mecanismo previsível, seu potencial emancipatório se dilui: ele não desafia mais a ordem estabelecida, mas o alimenta”, complementa.
É importante, no entanto, não pensar a arte em um sentido de régua moral ou mesmo de salvação de nossa humanidade. O caso é escapar ao imperativo da funcionalidade. “Não é que a arte deva cumprir uma função específica dentro da ordem social, mas que sem a arte a experiência humana se empobrece. Se isso nos torna melhores ou não é uma questão em aberto, em termos políticos e metafísicos, já que não considero que nossa existência tenha significado em si mesma. No entanto, a arte continua sendo um dos poucos espaços onde a humanidade pode perceber a si mesma além de sua mera sobrevivência”, sublinha.
Hernán Borisonik (Foto: Reprodução | Youtube)
Hernán Borisonik, cientista político, doutor em sociologia, é diretor do @centrocienciaypensamiento da Escola de Humanidades da Universidade Nacional de San Martín/Argentina. É autor, entre outros, de Dinheiro Sagrado: uma crítica a partir de Aristóteles (Cultura e Barbárie, 2021) e $uporte: o uso do dinheiro nas artes visuais (Cultura e Barbárie, 2017)
IHU – O que é a arte hoje?
Hernán Borisonik – É quase impossível responder “o que é arte?” de forma completa ou fechada na atualidade. O fato de a pergunta já precisar ser relativizada (“o que é arte hoje”, e não “o que é arte” em geral) é prova de tal dificuldade. Para responder, precisamos nos aprofundar em um campo aberto, atravessado por vetores muito diversos, que se intensifica e se complexifica a cada tentativa de nomeá-lo. Se a arte contemporânea nos ensina algo, é que não estamos diante de uma era de arte que questiona em busca de essências, mas sim que devemos enfrentar uma interrogação que persiste, desmonta e reconfigura o próprio campo que interroga.
A pergunta pela arte não se esgota em si mesma; ela opera como uma força que rompe e deforma. Então, para encontrar sua multiplicidade, sua forma plural, em vez de “o que é”, hoje podemos explorar outras questões, como “quando isso acontece”, “como se manifesta”, “quais fibras mobiliza”, e somente a partir delas podemos apontar para a configuração de uma dimensão que fundamenta e possibilita essas outras questões.
Do meu ponto de vista, há algo como um campo, um espaço ou uma intensidade da experiência humana de existir que chamamos de “arte” desde o Renascimento, que existe além dos campos profissionais ou comerciais que são estruturados a partir desse núcleo evasivo. Justamente por isso, e hoje mais do que nunca, devemos ter em mente que a experiência artística é atravessada pelas tensões entre a criação sensível e sua captura pelos fluxos financeiros, linguagens de design e tecnologias de autoleitura que moldam nossas práticas.
É justamente nessa tensão que a arte encontra seu poder, não de escapar, mas de insistir, de quebrar esses mesmos códigos e mostrar que há algo irredutível no sensível, algo que não pode ser completamente codificado ou traduzido. A arte, em sua forma atual, oscila entre uma abertura para o não dito (o não formulado) e uma afirmação de certas formas que são ameaçadas por um mundo muito hostil à diferença e à preservação da vida em geral. Não podemos escapar da arte porque, mesmo que não a definamos, ela passa por nós, nos afeta e nos transforma.
Penso na famosa foto do buraco negro tirada em 2019, que não era realmente uma “foto” (no sentido de uma captura), mas uma imagem construída a partir de milhões de pacotes de dados, e o que é mostrado não é o buraco negro em si, mas a luz que o cerca. Algo semelhante acontece com a arte: talvez não consigamos chegar a uma definição definitiva, mas podemos observar como ela afeta o mundo. Por isso, repito, acredito que é importante insistir na questão, mantê-la viva e tensa, como forma de abrir caminhos para novos futuros possíveis.
IHU – Você publicou no Brasil um livro intitulado Persistência da pergunta pela arte (2024). A obra lança um olhar rigoroso e criativo sobre questões sociais, políticas e ambientais a partir do campo da arte. Pode nos falar do livro e como ele surgiu?
Hernán Borisonik – Talvez contar brevemente a minha trajetória possa ajudar a entender a perspectiva na qual escrevi o livro. Por quase 20 anos, tenho me dedicado a pesquisar e ensinar Filosofia Política e o foco central das minhas explorações tem sido o dinheiro, desde suas primeiras formulações na Grécia antiga até as criptomoedas e as formas contemporâneas de trocas. Meu primeiro livro se chama “Dinheiro Sagrado: uma crítica a partir de Aristóteles” (onde trabalhei especificamente uma crítica à acumulação) e o segundo é “$uporte” (onde a arte está vinculada à materialidade do dinheiro).
Desse longo trabalho surgiu uma hipótese que ainda estou desenvolvendo: a transição da desmaterialização para a desimaginação. A ideia é que a opacidade em torno do significado da padronização digital e algorítmica obstrui nossa capacidade de conceber o mundo de maneiras radicais. E embora se insista que os processos de abstração (muito claros nos meios monetários, mas também na arte e nas comunicações) implicam uma redução da materialidade (porque a “experiência do usuário” é de imediatismo e imaterialidade), cabos, fibras ópticas e servidores continuam sendo elementos físicos subjacentes e necessários, tanto quanto a energia, as substâncias e o trabalho humano usados para criá-los. Diante disso, senti que era importante revisitar a questão da arte como campo de significação, para ver como ela se atualiza hoje e quais fibras ela mobiliza.
Reprodução da capa de Persistência da pergunta pela arte (Foto: Divulgação)
A escrita partiu de uma preocupação central: o que podemos pensar depois da pós-modernidade, que categorias precisamos convocar no século XXI? Diante da digitalização da experiência de vida e das evidências da crise ambiental, ocorrem transformações radicais na subjetividade. No mundo da arte, se antes o artista era concebido como uma ponte para o sublime, hoje seu lugar parece mais o de uma testemunha do mundo profano. Mas, ao mesmo tempo, o foco da arte mudou da obra para o artista. Estamos diante de uma nova subjetividade centrada na figura do usuário, fundada na democratização de baixa intensidade e no controle que as plataformas exercem sobre a circulação das imagens. Portanto, todo objeto cultural é lido como “conteúdo” em algum momento de sua existência.
Do ponto de vista metodológico, o livro se baseia em dois autores centrais na minha abordagem dos objetos de estudo: Aristóteles e Simmel. Ambos compartilham uma maneira de pensar que busca cercar seu objeto, iluminando-o a partir de diferentes perspectivas. A partir daí, busquei propor uma exploração que não se limitasse a um único ângulo, mas que se desdobrasse em múltiplas relações e perspectivas: não definir a arte, mas abordar seus efeitos, suas mutações, suas tensões.
Se eu tivesse que citar alguns dos temas centrais desenvolvidos no livro, eu diria que ele, sem dúvida, retorna à relação entre arte e design, à pergunta da autonomia e às relações tensas entre arte, mundo e subjetividade.
IHU – Franco “Bifo” Berardi é um autor que aparece em alguns momentos do livro. Ele é citado para argumentar que o desejo sem prazer “se converte em uma corrida sem fim e sem alegria”. O que essa dimensão revela sobre o mundo que vivemos?
Hernán Borisonik – A perspectiva de Bifo sintetiza um mal-estar característico dos nossos tempos. Vivemos em um mundo onde o desejo foi despojado de sua dimensão erótica, isto é, de sua capacidade de gerar prazer, diversão e desfrute. O que resta é uma compulsão sem objetivo, uma aceleração vazia que encontra satisfação apenas em sua própria perpetuação. Isto é especialmente evidente na lógica financeira, onde a acumulação não responde mais a necessidades concretas, mas ao princípio abstrato de crescimento ilimitado, de origem religiosa. No plano subjetivo, algo semelhante acontece: o desejo fica preso numa dinâmica de produtividade infinita, na qual cada objetivo alcançado se dissolve imediatamente na demanda pelo próximo; parece impossível conceber uma experiência plena (que não é o mesmo que eterna).
No mundo da arte, isso se traduz em uma saturação de produção e circulação de imagens, muitas vezes impulsionada mais pela lógica algorítmica da visibilidade do que pela necessidade de exploração estética ou conceitual. Boris Groys descreve isso claramente quando ressalta que hoje há mais pessoas gerando imagens do que espectadores interessados em vê-las. Em outras palavras, a arte, como tantas outras dimensões da vida, parece ter sido subjugada a essa lógica financeira, onde o acúmulo de signos substitui a intensidade da prática.
A questão é, diante desse diagnóstico, como escapar dessa dinâmica. Além do poder de interrupção, da capacidade de escapar do ciclo de eficiência e lucratividade (coisas que valorizo muito, mas que hoje são quase quiméricos), acredito ser essencial resgatar os aspectos mais eróticos da ação. Pensar a arte dessa forma implica recuperar espaços de demora, de atrito, de resistência à compulsão pela circulação.
IHU – Quais os riscos de positivarmos o desejo, considerando-o que ele é um campo de disputas de projetos políticos, em geral, antagônicos?
Hernán Borisonik – Sim, o desejo é um campo de luta. Justamente por isso sua positivação não é neutra ou inocente. Um dos temas que percorre o livro é como as transformações contemporâneas na arte e na cultura foram acompanhadas por uma reconfiguração do desejo em direção a formas padronizadas por plataformas globais muito poderosas. O desejo não é mais apenas uma força motriz de criação ou transgressão, mas também uma produção gerenciada, modelada e otimizada de maneiras muito específicas. Estamos constantemente à beira de sua captura pela lógica da valorização econômica e do controle social. Na medida em que o desejo se torna um mecanismo previsível, seu potencial emancipatório se dilui: ele não desafia mais a ordem estabelecida, mas o alimenta.
Um desejo positivo, afirmado e inabalável pode ser funcional para formas de sujeição, classificação e exploração. Como Boris Groys aponta, a figura do artista contemporâneo hoje se confunde com a de um designer de si mesmo, alguém que deve administrar sua identidade, seu trabalho e sua visibilidade dentro de um mercado saturado. O desejo, neste contexto, é canalizado como autoexploração. E, como o livro sugere, isso também se estende à esfera política, onde as lutas por visibilidade, relevância e reconhecimento, embora necessárias, podem ser rapidamente neutralizadas ao serem transformadas em nichos de mercado ou símbolos de consumo.
É por isso que é necessário pensar no desejo não apenas como uma afirmação, mas como um conflito. Nem toda intensificação do desejo é emancipatória, e nem toda institucionalização implica censura. O desafio é encontrar formas de mediar o desejo que não se traduzam em violência contra minorias ou em frases cativantes, mas estéreis.
IHU – Quais os limites entre arte e design? O que os diferem, ainda que, cada vez mais, pertençam a regimes de visibilidade muito próximos?
Hernán Borisonik – A fronteira entre arte e design não é fixa nem estável, mas sua diferenciação continua relevante em um contexto em que ambos operam em regimes de visibilidade cada vez mais próximos. De muitas maneiras, o design hoje substituiu a arte, não apenas nos modos de circulação, mas também na própria lógica de produção e recepção.
O design é baseado na funcionalidade e otimização: suas formas são orientadas para resolver problemas e serem eficientes dentro de um sistema que busca utilidade, clareza e adaptação a um ambiente pré-configurado. Em outras palavras: o design tem como premissa servir, fornecer soluções, o que o torna uma parte fundamental de nossas vidas (pense em computadores, pernas protéticas, placas de trânsito, etc.). A arte, por outro lado, não tem essa demanda por funcionalidade. Não está subordinada a uma necessidade externa ou a um propósito predeterminado. Assim, a fronteira não é apenas formal, mas política: enquanto o design busca organizar a experiência e projetar futuros previsíveis, a arte pode desorganizar e introduzir interrupções, falhas e questionamentos.
Isso não significa que a relação entre arte e design deva ser pensada em termos puramente dicotômicos. De fato, em vários pontos do livro é reconhecido que os movimentos históricos de vanguarda já haviam explorado essa fronteira: do construtivismo soviético à Bauhaus, do pop a certas práticas contemporâneas que tensionam a funcionalidade do design a ponto de esvaziá-lo ou subvertê-lo. Mas o que diferencia a arte do design, mesmo nessas interseções, é que a arte pode se dar ao luxo da ineficiência, ambiguidade e falta de resolução. Ela pode existir sem ser imediatamente traduzida em uma função ou significado preciso. No entanto, muitas formas de arte contemporâneas são vistas através das lentes do design, pois são avaliadas com base em critérios como visibilidade, impacto, viralidade, capacidade de integração aos canais de consumo e validação imediata.
O sistema da arte contemporânea vem adotando a lógica do branding, da UX (user experience) e da produção de imagens otimizadas para plataformas, buscando garantir sua circulação em formatos e dispositivos que exigem legibilidade e parametrização. Além disso, a onipresença do design levou cada indivíduo (até mesmo artistas) a se tornar seu próprio designer. Cada “perfil” é um projeto com curadoria visual absorvido pela estetização do capital.
No entanto, isso não encerra o debate arte-design…
IHU – Claro, você disse que considerando o ser humano como essa espécie que precisa transformar suas condições imediatas para sobreviver, qual o papel da arte nesse processo? Em suma, como a arte pode nos tornar pessoas melhores?
Hernán Borisonik – Se entendermos o ser humano como uma espécie que para se adaptar ao seu entorno o transforma ativa e radicalmente para sobreviver, a arte desempenha um papel fundamental nesse processo. Não só porque nos permite imaginar o que ainda não existe, antecipar realidades diferentes e questionar o que é dado, ou porque cria formas de perceber e habitar o mundo, mas também porque é parte fundamental de uma experiência que nos constitui. A arte é uma das poucas práticas humanas que pode operar fora da lógica estritamente instrumental, mas seu papel não é meramente decorativo ou ornamental, mas profundamente estrutural na construção de subjetividades e comunidades.
A arte faz parte da necessidade humana de transformar o ambiente para poder habitá-lo, uma espécie de ortopedia natural. Visto sob essa luz, o Antropoceno representa um passo em falso nessa história: uma transformação ambiental que coloca a própria sobrevivência em risco; não uma perturbação, mas uma versão extrema de uma tendência inerente à nossa espécie. No entanto, isso não deve obscurecer a crítica à arte mercantilizada, à biopolítica ou ao solucionismo tecnológico: essas não são consequências inevitáveis da criatividade humana, mas sim o resultado de lutas políticas muito específicas. Nesse esquema, a acumulação e o lucro substituem o verdadeiro significado da transformação: tornar a vida mais habitável e o mundo mais habitável.
Agora, considerar se a arte pode nos tornar “pessoas melhores” pode implicar uma ideia de progresso moral que, em muitos aspectos, é problemática. O que ouso afirmar é que a arte expande nossas capacidades e potencialidades, que há algo que vibra dentro de nós e que não pode ser completamente padronizado. Estética não é um luxo, mas uma necessidade. Não é que a arte deva cumprir uma função específica dentro da ordem social, mas que sem a arte a experiência humana se empobrece. Se isso nos torna melhores ou não é uma questão em aberto, em termos políticos e metafísicos, já que não considero que nossa existência tenha significado em si mesma. No entanto, a arte continua sendo um dos poucos espaços onde a humanidade pode perceber a si mesma além de sua mera sobrevivência.
IHU – Como se caracteriza a era pós-textual e pós-teórica que dá forma às disputas políticas contemporâneas? Como esse debate está ligado às artes?
Hernán Borisonik – A ideia de uma era “pós-textual” ou “pós-teórica” vem de algumas tradições muito textuais e teóricas. As principais referências incluem Katherine Hayles, Rosi Braidotti e Claire Colebrook, que postularam que a chegada do Antropoceno exige uma reconsideração da teoria e da política para ir além das construções humanas e textuais, incorporando uma compreensão mais profunda da materialidade e da finitude. Isso sugere que devemos abordar as realidades pós-humanas e as complexidades de um mundo em crise, superando as limitações de abordagens focadas exclusivamente em texto e representação.
Na Argentina e no Brasil, vários grupos estão trabalhando nessas questões (principalmente com base em Latour e Haraway), repensando a agência e sua distribuição entre entidades humanas e não humanas. Há um artigo de Emmanuel Biset que aponta que a teoria contemporânea está se movendo em uma “direção pós-textual”, contrária à “virada linguística”, que se envolve com o realismo especulativo e busca repensar o próprio status e sentido da teoria. Com isso, por meio do pós-humanismo, novos paradoxos (e até mesmo aporias) colocam uma tensão renovada nas intensidades do pensamento.
No âmbito das artes, essa mudança se manifestou em práticas que buscam transcender a representação simbólica para se envolver diretamente com a materialidade, desafiando as distinções tradicionais entre sujeito e objeto, teoria e prática. Como exemplo, posso pensar em El libro de las diez mil cosas, apresentado pelo coletivo La Intermundial Holobiente na Documenta 15. A obra se situa em uma área “que escapa ao design humano”, onde foi proposto um habitat para um livro criado coletivamente por humanos e não humanos que “contribuem para que o visitante viva uma experiência contemplativa e relaxante”.
O que parece emergir dessas práticas é uma subjetividade mais incoerente e distribuída do que autônoma e consciente. O corpo é questionado a partir de seus poderes e relações, tanto de seus aspectos biológicos quanto de suas ligações com a tecnologia, de modo que a distinção entre mediações humanas e não humanas se torna problemática.
IHU – Em um trecho do livro, está escrito: “Hoje tudo é verdadeiro (porque está aí) e nada o é (porque existe na linguagem)”. O que essa encruzilhada demonstra e como sairmos dela?
Hernán Borisonik – Essa encruzilhada, ou paradoxo, entre ser e linguagem evidencia uma das tensões centrais do nosso tempo: a coexistência entre uma saturação do visível e uma crise da verdade. Por um lado, tudo o que aparece no espaço digital ou midiático é considerado “real” simplesmente porque existe como dados acessíveis. Por outro lado, a proliferação infinita de discursos, imagens e interpretações dissolve qualquer noção estável de verdade. Vivemos no reino das notícias falsas, mas não as vivenciamos como rumores falsificáveis, mas sim como certezas que podemos compartilhar a partir de nossos dispositivos.
Esse colapso entre presença e verdade é consequência direta de um regime de visibilidade em que a informação não é mais filtrada ou distribuída com base em critérios de verificação, mas sim com base em sua capacidade de circular e influenciar. A imediatez da existência prevalece sobre a reflexão, e o fato de algo “estar lá” se torna mais importante do que a questão de seu significado ou origem. Ao mesmo tempo, a verdade se desintegra em uma multiplicidade de histórias que, longe de dialogar, coexistem sem possibilidade de síntese.
O livro sugere que não há saída para esse impasse, mas existem estratégias para navegar por ele de forma crítica. Uma delas é recuperar a arte como um espaço onde essa tensão não se resolve, mas se intensifica. Em um mundo onde tudo é informação e nada é sólido, a arte pode atuar como uma zona de atrito, onde a verdade não é tomada como garantida, mas sim que se põe em crise de maneira produtiva. Em vez de responder com mais afirmações ou certezas, a arte pode insistir em questionar, em interromper, em criar espaços onde a verdade não seja simplesmente um dado circulante, mas uma experiência a ser considerada, habitada, transformada.
IHU – Especialmente nas redes sociais, as imagens que produzimos e publicamos são visíveis para um grupo restrito de pessoas (a menos que sejam impulsionadas por tráfego pago). No entanto, essas imagens, que são, sob certo sentido, invisíveis, nos observam. Que mundo é este em que as imagens perdem a função de mediação ou representação e passam a cumprir o papel de vigilantes?
Hernán Borisonik – As imagens contemporâneas deixaram de ser apenas meios de expressão ou representação e assumiram também o papel de nós dentro de uma rede de vigilância e controle. Nas mídias sociais e ambientes digitais, imagens que circulam inocentemente entre usuários são processadas por infraestruturas algorítmicas que extraem informações, modelam comportamentos e reforçam sistemas de classificação.
Artistas como Trevor Paglen e Kim Albrecht exploraram essas questões, entendendo que não se trata apenas do que as imagens mostram, mas de como elas parecem: participar da circulação e do consumo de imagens nos sujeita a dispositivos que registram, categorizam e traduzem a realidade em dados operacionais. Estamos diante de uma exomatização e automação da percepção humana em redes e circuitos invisíveis de exploração algorítmica que poderiam ser cartografados.
No livro, argumento que essa mudança implica uma profunda transformação na relação entre arte, política e tecnologia. Se antes a imagem tinha um papel simbólico e narrativo, agora ela é primariamente funcional e extrativa: não é tanto o que ela significa que importa, mas sim o que ela pode fazer dentro de um ecossistema de fluxos e cálculos. As imagens funcionam então como entrada para vigilância distribuída, operando em segundo plano para otimizar os sistemas de controle social e econômico. Hoje sabemos que uma resposta responsável não é exigir que o público abandone as mídias sociais ou o consumo de imagens. Teremos que ver como podemos hackear seus usos, desviar seus fluxos e explorar sua opacidade.
IHU – Como a “potência do não” aparece como alternativa aos imperativos econômicos contemporâneos? Como escapar desse mundo hipervigiado?
Hernán Borisonik – A “potência do não” aparece em meus escritos como o reverso do imperativo do crescimento e do acionismo contemporâneos. Não penso nisso como pura “resistência”, mas como uma capacidade ativa de suspender, de não atualizar certos poderes, de não responder automaticamente às lógicas de produtividade e visibilidade que governam o capitalismo atual.
Aristóteles já distinguia entre dynamis (potência) como a capacidade de pôr algo em ação (de “fazer algo”) e dynamis me einai (potência do não), que é a possibilidade de não atualizar uma capacidade (aquela que às vezes também chama de adynamia ou impotência). Agamben retomou essa ideia para pensar a conservação de um poder que não se esgota em seu exercício. Em geral, nos seres vivos, a potência é determinada biológica ou morfologicamente como uma espécie de programação, mas os seres humanos podem não ser ou não fazer. Não é o ato em si que mede seu poder, mas a possibilidade de sua suspensão, sua capacidade de permanecer no limiar entre a atualização e a reserva. Não é a ausência de poder, mas a capacidade de não agir (dynamis me energein). Para Agamben, há uma dimensão de poder que pode ser desfeita.
Se existe algo como uma autonomia da arte, se isso é concebível hoje, ela deve estar fora do design programado, da autoleitura da linguagem financeira ou dos fetiches artísticos da moda que nos forçam a definir, agir e nos atualizar constantemente. Não é uma renúncia absoluta, mas uma maneira de operar. Esse princípio também pode nos ajudar a pensar como escapar de um mundo hipervigilante. Nesta era digital, o poder não parece estar na posse do programa, do algoritmo, de algo que é opaco até mesmo para seus próprios donos. As pessoas são previsíveis, e os algoritmos são imprevisíveis, então até mesmo expor o funcionamento de alguns meios e programas tem potencial político, já que parte da função dos dispositivos é o próprio ocultamento. O desafio é criar uma arte fora da “arte” e uma vida fora da “vida”: a potência de não ser apenas o que se é hoje. Nem valor de uso, nem valor de troca, nem valor de exposição.
IHU – Qual a pertinência da arte hoje?
Hernán Borisonik – Se separarmos a arte como instância, dobra ou intensidade do mercado, sistema ou “mundo” da arte, será mais fácil ver sua relevância. É claro que, vivendo em um sistema onde tudo se torna uma mercadoria, onde o desejo é gerenciado por algoritmos e onde as imagens não mais representam, mas monitoram, a arte pode parecer um espaço fútil. No entanto, é um tipo de experiência que insiste em interromper ou distorcer essas lógicas ao mostrar relações não lineares, unindo dimensões ou escalas que não parecem relacionadas. Por isso mesmo, a arte retém um poder que não pode ser completamente absorvido: o poder do não, a capacidade de abrir um “fora” a partir de dentro, de não atualizar imediatamente as possibilidades, mas de mantê-las em tensão. Nesse sentido, a relevância da arte hoje está menos em seus objetos ou circuitos do que em sua persistência como forma de suspensão.
A arte não é algo necessário no sentido funcional do termo, mas é fundamental porque é a maneira pela qual desenvolvemos outras relações com o tempo, com o contexto, com a experiência de vida. Isso pode nos lembrar que ainda há algo imprevisível e erotizar sua projeção. A arte pode nos colocar frente a frente com um “universalismo particular” (oposto ao “particularismo universal” que prevaleceu por tantos séculos) e restabelecer o conflito insolúvel da existência, expor a beleza e a violência da abstração e rejeitar as tentações da separação.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Hernán Borisonik – Bem, além de tudo isso, acredito também que a arte e a universidade, como instituições e espaços onde existe um tipo de conexão social, merecem e devem ser defendidas hoje diante dos ataques que nossas sociedades estão sofrendo, principalmente aqui no Sul, onde as desigualdades são duplas. Então, muito obrigado por insistir nessa tarefa.