29 Março 2025
"Se o catolicismo à brasileira é sinfônico, misturando múltiplas vozes, o neopentecostalismo, ao invadir terreiros e quebrar imagens de santos em praça pública (surtos iconoclásticos dignos dos que assolaram o Império Bizantino), emerge, ao contrário, como ruído. Os perpetradores desses gestos de iconoclastia quase militante não rejeitam apenas símbolos, mas o próprio 'pacto da cordialidade' ", escreve Eberval Gadelha Figueiredo Jr, em artigo publicado por A Terra é redonda, 27-03-205.
Eberval Gadelha Figueiredo Jr. é mestrando em Filosofia e Teoria Geral do Direito na Universidade de São Paulo (USP).
Nem mesmo nossos ateus escapam do catolicismo cultural, carregando no inconsciente a linguagem dos santos e das promessas.
O Brasil é um verdadeiro laboratório de contradições religiosas: uma estranha terra de crucifixos em repartições públicas e terreiros nos quintais; um país repleto de teólogos da libertação, congressistas neopentecostais e pais de santo rasputinescos.[1] Por trás de todo o aparente caos, porém, é plenamente possível vislumbrar uma ordem sutil e engenhosa na vida espiritual brasileira.
Com o perdão do clichê, uma boa maneira de entender esse fenômeno é apelar à velha noção holandiana de cordialidade. Em Raízes do Brasil (1936), Sérgio Buarque de Holanda define o homem cordial, tipo endemicamente brasileiro, como aquele que privilegia a materialidade das relações pessoais sobre a abstração fria e impessoal das instituições. Segundo o autor, essa lógica manifesta-se inclusive no campo da religiosidade.
Eis que entre nós, diz Sérgio Buarque de Holanda, a fé católica não se baseia em credos rígidos, mas em promessas, festas juninas e pactos afetivos com santos, sejam eles canonizados formalmente pela Igreja ou apenas pela devoção empírica do povo. Aqui, a missa dominical não diz respeito a doutrinas, mas a uma forma de sociabilidade ritualizada.[2]
Em números tanto percentuais quanto absolutos, o Brasil é um país de população católica expressiva. Conforme já exposto, no entanto, nosso catolicismo se manifesta em geral não sob a forma de uma doutrina religiosa inflexível, e sim como uma matriz espiritual-sociocultural bastante difusa, mas nem por isso supérflua: trata-se, pois, de uma gramática da fé segundo a qual outras religiões flexionam-se, por variadas razões (algumas, diga-se de passagem, mais violentas que outras).
O exemplo mais célebre é o sincretismo afrodiaspórico, pois todos sabem que, no Brasil, os orixás costumam vestir-se de santos. Para burlar a vigilância religiosa colonial, no sigilo das senzalas de antanho foi forjada uma teologia de sobreposição, em que cada orixá era associado a um santo correspondente (Oxóssi/São Sebastião, Iemanjá/Nossa Senhora da Conceição).
Hoje, para melhor atingir o público das classes médias urbanas, até o zen-budismo trazido ao Brasil pelos japoneses comunica-se em termos tais como “missas” e “abades”,[3] porque o idioma religioso hegemônico é o do catolicismo. Até mesmo aqueles que se declaram “sem religião” com frequência reproduzem sensibilidades marcadamente católicas.
Em um país como o nosso, que já foi um Estado confessional e onde a única educação formal disponível, por muito tempo, foi aquela fornecida pelos jesuítas, a existência de tantos católicos culturais não é surpreendente, bem como não o é a existência de indivíduos culturalmente muçulmanos na Turquia ou culturalmente protestantes em partes dos Estados Unidos, ou até mesmo a insistente influência dos valores confucianos na China, a despeito dos esforços da Revolução Cultural em sentido contrário.
Assim, o “catolicismo cordial” consiste em uma matriz flexível, avessa a ortodoxias, na qual o sincretismo emerge como um pacto de conveniência mútua entre paradigmas diversos. Uma fé sem dogma, uma religião sem culpa, que não exige conversão total, mas se contenta muitas vezes com adesões pró-forma. Não se trata, entretanto, de um fenômeno exclusivo a nós.
Max Stirner, por exemplo, que viveu em um contexto muito diferente daquele de Sérgio Buarque, observou que, em comparação com o protestantismo então dominante na Prússia, o catolicismo apresenta a vantagem de situar a autoridade espiritual nas instituições eclesiásticas, não na consciência individual.[4] O corolário da noção protestante de uma “relação pessoal com Deus” é a imanentização da culpa pelo pecado, internalizada e perpétua. Os católicos, por outro lado, mediante o sacramento da confissão, conseguem ter seus pecados absolvidos sem grandes traumas existenciais.
Por isso, a chamada Catholic guilt (“culpa católica”) existe quase que apenas na mente de um público secular anglo-americano de sensibilidades culturais protestantes, que provavelmente teve mais contato com um austero catolicismo à irlandesa. Criaram a imagem fantástica de uma religião de masoquistas neuróticos, quando de fato, como observou Max Stirner, os católicos deixam o confessionário livres, leves e soltos.
Também não é apenas no Brasil que o catolicismo se mostra tão sincretizante: no México, a “conquista espiritual” empreendida pelos castelhanos deu-se às avessas, ou, no mínimo, em via de mão dupla. O culto aos velhos deuses sobrevive hoje não em altares neopagãos dedicados a Tláloc ou Quetzalcoatl nos apartamentos da descolada juventude urbana da Cidade do México ou de Los Angeles. Pelo contrário, sobrevive principalmente nas práticas de um campesinato indígena nominalmente católico.
Foi entre eles que a Virgem de Guadalupe recebeu o título de Tonantzin (“Nossa Venerável Mãe” em náuatle), antes atribuída a deusas-mãe telúricas cujo culto hoje se confunde com a devoção mariana. Similarmente, a confluência entre a teologia franciscana e a espiritualidade indígena originou, no início do período virreinal, o culto mesoamericano ao “Cristo Solar”, que persiste ainda hoje.
O santo guerreiro Santiago Matamoros (São Tiago), manifestação do espírito cruzadístico da Reconquista ibérica, foi identificado com Huitzilopochtli, deus da guerra entre os astecas.[5] Muitos outros exemplos poderiam ser dados do colorido ecossistema espiritual mexicano e centro-americano, mas aí já estaríamos enveredando por uma tangente.
Esse catolicismo cordial, antropofágico, é (guardadas, por óbvio, as devidas proporções) tolerante por princípio. Não é propriamente uma religião (por mais que existam, sim, católicos sérios e devotos entre nós), mas um modo de habitar o sagrado: plural, diplomático, irônico, ao mesmo tempo arcaico e pós-moderno.
Nem mesmo nossos ateus escapam do catolicismo cultural, carregando no inconsciente a linguagem dos santos e das promessas (“Ateus, graças a Deus”, como dizia minha mãe). Nesse contexto, seria impreciso considerar a cordialidade holandiana um empecilho ou negação da ordem pública. Pelo contrário, o que temos aqui é a própria cordialidade como ordem pública, cuja negação na verdade é outra: enquanto o zen-budismo e as religiões de matriz africana habitam essa matriz maleável e adotam sua linguagem, alguns rejeitam abertamente esse status quo, a exemplo de certas igrejas neopentecostais.
Se o catolicismo à brasileira é sinfônico, misturando múltiplas vozes, o neopentecostalismo, ao invadir terreiros e quebrar imagens de santos em praça pública (surtos iconoclásticos dignos dos que assolaram o Império Bizantino), emerge, ao contrário, como ruído. Os perpetradores desses gestos de iconoclastia quase militante não rejeitam apenas símbolos, mas o próprio “pacto da cordialidade”.
A “crentefobia” no Brasil, por assim dizer, parece ser em grande parte resultado de dois fatores: primeiro, uma certa aversão social àquilo que os antigos romanos denominavam superstitio, isto é, uma devoção excessiva (vale lembrar que mesmo os nossos católicos mais observantes são ditos “carolas”); segundo (e mais importante), um entendimento tácito de que quem rejeita o “pacto da cordialidade”, as regras não escritas da negociação religiosa (sincretismo, coexistência), configura uma força antissocial por excelência.
Mesmo para além das margens dessa matriz do catolicismo cordial, o proselitismo obstinado típico de tais denominações é frequentemente vivido como uma forma de agressão cultural. Pensemos, por exemplo, na chamada “Missão Novas Tribos”, organização fundamentalista dos Estados Unidos cuja autoproclamada missão de levar a suposta palavra de Cristo a todas as tribos do planeta (muito atrevimento vindo de quem sequer faz parte de uma sucessão apostólica, diga-se de passagem) só pode ser descrita como francamente etnocida.[6]
O que temos aqui, assim, é uma reação quase popperiana, imunológica, a algo percebido como corpo estranho, ameaça ao status quo cordial. A bem da verdade, o chamado “Paradoxo da Tolerância” de Karl Popper sequer constitui um paradoxo: a aparente contradição da “intolerância ao intolerante” desaparece sob a luz de uma leitura contratualista, ou mesmo da ideia de uma declaração velada de guerra schmittiana ao “intolerante”. Seja como for, trata-se de um conceito útil para a compreensão das forças que vêm tensionando o tecido espiritual-sociocultural do Brasil.
Desse modo, a solução do problema que ora se impõe à sociedade brasileira no âmbito da presente discussão passa não apenas por apelos genéricos ao laicismo (que têm seu lugar e seu papel, mas correm o risco de simplificar demasiadamente a discussão, ignorando particularidades sociológicas em nome de um ideal abstrato imposto de cima para baixo), mas também pelo fomento da cordialidade enquanto ética da convivência, mesmo perante crescentes tensões e desencontros, de modo a facilitar a acomodação até mesmo dos elementos mais refratários.
Tal é nossa glória e nosso desafio: ser a pátria onde todos os deuses são bem-vindos, desde que saibam dançar juntos.
[1] Refiro-me aqui ao finado Bita do Barão, o notório pai de santo codoense da família Sarney: aqui.
[2] Para mais detalhes, ver: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. pp. 149-151.
[3] Sobre a crioulização do zen-budismo em contato com o catolicismo no Brasil, ver: ROCHA, C. Sôtô Zenshû no Brasil: A Crioulização de Práticas Cotidianas. Revista de Estudos da Religião (REVER). ISSN 1677-1222, v. 11, n. 2, p. 87, 6 jan. 2012.
[IV] Para mais detalhes, ver: STIRNER, Max. The unique and its property. Baltimore: Underworld Amusements, 2017. pp. 64-66.
[V] Sobre a Virgem de Guadalupe como Tonantzin, ver: NEBEL, R. Santa María Tonantzin, Virgen de Guadalupe. [s.l.] Fondo de Cultura Economica USA, 1995.
Sobre o culto mesoamericano ao Cristo-Solar, ver: BURKHART, L. M. The Solar Christ in Nahuatl Doctrinal Texts of Early Colonial Mexico. Ethnohistory, v. 35, n. 3, p. 234, 1988.
Sobre o sincretismo entre São Tiago e Huitzilopochtli, ver: ANTONELLA FAGETTI. El nacimiento de Huitzilopochtli-Santiago: un mito mexica en la tradición oral de San Miguel Acuexcomac. Korpus 21, v. 10, n. 29, p. 0, 1 dez. 2003.
Para um registro etnográfico em maiores detalhes do catolicismo indígena mexicano (focado em uma comunidade nahua da região de La Huasteca), ver: SANDSTROM, A. R. Corn is Our Blood. [6I] Sobre a amplamente documentada atuação criminosa da Missão Novas Tribos [MNT] no Brasil, ver: Missão Novas Tribos: a história dos evangélicos no comando na Funai; Quem é o ex-missionário evangélico nomeado para a chefia do órgão de proteção a índios isolados da Funai; Indígenas aprovam proibição de entrada de integrantes da Missão Novas Tribos no Vale do Javari; Missionário norte-americano é expulso após invadir área no Acre para converter indígenas de recente contato; Em vídeo, ONG norte-americana pediu doações e prometeu evangelizar índios isolados no Brasil; Missões fundamentalistas: um dos pilares do etnocídio indígena no Brasil. Entrevista especial com Felipe Milanez; Juiz impede que missionários se aproximem de indígenas isolados na Amazônia; Mortes, escravidão e abuso sexual: o legado das missões comandadas pelo pai de antropólogo preso pelo Ibama; Ex-missionário nomeado para Funai é acusado de manipular indígenas e dividir aldeias; Como atuam missionários para evangelizar indígenas na Amazônia; MPF pede suspensão de pastor na Funai e aponta “ameaça de genocídio”; Indígenas vão à Justiça contra missionários na Amazônia para impedir genocídio; Indígenas isolados merecem proteção e não novo processo de colonização', diz deputada federal indígena sobre nomeação de missionário evangélico na Funai.