29 Março 2025
Nas metas do projeto lançado por Erundina, a formação de 10 mil núcleos de base e posteriormente a realização de um encontro nacional. Os motes podem ser múltiplos, de criação de hortas ou bibliotecas comunitárias à reivindicação de um novo projeto de país.
O artigo é de Francisco Uribam Xavier, publicado por Outras Palavras, 27-03-2025.
Uribam Xavier é graduado em Filosofia Política e doutor em Sociologia. Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC) e autor do livro América Latina no século XXI: as resistências ao padrão mundial de poder.
Foi lançado – no dia 14 março de 2025, no Escritório Modelo Dom Evaristo Arns, na PUC-SP, a partir de uma ideia da Deputada Federal Luiza Erundina, hoje com 90 anos de idade, ideia expressada por texto de Celio Turino, e com um apoio, entre tantos (Sandra, Olga, Daniel Cara, Mona, Silvana, Leo, Camilo), de Antonio Martins, articulador do Outras Palavras – o Manifesto Semente da Esperança.
Na abertura do evento, ao falar, Celio Turino registrou que atualmente vivemos no país um momento de falta de esperança, que nos falta aquela pulsão, a força vital, que move sonhos, países e gente, que estamos vivendo uma conjuntura que nos desafia a plantar sementes de esperanças. A iniciativa tem como um de seus objetivos romper com o conformismo e implantar mudanças profundas que se iniciem na realidade local de cada Núcleo de Base; solo no qual se deve plantar a semente da esperança. A recomendação é a de a proposta seja semeada sempre com afeto e arte. O Manifesto Semente da Esperança almeja sensibilizar brasileiros e brasileiras para participarem da organização e um novo processo de sociabilidade, e tem como metas para 2025 a formação de 10 mil núcleos de base e a realização de um Encontro Nacional de seus núcleos em dezembro.
O mote em torno do qual cada núcleo de base pode se organizar é múltiplo: pode ser para construir uma horta comunitária; para criar um grupo de leituras de clássicos da literatura brasileira; para adotar uma praça pública; para exigir da prefeitura a construção de uma creche no bairro; para criar uma biblioteca comunitária; para fazer teatro ou dança; para reivindicar ou solucionar algum problema existente na rua, no bairro ou na cidade; para promover cursos de capacitação técnica ou profissionalizante; para montar uma escola de arte ou um ponto de cultura; para montar cursinhos para ajudar alunas e alunos da rede pública a ter êxito no Enem; para agir no combate ao racismo, a homofobia e a violência contra mulher; para implantar cozinhas comunitárias no bairro e outros projetos sociais. Portanto, os motivos são amplos e abertos.
Acredito, como algumas outras pessoas, que estamos vivendo um momento de Crise do Projeto Civilizador moderno e uma crise do seu sistema econômico, o capitalismo; sem confundir capitalismo com modernidade. A modernidade capturou e extinguiu a forma comunitária do fazer político, pois para ela o espaço comum local, o espaço da intimidade social, ou seja, a vida comunitária constituía num estado de natureza que impedia a expansão da propriedade privada como um valor absoluto e o surgimento de uma economia voltada para a acumulação de riquezas por meio da exploração do trabalho e da transformação permanente da natureza viva em natureza morta (mercadoria). Assim, o pensamento político eurocêntrico moderno, a partir de um construto ideológico denominado de pacto social, formulou uma narrativa de instituição do Estado Moderno como forma de transformação da vida comunitária em vida política legitimadora da propriedade privada como acúmulo incessante da natureza morta (capital).
Assim, o projeto civilizador moderno acabou impondo que a vida política deveria ser estruturada na forma de esfera pública e ordenada juridicamente pelo Estado. Este, ao longo do tempo, acabou valorizando a representativa partidária e desvalorizando e despolitizando a vida comunitária, em que suas lideranças e, principalmente as mulheres, perderam seus espaços para instalação de uma ordem política racista, capitalista, classista, patriarcal, homofóbica e cristã. O projeto civilizador moderno, que na sua origem é um projeto colonial, soube se vender como um projeto universal emancipatório, mas que, como vem ficando cada vez mais demonstrável, é um projeto de morte.
A maior novidade do lançamento do Manifesto Semente da Esperança, no meu entendimento, é a possibilidade de restabelecer, a partir do contexto atual de crise do Projeto Civilizador Moderno e do seu sistema econômico, a forma de fazer e experimentar a politicidade a partir do espaço local, dos espaços domésticos das comunidades periféricas urbanas, campesinas, indígenas, quilombolas, ribeirinhas, dos jogados nas ruas. Trata-se de uma oportunidade de promover em escala continental um agir comunitário decolonizante de desprivatização da política realizado pelo mercado e partidos, que acabaram aprisionando a política na jaula de ferro da racionalidade instrumental desencantadora do mundo.
Num país desencantado como o Brasil, o Manifesto Semente da Esperança pode ser uma oportunidade para criação de uma rede de participação social cuja malha de sociabilidade possa se constituir como espaço de intimidade efetiva e política, um lugar comunitário de múltiplos desafios e aprendizados, de elaboração de respostas e soluções para os pequenos, médios e grandes problemas enfrentados por seus participantes, um espaço público comunitário de pressão sobre o poder público, o mercado e os grandes projetos globais que rivalizam com os projetos locais, como a produção de urânio, a produção de energia eólica danosa às comunidades, a produção de hidrogênio verde, a pulverização de agrotóxicos por meio de drones defendidos e apoiados pelo governador Elmano de Freitas, do PT, no Ceará.
A partir de iniciativas de instituições da sociedade civil, como a OAB, IAB, CNBB, ABONG, FASE, IBASE, Instituto Ambiental, Geledés Instituto da Mulher Negra, Esplar, Caritas Brasileira, Instituto Terra Mar, Centrais Sindicais, CUFA, CIMI, MST e tantas outras, os núcleos de bases articulados em torno do Manifesto Semente da Esperança podem ser convocados para participarem de grandes campanhas políticas conjunturais importantes para o país, como por exemplo: uma campanha pelo fim da existência das emendas parlamentares; pelo fim da reeleição para qualquer cargo político com o objetivo de acabar com a figura do político profissional e proporcionar oportunidade para que um maior número de homens e mulheres participem da política partidária; por uma audiência da dívida pública da União; pelo hábito de conjugar eleições presidenciais ao lado de um conjunto de referendo, plebiscito e iniciativa popular como previsto em nossa Constituição e ignorado pelo poder político.
Ao longo das falas, durante o lançamento do Manifesto, duas questões chamaram a minha atenção, a respeito das quais tenho um pensamento diferente, e, no entanto, acho ideias muito importantes diante do momento político presente e para o futuro da vida social e política no nosso país. Todavia, acho que não que são a novidade e a pulsão vital mobilizadora da proposta. Vou apresentar as duas questões e expressar o que penso.
A primeira saiu na fala de Celio Turino, ao afirmar que o Manifesto Semente da Esperança não nos convoca para uma novidade, mas para voltarmos a fazer o que já fizemos antes, quando nos finais da Ditadura Militar criamos os núcleos de base para construção do Partido dos Trabalhadores (PT). Penso que o nosso desafio hoje não é repetir o processo que culminou na formação do PT, o qual, hoje, muitos acreditam que seus desvios, seu distanciamento das bases e outras questões foram motivados pelo abandono, desvalorização e desarticulação dos núcleos pelo partido. A nossa conjuntura atual é completamente diferente e os desafios são outros. Portanto, devemos evitar que a Semente da Esperança seja algo para desemborcar em militância num partido político ou na formação de um novo partido. Cair nessa tentação é ter que se conduzir por uma visão instrumental do processo de rompimento com o conformismo e com a suposta falta de esperança da sociedade brasileira. Nesse sentido, faço uma sugestão de que os coletivos sejam denominados de Comunidade Comunal ou Ponto Comum ao invés de núcleo de base.
A segunda foi colocada no final do evento pela deputada Luiza Erundina, quando afirmou que a tarefa dos núcleos de base seria a de organizar, mobilizar, conscientizar o povo e criar condições de influenciar o processo eleitoral de 2026. O objetivo dos núcleos de base seria, segundo Erundina, o de impedir que o bolsonarismo/extrema direita voltasse a ocupar a Presidência da República em 2026. Há na fala de Luiza Erundina uma ideia dos núcleos como vanguarda que organiza, conscientiza e mobiliza o povo. Além de se fechar num objetivo imediato e eleitoral, esta parte da fala de Erundina vai na contramão da ideia de se criar um movimento de rompimento com a apatia da população em relação aos rumos de suas vidas, do destino do país e criar um ambiente social de esperança e uma nova prática de participação no fazer político.
O Manifesto Semente da Esperança é uma proposta de organização da sociabilidade política estribada a partir do local, da vida comum comunitária, cada núcleo de base deve se constituir como um espaço de vivência do comum, de experimentos locais que se articulam com a gestão do poder municipal, estadual, federal e do planeta. Portanto, a partir de uma ação decolonizante local entra-se em simbiose com a gestão do planeta, na defesa da preservação e perpetuação de suas múltiplas formas de vida, o que implica no enfrentamento da lógica do mercado que alimenta e reproduz as relações negativas contra a natureza, como as lógicas produtoras do aquecimento global, do desmatamento, da poluição dos rios e mares e da transformação da natureza viva em natureza morta por meio das lógicas extrativistas/rentistas e da indústria de armamentos que alimenta o mercado da violência, das guerras e dos genocídios dos povos considerados indesejados. O Manifesto Semente da Esperança é um chamado para um encantamento com a política como possibilidade de produzir ideias para adiar o fim do mundo, como a contribuição do livro de Ailton Krenak, e para o encantamento e o engajamento na possibilidade de construir outros mundos, como nos conclamam os zapatistas e, a partir deles, as teorias decoloniais.