14 Março 2025
“O pecado fareja Deus como a mosca segue a panela” não é uma frase religiosa. E “Eu rezo a Deus para me livrar de Deus” não nos faz pensar no catecismo. E, mais ainda, “não existe mundo sem Deus, mas nem mesmo Deus sem mundo” parece quase o pensamento de alguém que não acredita em Deus. E “a blasfêmia louva a Deus”? Essas são palavras do místico medieval Meister Eckhart (1260-1327), e ouvi-las no teatro, livres da custódia severa dos especialistas e iniciados, vê-las voar e abrir caminho como as abelhas saindo da colmeia é descobrir que existem palavras em busca de sentido, assim como os personagens de Pirandello estão em busca do autor.
A reportagem é de Francesco Merlo, publicada por La Repubblica, 11-03-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
E, de fato, a primeira “Bienal da Palavra” é dedicada a Meister Eckhart, cinco leituras diferentes de seus comentários sobre o Evangelho de São João que, a partir desta noite, serão repetidas até 15 de março, em Veneza, no “Portego delle colonne”, que é o pátio do Hospital Giovanni e Paolo, também medieval. E vou logo dizendo que não se trata de uma astuta elucubração em batina, nem do novo capítulo de Vacanze intelligenti (1978), de Alberto Sordi, quando Remo e Augusta – simples vendedores de frutas romanos mandados pelos filhos à Bienal para se enriquecerem - tinham vergonha de não entender as obras invisíveis de Gino De Dominicis ou as ovelhas “escultura viva” de Menashe Kadishman. Pelo contrário, aqui as palavras são tiradas “dos especialistas que sabem tudo, mas não entendem nada” e são oferecidas “aos espectadores que entendem tudo, mas não sabem nada”. A Bienal da Palavra, de fato, é a invenção que Pietrangelo Buttafuoco contrapõe “às feiras de livros, à ficção”, diz ele, “que não é mais literatura, aos Salões e aos Festivais”. Em vez disso, Buttafuoco oferece ao público “as muitas palavras de raro poder que estão adormecidas como múmias nas bibliotecas das universidades”. E este ano, para começar, são as palavras do místico Meister Eckhart”. Não se trata aqui de penetrar, como amadores, no misticismo medieval, em seus tempos e lugares, em suas teorias e conhecimentos. No entanto, não há dúvida de que as palavras materialistas que evoquei no início, “o pecado fareja Deus como a mosca segue a panela”, tornam-se até eróticas na descrição dos amantes “animais divinos que farejam Deus no cheiro do amante”. Essas palavras de Eckhart permitem que a estudiosa de cultura grega Monica Centanni, em uma apresentação realmente magistral, liberte do catecismo o Deus de Eckhart que “tem cheiro” e “tem sabor”.
O cheiro de Deus poderia ser o da poeira das estradas da Europa que o dominicano Eckhart percorria a pé, pregando em alemão para os camponeses, por exemplo, na Floresta Negra: “Ah, o homem que anda seguro, / para os outros e para si mesmo amigo”, escreveria alguns séculos depois Eugenio Montale em seu poema mais famoso intitulado Non chiederci la parola.
Compreende-se, portanto, pouco a pouco, que estes na Bienal não são os exercícios espirituais praticados “de qualquer maneira para buscar a vontade divina”, como, obviamente, tentou fazer o poeta Cardeal José Tolentino de Mendonça, porque esse é o seu ofício como prefeito no Vaticano do dicastério para a cultura, embora no ar rarefeito das elevadas altitudes do misticismo que, talvez seja verdade, seduz mais do que a religião. Com seus refinamentos, seus ricochetes de Lutero a Simone Weil, de Benjamin a Eliot e Pessoa, com sua densa erudição sobre as disputas em torno do logos, o cardeal imergiu como um mergulhador no Deus de Eckhart que, quando vestia a toga acadêmica, comentava as Escrituras em latim. E para um medieval como ele, contemporâneo de Dante, as Escrituras eram a palavra de Deus.
Mas quando Tolentino evocou o Apocalipse de São João, os cem espectadores se sentiram bem próximos, não da verdade revelada, mas do destino e do medo, do Papa no hospital durante o Jubileu, de Trump e Putin, de Xi Jinping e do guarda-chuva de Macron, da escuridão se tornando luz e, inversamente, do obscurantismo que se instala no fulgor do sistema solar, do tormento de Oppenheimer, da bomba. E assim o arrepio da emoção se tornou uma faísca, diria Eckhart, um pensamento, único, mas coletivo, acariciado pelo coro gregoriano a cappella e pelas sombras contra a parede do cenário. Foi a prova de que o genial experimento teatral de Buttafuoco - “a semeadura”, como ele o chama - havia sido bem-sucedido. Nada de ato de fé! As palavras fluem de Eckhart, da Bienal, do misticismo como abelhas da colmeia - abelha em hebraico é dvorim e palavra é devarim - e abrem caminho, voam e, de vez em quando, produzem o mel que talvez seja o sabor de Deus.
Bem, ao longo do caminho das abelhas “nas próximas edições da Bienal”, antecipa Buttafuoco, “poderiam ser as palavras de Hegel, se é verdade que sua Fenomenologia é a odisseia do espírito burguês, ou talvez poderiam ser aquelas de Lévi-Strauss, o viajante que odeia as viagens que narra, como explica na famosa abertura de Tristes Trópicos: “Eu odeio viagens e exploradores, e eis que me preparo para contar as minhas expedições”.
Enquanto isso, neste ano, ressurgiram as palavras de Eckhart e, seguindo o caminho das abelhas, voltaram a ser patrimônio comum, graças à dramatização de um diretor de extrema elegância (Antonello Pocetti), de três bons e belos atores, Federica Fracassi, Leda Kreider e Dario Aita, e da Bienal como um todo, que pode ter posto o bigode em Eckhart como Duchamp fez com a Mona Lisa, mas certamente respeitou o seu Deus que fascina os sem Deus, confirmando, como diz o Papa Francisco, que eles são os mais apreciados por Deus.