Elizabeth Teixeira, líder camponesa e protagonista de “Cabra Marcado para Morrer”, faz 100 anos

Elizabeth Teixeira ao lado dos filhos logo após o assassinato de João Pedro - Reprodução / Cabra Marcado Para Morrer

13 Fevereiro 2025

A Revista de CINEMA prossegue em sua série de relatos, contendo lembranças cinematográficas ambientadas em festivais e mostras brasileiros (ou internacionais).

A reportagem é de Maria do Rosário Caetano, publicada por Revista de CINEMA, 10-02-2025. 

A vigésima-terceira dessas lembranças tem um festival, o de Caxambu, no Circuito das Águas de Minas Gerais, como cenário. No pequeno município aconteceu a única, e poderosa, edição do evento criado pelo então secretário de Cultura de Minas Gerais, José Aparecido de Oliveira (1929-2007), depois governador do Distrito Federal, ministro da Cultura e embaixador do Brasil em Portugal.

A solitária e inesquecível edição do Festival de Caxambu aconteceu em dezembro de 1984, portanto, no alvorecer da Nova República. Um dos filmes-sensação do evento foi “Cabra Marcado para Morrer”, de Eduardo Coutinho, que vencera, semanas antes, o Tucano de Ouro, prêmio máximo do FestRio, o então badaladíssimo Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro.

No centro dessas lembranças de Festivais e Mostras de Cinema está Elizabeth Altina Teixeira, a protagonista absoluta de “Cabra Marcado para Morrer”. Nessa quinta-feira, 13 de fevereiro, ela completa 100 anos.

A camponesa perdeu o marido, João Pedro Teixeira, líder da Liga Camponesa de Sapé, na Paraíba, assassinado por contrariar interesses do latifúndio. A tragédia se deu no dia dois de abril de 1962. Ele tinha 44 anos. Caberia, dali em diante, à sua esposa, de 36, a obrigação de criar, sozinha, os onze filhos.

Viúva, com o vestido preto que os costumes obrigavam as mulheres a usar, Elizabeth se viu desafiada a sobreviver para criar os filhos. Alguns adolescentes, outros infantes e um pequenino, “de colo”. Foto antológica registra tal composição familiar. Todos de luto, um com uns dois anos, pelado (o que era comum ainda na década de 1960), e o caçulinha, nos braços da mãe, enrolado em panos e com chupeta na boca.

Dona Elizabeth continuaria sua trajetória política na Liga de Sapé e seria convocada, um ano e meio depois da tragédia do assassinato de João Pedro, a recriar sua própria vida num filme ficcional, dirigido por Eduardo Coutinho (1933-2014).

O longa-metragem tinha o mobilizador CPC-UNE (Centro Popular de Cultura da União Nacional de Estudantes) como produtor. As filmagens aconteceriam em Pernambuco (não havia clima para que fossem realizadas na região de Sapé, na Paraíba).

Dona Elizabeth interpretaria a si mesma. Um companheiro de João Pedro, o camponês João Virgínio Silva, representaria o líder assassinado. Em papéis menores estariam moradores do Engenho Galiléia, em Pernambuco. O estado, governado por Miguel Arraes (1916-2005), oferecia mais segurança à equipe técnica e artística que a vizinha Paraíba.

As filmagens aconteciam em bom ritmo, quando a equipe de Coutinho foi surpreendida pelo golpe militar de março de 1964. A UNE foi posta na ilegalidade e sua sede, no Rio, incendiada. A “caça aos comunistas”, deflagrada pelos vencedores fardados, ganhava vulto. A equipe do filme era descrita, nos jornais, como grupo insurgente “a serviço de Cuba”.

Dona Elizabeth, disfarçada “como prostituta” por Vladimir Carvalho, integrante da equipe de “Cabra Marcado para Morrer”, partiu, clandestina, para o Rio Grande Norte. E lá, com nome falso, se virou como lavadeira e, depois, professora de alfabetização. Sua clandestinidade durou quase 20 anos. Retomaria sua identidade e vida cidadã com a estreia de “Cabra Marcado para Morrer”, recriado em versão documental.

O prêmio máximo do FestRio, criado por Ney Sroulevich, daria ao mais famoso (junto com “Edifício Master” e “Jogo de Cena”) dos filmes de Coutinho, a visibilidade que merecia. Por suas qualidades e pela missão que desempenhara magistralmente: promover inventário do Brasil de 1964 a 1984, do golpe militar à consolidação da redemocratização. E resgatar a cidadania de uma mulher do povo, que vira muitos de seus filhos espalhados por diversos lugares. Um deles recorreria ao suicídio.

A partir de tal inventário empreendido por Coutinho, Dona Elizabeth iniciaria uma segunda etapa de sua vida. Saíra da clandestinidade para contar, pelo filme ou pessoalmente, sua história singular e coletiva. Foi nessa condição que ela desembarcou em Caxambu, aos 59 anos, muito magra, com seus vestidos singelos e fala aliciadora. Tinha o dom da ‘contação’ de histórias.

Cosme Alves Netto, Eduardo Coutinho e Elizabeth Teixeira (Foto: JC10 | Wikimédia Commons)

O Festival de Caxambu nasceu grandioso. Seu propósito era, claro, cinematográfico (promover o audiovisual brasileiro), mas também turístico (difundir o Circuito das Águas formado pelos municípios de Cambuquira, São Lourenço, Lambari, Caxambu e agregados).

Para chamar a atenção dos munícipes e dos turistas, era necessário atrair artistas famosos para a cidade mineira. Dois astros – Lima Duarte e Claudio Marzo (1940-2015) – estavam na linha de frente do time de convidados.

Ambos viviam o auge de suas carreiras. O primeiro devido ao sucesso do pistoleiro Zeca Diabo, uma das estrelas de telenovela de Dias Gomes (“O Bem Amado”), da qual derivaria série popularíssima. Lima, aliás, regressava às suas amadas Minas Gerais (ele nascera em Sacramento) para causar furor.

Claudio Marzo interpretava, naquele momento, no folhetim “Partido Alto” (Glória Perez e Aguinaldo Silva, 1984), Maurício Vilela, um professor de História. O personagem disputava o coração da heroína Isadora (Elizabeth Savala). A telenovela chegava a seus capítulos finais e Marzo, que participava do festival ao lado da esposa, a atriz Xuxa Lopes, conhecia de perto a fúria dos fãs.

Ele e Lima Duarte só conseguiam sair do Cine Glória sob forte escolta policial. A discreta Xuxa integrava o júri do festival, ao lado do próprio Lima Duarte, do cineasta Denoy de Oliveira, do diretor de fotografia José Medeiros, entre outros.

O Troféu Coroa seria entregue, em especial, a dois dos cinco concorrentes: “Noites do Sertão”, de Carlos Alberto Prates Correa (melhor filme, roteiro, montagem e trilha sonora) e “Flor do Desejo”, de Guilherme de Almeida Prado (direção, atriz, para Imara Reis, coadjuvantes, para Luiz Carlos Arutim e Walter Breda, e fotografia, para Antônio Meliande).

O Evangelho Segundo Teotônio”, de Vladimir Carvalho, faria jus a Prêmio Especial do Júri e teria o reconhecimento do público (Júri Popular). O melhor ator foi Eduardo Machado, por “Idolatrada”, de Paulo Augusto Gomes. O thriller “Shock”, de Jair Corrêa, teria Mayara Magri reconhecida como a melhor coadjuvante.

O festival, que começara numa segunda-feira, 3 de dezembro, prosseguiria até o sábado, 8, no Cine-Sauna Glória. Sim, o cinema parecia uma sauna. Era verão e não havia ar condicionado.

Na noite de premiação houve um show do gaúcho Nelson Gonçalves (1919-1998), a quem se outorgara o título de Cidadão de Caxambu. Ivon Curi (1928-1995), nascido no município e “dono de fazenda na região”, também deu o ar da graça, com seu bom-humor e canções.

Dona Elizabeth Teixeira, que dois meses depois completaria 60 anos, participava discretamente das atividades do Festival de Caxambu e conversava com todos que a procuravam, geralmente, gente de cinema ou jornalistas.

Artistas e demais convidados tinham o direito de desfrutar de todos os equipamentos e serviços do imenso Parque das Águas de Caxambu, com 210 mil metros quadrados, muitas árvores e doze fontes de água mineral gasosa (dotadas de “propriedades químico-medicinais, diferentes em cada uma delas”).

Um dia, Eduardo Coutinho me perguntou (eu entrevistara o trio Dona Elizabeth, Coutinho e Vladimir Carvalho, no apartamento deste, na Asa Sul de Brasília, meses antes) se eu poderia dispor de uma manhã ou tarde para passear com Dona Elizabeth no parque e levá-la a conhecer os banhos sulfurosos e os diversos tratamentos oferecidos para relaxamento. Afinal, vinda do sertão da Paraíba, ela não conhecia nenhum dos equipamentos e tratamentos disponíveis no parque.

Como eu fazia a cobertura do festival para o Correio Braziliense e — por convite insistente de José Aparecido —, representava a imprensa (o futuro governador do DF não podia ver um jornalista!) no júri das competições de longas e curtas-metragens, prometi encontrar algumas horas livres. Afinal, eu também, mesmo sendo mineira, não conhecia as fontes sulfurosas do Circuito das Águas.

Consegui arrumar uma tarde livre e, junto com Dona Elizabeth, iniciamos nosso passeio. Tudo encantava àquela mulher sertaneja. As atendentes nos recomendavam banhos quentes ou banhos frios. Tudo para nós era novidade e nossa tendência era experimentar o que aparecesse. Foi aí que chegou a hora de ducha com jorro de água capaz de tirar até Toni Tornado, com seu corpo atlético e 1m90 de altura, do lugar.

“A senhora quer fazer esse ‘tratamento’?”, perguntei, acreditando que ela, magra como um graveto, rejeitaria.

Qual não foi minha surpresa. Dona Elizabeth disse que queria, sim, submeter-se ao jato de água. Que eu fosse primeiro, para que ela visse como proceder. Claro que o jorro torrencial de água me caiu como um maremoto. Baixinha e rechonchuda, senti a “lambada” na pele. Mas, terminada a sessão, tive realmente uma boa sensação.

Insisti na pergunta: “Dona Elizabeth! A senhora quer mesmo se submeter a esse ‘tratamento’ de choque”?

– “O que você achou?”, ela me perguntou. Respondi que, no começo, a força da água era muito violenta, mas depois, vinha uma boa sensação.

E lá foi a pequenina e magérrima Dona Elizabeth, que usava um maiô discreto, de cor escura, submeter-se às “lambadas” das águas do Parque das Fontes. Ela resistiu firme. Quando terminou a sessão, perguntei se tinha gostado. “Sim”, me respondeu, “estava gostando de tudo”.

Quem pariu onze filhos e perdeu o marido, assassinado pelo latifúndio, não ia temer os jatos de água da pequena e encantadora Caxambu.

Esqueci de muita coisa na vida. Mas jamais daquela imagem de Dona Elizabeth protegendo, com seus braços finos, os olhos da fúria da mangueira do Parque das Águas.

Em 2006, reencontrei a líder camponesa no Festival Aruanda do Audiovisual Brasileiro, em João Pessoa, capital da Paraíba. Cidade onde ela reside. E onde vai comemorar seu centenário.

O comando do festival nordestino entregou a ela um Troféu Aruanda Homenagem, por sua contribuição ao cinema brasileiro. Ela foi tema de muitos curtas e médias-metragens assinados pelo próprio Eduardo Coutinho e por diversos outros (na maioria jovens) realizadores.

Conversamos, perguntei se ela se lembrava de nosso passeio ao Circuito das Águas de Caxambu, ela sorriu e respondeu: “Claro, principalmente do banho com aquele jato de água daquela mangueira”.

Pedi para fotografá-la com o Troféu Aruanda, que ela acabara de ganhar. Com rosto sereno e cordato, ela posou para a foto que (acima) ilustra essas lembranças e que foi feita no auditório (ex-cinema) do Hotel Tambaú, desenhado pelo arquiteto Sérgio Bernardes. E fechado há alguns anos por desesperador imbroglio imobiliário-jurídico. Fotografei-a, também, com Linduarte Noronha (1930-2012) e Jean-Claude Bernardet. Ela gosta muito de fotografias. Uma mulher brasileira invejável.

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