13 Fevereiro 2025
"O que estamos enfrentando com o neoliberalismo é a negação da dignidade de todos seres humanos e, com isso, os direitos humanos fundamentais de todas pessoas, incluindo os que não são cidadãos porque são imigrantes ilegais, sem direitos que estão conectados com a noção de cidadania", escreve Jung Mo Sung, teólogo e cientista da religião.
Na minha juventude, quando tinha 15 anos e participava em um grupo de jovens na “baixada do Glicério”, uma região pobre no centro da cidade de São Paulo, eu tive a chance de participar de um encontro de um final de semana do TLC (Treinamento de Liderança Cristã). Esse movimento foi inspirado pelo do movimento Cursilhos de Cristandade, que era de adultos, e estava em grande voga na igreja católica e colocando leigos e leigas como agentes de missão na sociedade. Eu confesso que eu menti na minha ficha de inscrição porque a idade mínima era de 16 anos, mas o coordenador jovem do grupo disse que eu estava preparado para isso.
Uma das palestras que me marcou, meio negativamente, foi a de um padre que nos disse que ser cristão não era difícil. Bastava seguir os dez mandamentos e, ao explicar cada um deles, disse que, no fundo os dois únicos mandamentos difíceis eram faltar na missa e pecar contra a castidade. (Depois eu vi que assistir missa aos domingos era uma lei da Igreja e não de Deus.) Depois explicou que o resumo do cristianismo era amar a Deus sobre todas as coisas (que também era fácil, pois ninguém ama algo acima de Deus) e ao próximo. E em que consistia amar ao próximo? Ele deu uma explicação lógica óbvia: próximo é a pessoa que está perto de nós, a família. Depois, amar os amigos; em seguida, os colegas; e assim seguiria a lógica. A explicação era tão óbvia que eu me perguntei: para que Jesus veio ao mundo ensinar o que todos já fazem? Isto é, amar os que nos amam.
Acho que o padre queria convencer as pessoas a serem católicos pela facilidade: evitar dois pecados: o sexo fora do casamento (e o aborto) e a preguiça de não ir à missa.
A razão de eu contar essa minha história do meu TLC é a disputa teológica colocada pelo vice-presidente dos Estados Unidos, J. D. Vance. No Fox News, ao justificar a expulsão dos imigrantes ilegais, ele afirmou: ““Você ama sua família, e então ama seu vizinho, e então ama sua comunidade, e então ama seus concidadãos em seu próprio país. E então, depois disso, você pode focar e priorizar o resto do mundo.” Depois ele afirmou que a “extrema esquerda” inverteu isso. Com a discussão sobre isso na rede social, ele postou no X: "Basta pesquisar no Google 'ordo amoris'".
O argumento do vice-presidente, que é publicamente católico, é o mesmo do padre do meu TLC. O que mostra que essa teologia sobre a ordem correta de amar faz parte de uma tradição católica muito antiga, que vem da idade média e está presente no coração do catolicismo atual. O Papa Francisco, em uma carta aberta aos bispos católicos dos EUA sobre o problema da imigração, disse: “O amor cristão não é uma expansão concêntrica de interesses que pouco a pouco se estendem a outras pessoas e grupos. [...] A verdadeira ordo amoris que deve ser promovida é aquela que descobrimos meditando constantemente a parábola do ‘Bom Samaritano’ (cf. Lc 10,25-37), ou seja, meditando o amor que constrói uma fraternidade aberta a todos, sem exceção”.
Ao responder à interpretação teológica do vice-presidente dos Estados Unidos sobre o ordenamento do amor, o Papa está enfrentando um dos pontos teológico-políticos centrais do nosso tempo. Como tenho escrito em vários artigos aqui no IHU, o que estamos enfrentando com o neoliberalismo é a negação da dignidade de todos seres humanos e, com isso, os direitos humanos fundamentais de todas pessoas, incluindo os que não são cidadãos porque são imigrantes ilegais, sem direitos que estão conectados com a noção de cidadania. Mais do que as mudanças políticas econômicas de Trump, que parecem romper com as políticas econômicas do neoliberalismo, o que estamos vendo é uma radicalização deste movimento contra os valores fundamentais da civilização democrática moderna –que reconhece a igualdade de todos seres humanos– e a razão “decente”.
Contra essa igualdade humana fundada em uma razão “sensível e decente”, a extrema-direita está usando mitos e teologias para defender a desigualdade fundamental entre seres humanos. É um processo de “sequestro” do mandamento do amor ao próximo modificando o conteúdo do quem é o meu próximo. Que é o ensinamento de Jesus sobre o “bom samaritano”.