24 Janeiro 2025
"A mudança sócio-econômica do Brasil pressupõe uma mudança da economia dos afetos que ainda não fomos capazes de fazer. O autoritarismo paira como uma sombra, toma corpo, se efetiva pela violência simbólica e física, aparece sorrateiro nas proibições mais esdrúxulas", escreve Marcus Vinicius de Souza Nunes.
Marcus Vinicius de Souza Nunes é professor, pesquisador e psicanalista. Doutor em Educação, Comunicação e Tecnologia (UDESC), Mestre em Educação e em Filosofia (UFSC), com Estágio de Pós-Doutorado em Tecnologia e Inovação (UFSC). É professor da Rede Básica Estadual de Santa Catarina.
No início da segunda quinzena de janeiro duas notícias aparentemente sem muita conexão entre si, fora o fato de serem decisões de política educacional, me causaram profundo desconforto. Essa sensação, para além de uma simples percepção subjetiva, me parece indicar rumos terrivelmente equivocados que estão sendo tomados em relação à Educação no Brasil.
Começo pela segunda notícia, de 16 de janeiro de 2025, porque é mais evidente. O governador de Santa Catarina, Jorginho Mello, sanciona a criação de mais 5 escolas cívico-militares no Estado. Na nota veiculada pela Secretaria de Comunicação do Estado, o secretário de Educação Aristides Cimadon afirma que “a disciplina e os valores que os jovens aprendem nessas escolas não só os tornam estudantes melhores, mas também cidadãos melhores” (SECOM, 16 de janeiro de 2025).
A pressuposição aí feita obviamente só se justifica pelo aparato ideológico que a sustenta. O termo “disciplina” não esconde a intenção: docilizar corpos, submeter vontades e fazer disso a marca do “cidadão”. Para além das premissas ideológicas e políticas já conhecidas, é preciso ainda destacar os dados que apontam para o grosseiro erro que é essa decisão. Em um estudo conduzido pelo Sindicato dos Trabalhadores da Educação (SINTE-SC) e divulgado na coluna de Dagmara Spautz no portal NSC em 10 de outubro de 2024, mostra que as escolas cívico-militares são mais caras, exigem mais investimento (quase o dobro das escolas regulares da rede), e dão um retorno menor, 8% a menos no IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica).
Além disso, como educador vou ter de bater na mesma tecla: escolas que formam cidadãos, pessoas conscientes e ativas, são aquelas que adotam algum tipo de pedagogia construtivista, que viabiliza a autonomia e a reflexão do aluno, que o trata como sujeito. A velha história, que Darcy Ribeiro tão acentuadamente pontuou: a desvalorização da educação é um projeto. O Novo (Velho) Ensino Médio era uma das estratégias. As escolas cívico-militares outra. Disciplinar, não formar; treinar, não educar; desenvolver a obediência, não a autonomia. E enquanto isso, os filhos das classes médias altas e das elites continuam a gastar rios de dinheiro em escolas que os ensinam a tomar decisões, porque é esse o futuro para eles reservados.
Entretanto, a notícia de 13 de janeiro de 2025, passa despercebida na sua íntima vinculação com o mesmo problema teórico, didático e ideológico das escolas cívico-militares. Na data, o Presidente Lula sancionou a lei que proíbe o uso de celulares nas escolas. Para justificar tal projeto tem-se mencionado exemplos de países como França ou México que já tomaram uma decisão similar, seguindo recomendação da UNESCO.
Não pretendo nem de longe afirmar que não temos um problema a tratar no que se refere ao uso de tecnologias digitais. O best-seller do psicólogo social norte-americano, Jonathan Haidt, “A geração ansiosa” (2024) apresenta indícios de correlação entre o aumento do uso de telas, sobretudo de redes sociais virtuais, e o de transtornos, como ansiedade generalizada e depressivo maior. Por mais que as próprias categorias psiquiátricas mereçam certa crítica, porque mascaram muitas vezes problemas sociais mais amplos, e ainda muitas vezes desconsideram a singularidade dos sujeitos na clínica, hoje estamos no ponto de perceber que algo precisa ser feito.
Por exemplo, a regulação das plataformas digitais e sua responsabilização é urgente. Ainda mais que a posse do novo presidente dos EUA escancarou as pretensões políticas dos gigantes da tecnologia, aprofundando ainda mais uma forma da política que Yannis Varoufakis tem chamado de “tecnofeudalismo” (2024). Mas, como educar crianças e adolescentes para esse desafio? Esse é um velho problema da educação, formar para o que vem, para o que aparece, para o que desafia.
Desde o início desse debate afirmo, e continuo afirmando, que a proibição pura e simples não resolve. A proibição não elimina o perigo. A proibição causa o desejo. O celular vira, em termos lacanianos, aquele objeto causa de desejo que produz sujeição porque interditado. Nessa interdição, a própria proibição aparece como um meio de lidar com a angústia que o objeto causa. Mas, de maneira alguma, elimina o desejo por ele. Ao contrário, o intensifica.
Óbvio que a relação dos educadores e educadoras do país é marcada por profunda angústia em relação ao objeto-celular. Basta entrar em uma sala de aula de um 1º ano do Ensino Médio para ver que a atenção dos alunos está no celular, não na sala. Os educadores e educadores estão desesperados. Agir como fiscal de posturas têm pouca chance de sucesso.
Em Santa Catarina mesmo, essa nova lei sancionada pela Presidência da República, não altera significativamente nada. O Estado dispunha de normativa sobre o tema desde 2007. A existência da Lei no Estado não eliminou a angústia, ao contrário. Professoras e professores se veem diariamente em conflito com alunos e pais, com outros colegas professores e gestores.
Nos dois casos, me parece que estamos cedendo à “tentação” da cultura brasileira: o autoritarismo. Lélia González pontuou a especificidade do Complexo de Édipo brasileiro (2020). O corpo desejado não é apenas o corpo da mãe, mas o corpo da mulher negra, da ama-de-leite, da mãe preta, da mulata. O corpo desejado-interditado é o corpo subalternizado, subjugado através de violências. E a norma que interdita, o Nome-do-Pai (para seguirmos Lacan aqui) não é o pai simplesmente, mas o senhor de escravos, o proprietário que comanda nossa economia ainda patrimonialista.
A mudança sócio-econômica do Brasil pressupõe uma mudança da economia dos afetos que ainda não fomos capazes de fazer. O autoritarismo paira como uma sombra, toma corpo, se efetiva pela violência simbólica e física, aparece sorrateiro nas proibições mais esdrúxulas. Preferimos proibir, ainda que as placas de “Pare” nas nossas esquinas sejam um símbolo de que proibimos para infringir a Lei.
A educação para autonomia, para a liberdade, para o sonho, deveria ser a pedra-de-toque de nosso trabalho como educadores e educadoras. Não somos estrangeiros em nossa própria cultura. O autoritarismo nos atravessa. Encontrar soluções tampouco é fácil, mas desistir de buscá-las pode ser o naufrágio da educação, que mostra sinais de colapso. Colapso planejado, resultado da ausência de um projeto educacional para o país, consequência da falta de clareza onde queremos chegar e do poder sempre crescente dos proprietários e tecnosenhores.
AGÊNCIA de notícias Secom. Santa Catarina terá cinco novas escolas cívico-militares em 2025. 16.jan.2025. Disponível em: https://estado.sc.gov.br/noticias/santa-catarina-tera-cinco-novas-escolas-estaduais-civico-militares-em-2025-2/. Acesso em 20.jan.2025.
GONZÁLEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
HAIDT, Jonathan. A geração ansiosa. Como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de transtornos mentais. São Paulo: Companhia das Letras, 2024.
RÁDIO Senado. Presidente Lula sanciona a proibição do uso de celular nas escolas. 13.jan.2025 Disponível em: https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2025/01/13/presidente-lula-sanciona-a-proibicao-do-uso-de-celular-nas-escolas. Acesso em 20.jan.2025.
SPAUTZ, Dagmara. Escola cívico-militar custa mais caro e não aumenta nota do IDEB. Diário Catarinense. 10.out.2024. Disponível em: https://www.nsctotal.com.br/colunistas/dagmara-spautz/escola-civico-militar-custa-mais-caro-e-nao-aumenta-nota-do-ideb. Acesso em 20.jan.2025.
VAROUFAKIS, Yannis. Technofeudalism. What killed Capitalism. Hoboken, NJ: Melville House Publishing, 2024.